São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 1997.



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JORGE AMADO
A NAMORADA DE FADUL


O fotógrafo chega na casa de Jorge Amado e Zélia Gattai, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. O empregado atende a porta. Observa a bolsa onde está a câmera e arregala os olhos. Corre para dentro da casa.
Zélia aparece sorrindo. "Ela está aí dentro?", pergunta, também olhando para a bolsa. "Sim, está", responde o fotógrafo, intrigado com a importância que estão atribuindo à máquina fotográfica.
O fotógrafo entra na sala de visitas. Jorge Amado, 85, está dormindo na poltrona. Deitada sobre ele, uma gata.
Zélia chama a filha Paloma. Chama também uma neta, a amiga que a está visitando, a empregada e até um cachorrinho que abana freneticamente o rabo.
"Mostra para a gente, vai. Tira a menina da sacola", diz.
A menina? Todos aguardavam o portador que traria a namorada de Fadul, um cãozinho de raça incomum e, por isso, de parceiras raríssimas. Mas, na bolsa, o fotógrafo tem apenas sua câmera.
"Vim fazer as fotos de Jorge Amado e Zélia", fala. "Aqui, na bolsa, tenho a máquina".
A tristeza se espalha. Um a um, todos se retiram, menos Zélia.
Jorge acorda. Isto é, inicia o seu processo de acordar. Daqui a dez minutos, estará finalmente de volta a este mundo, alisará a gata Fifi e perguntará quem chegou.
Edder Chiodetto/Folha Imagem
Jorge Amado na mesa de jantar de sua casa, em Salvador, que ele utiliza para escrever


"É o moço da Folha, que te espera", diz Zélia.
O escritor se levanta vagarosamente e senta à cabeceira da mesa da sala de jantar. "Tenho a dizer que sempre gostei de escrever nessa mesa, no meio de todas as coisas." Desde que realizou uma angioplastia, no ano passado, Jorge deixou de escrever.
Zélia senta-se à mesa, ao seu lado, a fim de selecionar a enorme quantidade de cartas. "Não gosto nem desgosto de receber cartas, eu as recebo. Às vezes é excessivo", diz Jorge. Ela lê a correspondência. Ele ouve, com o olhar distante. As cartas trazem convites para comemorações. Jorge não se interessa por nenhum. Quer mesmo é estar na sua sala, onde recebe os amigos, assiste à TV e lê os jornais. Deste modo, a mesa e a sala permanecem o seu escritório.
Quando se entendia das cartas, que sua mulher continua lendo, Jorge pede licença, levanta-se e vai para a poltrona, onde Fifi, dormindo, o aguarda.
A gata boceja e se move preguiçosa para dar espaço a Jorge. Ele se deita. Ela ronrona e ajeita a cabeça no peito do dono. Dormem os dois profundamente. Ao fotógrafo resta capturar, no silêncio, imagens como essa. Zélia me conduz até o portão. Fadul late e continua a olhar o homem e a bolsa que não lhe trouxeram a namorada.


JORGE AMADO nasceu em 1912 em Ferradas (BA). É autor de "Capitães de Areia", "Mar Morto", "Jubiabá", "Dona Flor e Seus Dois Maridos" e "Gabriela Cravo e Canela" (Record), entre outros. Acaba de publicar o conto "O Milagre dos Pássaros" (Record). Vive em Salvador (BA).



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