São Paulo, Domingo, 21 de Novembro de 1999
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LIVROS
"Pequena História Marítima" manipula com ousadia e segurança as palavras
Explosiva embarcação

BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação

Pouca gente parece ter notado, mas uma pequenina e agitada embarcação, carregada de explosivos, deu entrada meses atrás nas águas da literatura brasileira de ficção. Trata-se do livro "Pequena História Marítima", coletânea de contos da paulistana Fernanda Benevides de Carvalho, 28.
O estranhamento de alguns de seus títulos já dá idéia do tom saudavelmente provocador de seu trabalho. É o caso do penúltimo conto, "Segundo o Pintor, a Mulher Belga Naturalizada Brasileira", em que o narrador afirma:
"O sonho perdido da noite sincopado no interregno que precede o gosto trivial do café e as pequenas banalidades, como a preguiça de acordar, encobre a última memória noturna. Onde se situam as memórias: habitat de sonhos... temos um homem na retroação. Do conjunto sonhos/memória, temos alguém. Do produto magnanimidade/memória, tira-se o herói".
O tom se exacerba no texto que dá título ao livro, cujo enredo, resumidamente, é formado pelos diálogos e eventos sucessivos numa nau integrante de uma frota que tem outras duas embarcações envolvidas num naufrágio. O conto utiliza relatos reais de acidentes ocorridos com embarcações lusitanas nos séculos 15 e 16.
Leia este trecho: "A lembrança dos anteriores naufrágios era apenas esboço da escuridão ressurgindo como adiamento do futuro restituído. A caprichosa mão desalinhada da sorte recalcava o rudimentar som das ondas quebrando. O fado: Giuseppe sabe o que dele é exigido: reaplicar as forças habituais e testadas nos sinistros (...) Que trágico é o mar que joga sobre as naus um manto sombrio em que a morte é um tiro de luz".
Pode-se detectar aí, talvez, um excesso de adjetivos ou certa pirotecnia, na maioria das vezes dispensável, de linguagem. Talvez. Mas o conjunto dos cinco contos reunidos nesse livro de estréia desmente qualquer exibicionismo ou gratuidade. Trata-se, sim, de um projeto literário consciente, assumido. E ter um projeto, como se diz -ainda que no caminho sobrem umas tantas palavras-, é o primeiro passo para se produzir algo bem-amarrado e pessoal.
Com efeito, a autora trata de temas urbanos atuais e (infelizmente) banais como violência, desencontros amorosos na classe média e outros, mas sempre com, no mínimo, um sarcasmo próprio na narrativa. "Tinha eu, lógico, meus próprios vômitos. Mas a contrapartida dele foi a permanência a meu lado para transcoar de novo o mel", sentencia uma irada narradora em "Relíquia".
No conto "Essa Mulher Aí", outro exemplo, Fernanda traz a história trágica (mais uma) de um casal de estelionatários especializado em aplicar golpes em velórios. Descrevendo a personagem, diz: "A mulher gorda tem esse tipo de olhar que cura e que ama: de amêndoas. O tipo alerta e sorridente quando derrama cerveja ou bebe laquê".
Eis aqui, uma vez mais, a manipulação segura e ousada das palavras, em busca de uma entonação, uma poética até, inusitada. Como escreve Guilherme Resstom no prefácio do livro, os contos de Fernanda constituem um "trabalho lapidar que, num primeiro momento, desconcerta, para depois encantar a todos aqueles que não se renderam à leitura fácil da literatura de consumo". Biscoito fino, como se diz, dos que não devem passar em branco.


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