São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

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+ política

Herança colonial e Guerra Fria moldaram situação atual do Haiti, que tem cerca de 80% da população vivendo abaixo da linha de pobreza e uma expectativa de vida de 52 anos

O Estado contra a nação

Brennan Linsley - 8.jan.2006/Associated Press
Soldado brasileiro que faz parte das tropas das Nações Unidas patrulha favela de Porto Príncipe, no Haiti


EMÍLIA VIOTTI DA COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

Para compreender o que se passa no Haiti hoje é preciso conhecer sua história.
Vitima do colonialismo e do escravismo do século 16 ao 19 e do imperialismo e da Guerra Fria no século 20, a história do Haiti se assemelha em alguns aspectos à de alguns países africanos e do Caribe.
A herança colonial e a tensão política entre os EUA e a União Soviética até 1990 definiram os limites de suas opções políticas e de seu desenvolvimento. Ocupando um terço da Ilha Hispaniola, cujo território compartilha com a República Dominicana, o Haiti foi uma das primeiras colônias européias na América a se tornar independente, em 1804, em virtude de uma revolução iniciada por um levante que reuniu mais de 500 mil escravos.

Dependência dos EUA
Hoje, cerca de 8 milhões de habitantes (95% negros e, os demais, mulatos e brancos) vivem num pequeno território de 27.750 quilômetros quadrados, assolado por furacões e enchentes.
Cerca de 80% deles vivem abaixo do nível de pobreza; o desemprego é endêmico; dois terços da população não está incorporada à economia formal, 66% da força de trabalho está na agricultura, 25% no setor de serviços e apenas 9% no setor industrial. A expectativa de vida em média é de 52 anos e a mortalidade infantil apresenta elevados índices, que variam de 126 a 180 por mil.
Esses índices são indicativos dos imensos problemas que o país enfrenta (aos quais se somam as devastações causada pela Aids e o narcotráfico). Tudo isso ajuda a explicar o grau de violência que impera no país.
A economia revela características tipicamente coloniais. Apesar de o setor industrial ter se desenvolvido nos últimos 30 anos, ele é constituído principalmente por refinarias de açúcar, moinhos de farinha, fábricas têxteis e indústrias de montagem, cujas partes são importadas. A grande maioria da população se dedica a atividades agrícolas, representando 66% da força de trabalho e produzindo café, manga, cana-de-açúcar, arroz, milho, cacau e sorgo.
O Haiti é um país dependente ao extremo. Mais de 81% dos produtos exportados são absorvidos pelos EUA. Os meios de transporte e as vias de comunicação são precários.
Embora o Haiti seja rico em minerais tais como a bauxita, o cobre e ouro, sua exploração é reduzida e em geral beneficia empresas estrangeiras. O comércio com os vizinhos da América Central e do Caribe é de pouca significação; membro do Caricom [Comunidade do Caribe], sua participação nele ainda é limitada.
Seria um engano, no entanto, considerar a economia e as condições de vida do povo como os únicos fatores da instabilidade política do Haiti. Sua história política tem muito a ver com a violência que impera hoje no país. Desde o início houve uma dissociação entre as classes dominantes (camadas dirigentes e seus asseclas) e a grande maioria do povo haitiano. Com o passar do tempo, o hiato entre Estado e nação só tendeu a se acentuar.
Governos se sucederam uns aos outros, incapazes de incorporar a grande maioria da população e de melhorar suas condições de vida, que passaram a ser cada vez mais insuportáveis. Com a migração do campo para as cidades e a multiplicação das favelas, estas se tornaram focos de violência urbana.
A ocupação norte-americana do Haiti (1915-34) agravou a situação, e os projetos de reforma que a acompanharam foram abandonados. Governos fortes, ditadores, demagogos, apoiados por governos estrangeiros ou levados ao poder por movimentos populares, têm se sucedido na história do Haiti. A base do poder é a violência. Todo mundo se lembra do famoso François Duvalier [1907-71], o Papa Doc, cuja dinastia governou o país de 1957 a 1986 -época em que os "tonton-macoutes" [exército privado de Duvalier] perseguiam a oposição e espalhavam o terror entre a população.
O poder se manteve à custa de corrupção e violência indiscriminada. Os códigos tradicionais, que limitavam a violência contra mulheres, crianças e velhos, caíram por terra. A Guerra Fria serviu para justificar a violência. Durante esse período, as instituições civis perderam sua autonomia e se transformaram em instrumentos do Executivo (mídia, igrejas, escolas, o Legislativo e o Judiciário). O Estado tornou-se fonte de enriquecimento pessoal. A oposição foi perseguida e dizimada. O Estado dissociou-se da nação.

Sopro de democracia
Esse período de corrupção, violência e autoritarismo levou ao desenvolvimento desequilibrado, com o enriquecimento de 5% da população e o empobrecimento da maioria, vitimada pela inflação, pelo aumento crescente de impostos e assolada pelo desemprego urbano, e se criou uma situação insustentável, levando ao afastamento de Jean Claude Duvalier [Baby Doc, presidente entre 1971 e 1986] do poder em 1986.
Desde então, abriu-se um período de grande agitação e de renascimento das forças democráticas. A herança dos anos anteriores, no entanto, persistiu. Com a eleição de Jean-Bertrand Aristide [eleito presidente em 1990 e em 2000], houve um sopro de esperança. Seu afastamento [em fevereiro de 2004] abriu um novo período de crise e agitação, que levou à intervenção das Nações Unidas. Foi nessas condições que tropas brasileiras foram chamadas para assegurar a ordem no Haiti.
Considerando a história desse país, é bem provável que grande parte da população se ressinta da interferência de tropas estrangeiras em seu território. Tropas de "pacificação" sempre encontram resistência, e sua função é ingrata. Dadas a situação de miséria e a violência endêmica que imperam nessa região, a situação é ainda mais difícil.


Emília Viotti da Costa é professora emérita da USP e da Universidade Yale (EUA), autora de "Coroas de Glórias, Lágrimas de Sangue" (Companhia das Letras), entre outros livros.


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