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LIVROS
"Pequena História Marítima" manipula com ousadia e segurança as palavras
Explosiva embarcação
BERNARDO AJZENBERG
Secretário de Redação
Pouca gente parece ter notado,
mas uma pequenina e agitada
embarcação, carregada de explosivos, deu entrada meses atrás nas
águas da literatura brasileira de
ficção. Trata-se do livro "Pequena
História Marítima", coletânea de
contos da paulistana Fernanda
Benevides de Carvalho, 28.
O estranhamento de alguns de
seus títulos já dá idéia do tom saudavelmente provocador de seu
trabalho. É o caso do penúltimo
conto, "Segundo o Pintor, a Mulher Belga Naturalizada Brasileira", em que o narrador afirma:
"O sonho perdido da noite sincopado no interregno que precede o gosto trivial do café e as pequenas banalidades, como a preguiça de acordar, encobre a última memória noturna. Onde se situam as memórias: habitat de sonhos... temos um homem na retroação. Do conjunto sonhos/memória, temos alguém. Do produto magnanimidade/memória,
tira-se o herói".
O tom se exacerba no texto que
dá título ao livro, cujo enredo, resumidamente, é formado pelos
diálogos e eventos sucessivos numa nau integrante de uma frota
que tem outras duas embarcações
envolvidas num naufrágio. O
conto utiliza relatos reais de acidentes ocorridos com embarcações lusitanas nos séculos 15 e 16.
Leia este trecho: "A lembrança
dos anteriores naufrágios era apenas esboço da escuridão ressurgindo como adiamento do futuro
restituído. A caprichosa mão desalinhada da sorte recalcava o rudimentar som das ondas quebrando. O fado: Giuseppe sabe o
que dele é exigido: reaplicar as
forças habituais e testadas nos sinistros (...) Que trágico é o mar
que joga sobre as naus um manto
sombrio em que a morte é um tiro
de luz".
Pode-se detectar aí, talvez, um
excesso de adjetivos ou certa pirotecnia, na maioria das vezes dispensável, de linguagem. Talvez.
Mas o conjunto dos cinco contos
reunidos nesse livro de estréia
desmente qualquer exibicionismo ou gratuidade. Trata-se, sim,
de um projeto literário consciente, assumido. E ter um projeto, como se diz -ainda que no caminho sobrem umas tantas palavras-, é o primeiro passo para se
produzir algo bem-amarrado e
pessoal.
Com efeito, a autora trata de temas urbanos atuais e (infelizmente) banais como violência, desencontros amorosos na classe média
e outros, mas sempre com, no mínimo, um sarcasmo próprio na
narrativa. "Tinha eu, lógico, meus
próprios vômitos. Mas a contrapartida dele foi a permanência a
meu lado para transcoar de novo
o mel", sentencia uma irada narradora em "Relíquia".
No conto "Essa Mulher Aí", outro exemplo, Fernanda traz a história trágica (mais uma) de um
casal de estelionatários especializado em aplicar golpes em velórios. Descrevendo a personagem,
diz: "A mulher gorda tem esse tipo de olhar que cura e que ama:
de amêndoas. O tipo alerta e sorridente quando derrama cerveja
ou bebe laquê".
Eis aqui, uma vez mais, a manipulação segura e ousada das palavras, em busca de uma entonação,
uma poética até, inusitada. Como
escreve Guilherme Resstom no
prefácio do livro, os contos de
Fernanda constituem um "trabalho lapidar que, num primeiro
momento, desconcerta, para depois encantar a todos aqueles que
não se renderam à leitura fácil da
literatura de consumo". Biscoito
fino, como se diz, dos que não devem passar em branco.
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