São Paulo, domingo, 21 de dezembro de 1997.



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JOÃO CABRAL DE MELO NETO
O CENTRO DA VISÃO


Onde fica o escritório de João Cabral de Melo Neto?
"Não existe mais", diz o maior poeta brasileiro vivo. "Eu estou sem escrever, compreende? Meu último livro saiu em... Fiz uma operação muito séria no intestino, e fiquei 70 dias na UTI, em 1993, estava cego. De forma que não escrevo mais. Eu, para escrever, preciso ver. Não adianta eu ditar para alguém, porque eu preciso ver a minha letra construindo o verso. Eu escrevo como quem constrói uma casa. Minha grande influência foi o arquiteto Le Corbusier, que eu li muito quando ainda era garoto, em Recife."
Mas uma mesa, uma poltrona, um canto de sala?
"Nada, nada, não leio mais. Para mim é uma tortura não poder ler, sabe? Desde menino pequeno não fiz outra coisa senão ler. Mas hoje não consigo, de forma que sou um ex-escritor."
Edder Chiodetto/Folha Imagem
O poeta João Cabral, que afirma não escrever mais, junto a uma escrivaninha em seu apartamento, no Rio de Janeiro


A história da perda da visão o perturba, ele a constrói: "Eu era diplomata. Escrevia quando havia tempo. Quando voltei de Portugal para o Brasil, quando teria mais tempo para me dedicar à escrita, fiz essa operação e fiquei cego. Meu psiquiatra disse que foi me visitar no hospital e viu que os médicos haviam colocado uma luz fortíssima diante de mim. E eu, inconsciente, não podia meter o braço naquela luz. Queimaram minha retina. Por que usaram essa luz fortíssima? Não sei. Hoje tenho apenas uma visão periférica. Estou lhe enxergando mal, apenas seu vulto. Me desculpe se um dia lhe encontrar na rua e não lhe cumprimentar."
No lugar do livro, o rádio se tornou seu companheiro mais fiel. "Todo dia eu ouço na rádio sobre invasões dos sem-terra e rebeliões em presídios. Você ouviu que a visita do Pelé na Inglaterra teve mais repercussão do que a de Fernando Henrique?" Sempre as notícias, nunca a música: "Não sou da música" -e recorda o tempo anterior ao silêncio, quando escrevia: "Escrevia isolado, sem menino fazendo barulho, hoje não me lembro de nenhum poema meu".
Onde fotografar o poeta sem escritório?
"Não há o que fotografar, não escrevo mais, e, olha, o barbeiro só chega às sete."


JOÃO CABRAL DE MELO NETO nasceu em Recife (PE), em 1920. Exerceu funções diplomáticas em Barcelona (Espanha) e outras cidades européias. É autor, entre outros, de "Psicologia da Composição", "O Cão Sem Plumas", "Vida e Morte Severina", "Educação pela Pedra" e "Museu de Tudo". Sua obra poética completa foi editada pela Nova Aguilar. Vive atualmente no Rio de Janeiro (RJ).



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