São Paulo, domingo, 21 de outubro de 2001

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O SURGIMENTO DO PAQUISTÃO

por V.S. Naipaul

A idéia da criação do Paquistão foi levantada a sério, pela primeira vez, em 1930, por um poeta, Mohammed Iqbal, em um discurso proferido na conferência preparatória da Liga Muçulmana. O tom do discurso é mais cordato e aparentemente ponderado que os slogans de rua de 1947; mas os impulsos são os mesmos. Iqbal provinha de uma família hinduísta recentemente convertida; e talvez só alguém que se sentisse um recém-convertido seria capaz de falar como ele falou.
O islã não é como o cristianismo, disse Iqbal. Não é uma religião de consciência pessoal e de prática pessoal. O islã vem acompanhado de certos "conceitos legais". Esses conceitos têm uma "significação cívica" e criam determinado tipo de ordem social. "Portanto, a construção de um sistema político de fronteiras nacionais, se isso significa um desvio do princípio da solidariedade islâmica, é algo simplesmente inconcebível para um muçulmano." Em 1930, um sistema político nacional significava um Estado pan-indiano.
Trata-se de um discurso extraordinário para um pensador do século 20. O que Iqbal diz, de uma forma tortuosa, é que os muçulmanos só podem viver com outros muçulmanos. Se isso foi dito a sério, significava que o mundo bom, aquele a que se aspira, era simplesmente um mundo tribal, nitidamente dividido, cada trino no seu canto. Isso devia parecer extravagante.
O que se encontra, na verdade, por trás desse clamor pela criação do Paquistão e por uma política muçulmana, e não é mencionado, é a rejeição de Iqbal da Índia hinduísta. Seus ouvintes haviam compreendido isso; e tanto eles quanto Iqbal tinham uma idéia concreta do que estava sendo rejeitado. A idéia se achava em toda parte, ao redor deles; só precisavam olhar; era um aspecto do mundo real. O que não existia, e que a proposta de Iqbal nem sequer tentava definir, era o novo sistema político muçulmano que viria com o novo Estado. No discurso de Iqbal -que foi momentoso- esse sistema político é uma abstração, é poético. Precisa ser aceito com base na confiança. O nome do Profeta é inclusive usado de forma indireta, a fim de lhe conferir autoridade.
O discurso está cheio de ironias, visto de hoje. O Paquistão, quando surgiu, cassou os direitos civis dos muçulmanos que ficaram para trás, na Índia. Bangladesh tomou um rumo próprio. Mesmo dentro do Paquistão, fala-se em dissolução. O novo sistema político, lá, revelou-se igual ao antigo, aquele que Iqbal conhecia: não se precisa ir muito longe para encontrar pessoas tão privadas de voz e de representação quanto na época em que Iqbal fez seu discurso, em 1930.


Trecho extraído de "Além da Fé - Indonésia, Irã, Paquistão, Malásia - 1988", de V.S. Naipaul, que foi publicado no Brasil pela Companhia das Letras.
Tradução de Rubens Figueiredo.


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