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+ política
Herança colonial e Guerra Fria moldaram situação atual do Haiti, que tem cerca de 80%
da população vivendo abaixo da linha de pobreza e uma expectativa de vida de 52 anos
O Estado contra a nação
Brennan Linsley - 8.jan.2006/Associated Press
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Soldado brasileiro que faz parte das tropas das Nações Unidas patrulha favela de Porto Príncipe, no Haiti |
EMÍLIA VIOTTI DA COSTA
ESPECIAL PARA A FOLHA
Para compreender o que se
passa no Haiti hoje é preciso
conhecer sua história.
Vitima do colonialismo e
do escravismo do século 16 ao 19 e
do imperialismo e da Guerra Fria no
século 20, a história do Haiti se assemelha em alguns aspectos à de alguns países africanos e do Caribe.
A herança colonial e a tensão política entre os EUA e a União Soviética
até 1990 definiram os limites de suas
opções políticas e de seu desenvolvimento. Ocupando um terço da Ilha
Hispaniola, cujo território compartilha com a República Dominicana,
o Haiti foi uma das primeiras colônias européias na América a se tornar independente, em 1804, em virtude de uma revolução iniciada por
um levante que reuniu mais de 500
mil escravos.
Dependência dos EUA
Hoje, cerca de 8 milhões de habitantes (95% negros e, os demais,
mulatos e brancos) vivem num pequeno território de 27.750 quilômetros quadrados, assolado por furacões e enchentes.
Cerca de 80% deles vivem abaixo
do nível de pobreza; o desemprego é
endêmico; dois terços da população
não está incorporada à economia
formal, 66% da força de trabalho está na agricultura, 25% no setor de
serviços e apenas 9% no setor industrial. A expectativa de vida em média
é de 52 anos e a mortalidade infantil
apresenta elevados índices, que variam de 126 a 180 por mil.
Esses índices são indicativos dos
imensos problemas que o país enfrenta (aos quais se somam as devastações causada pela Aids e o narcotráfico). Tudo isso ajuda a explicar o
grau de violência que impera no
país.
A economia revela características
tipicamente coloniais. Apesar de o
setor industrial ter se desenvolvido
nos últimos 30 anos, ele é constituído principalmente por refinarias de
açúcar, moinhos de farinha, fábricas
têxteis e indústrias de montagem,
cujas partes são importadas. A grande maioria da população se dedica a
atividades agrícolas, representando
66% da força de trabalho e produzindo café, manga, cana-de-açúcar,
arroz, milho, cacau e sorgo.
O Haiti é um país dependente ao
extremo. Mais de 81% dos produtos
exportados são absorvidos pelos
EUA. Os meios de transporte e as
vias de comunicação são precários.
Embora o Haiti seja rico em minerais tais como a bauxita, o cobre e
ouro, sua exploração é reduzida e
em geral beneficia empresas estrangeiras. O comércio com os vizinhos
da América Central e do Caribe é de
pouca significação; membro do Caricom [Comunidade do Caribe], sua
participação nele ainda é limitada.
Seria um engano, no entanto, considerar a economia e as condições de
vida do povo como os únicos fatores
da instabilidade política do Haiti.
Sua história política tem muito a ver
com a violência que impera hoje no
país. Desde o início houve uma dissociação entre as classes dominantes
(camadas dirigentes e seus asseclas)
e a grande maioria do povo haitiano.
Com o passar do tempo, o hiato entre Estado e nação só tendeu a se
acentuar.
Governos se sucederam uns aos
outros, incapazes de incorporar a
grande maioria da população e de
melhorar suas condições de vida,
que passaram a ser cada vez mais insuportáveis. Com a migração do
campo para as cidades e a multiplicação das favelas, estas se tornaram
focos de violência urbana.
A ocupação norte-americana do
Haiti (1915-34) agravou a situação, e
os projetos de reforma que a acompanharam foram abandonados. Governos fortes, ditadores, demagogos, apoiados por governos estrangeiros ou levados ao poder por movimentos populares, têm se sucedido na história do Haiti. A base do
poder é a violência. Todo mundo se
lembra do famoso François Duvalier
[1907-71], o Papa Doc, cuja dinastia
governou o país de 1957 a 1986
-época em que os "tonton-macoutes" [exército privado de Duvalier]
perseguiam a oposição e espalhavam o terror entre a população.
O poder se manteve à custa de corrupção e violência indiscriminada.
Os códigos tradicionais, que limitavam a violência contra mulheres,
crianças e velhos, caíram por terra. A
Guerra Fria serviu para justificar a
violência. Durante esse período, as
instituições civis perderam sua autonomia e se transformaram em instrumentos do Executivo (mídia,
igrejas, escolas, o Legislativo e o Judiciário). O Estado tornou-se fonte
de enriquecimento pessoal. A oposição foi perseguida e dizimada. O Estado dissociou-se da nação.
Sopro de democracia
Esse período de corrupção, violência e autoritarismo levou ao desenvolvimento desequilibrado, com o
enriquecimento de 5% da população e o empobrecimento da maioria,
vitimada pela inflação, pelo aumento crescente de impostos e assolada
pelo desemprego urbano, e se criou
uma situação insustentável, levando
ao afastamento de Jean Claude Duvalier [Baby Doc, presidente entre
1971 e 1986] do poder em 1986.
Desde então, abriu-se um período
de grande agitação e de renascimento das forças democráticas. A herança dos anos anteriores, no entanto,
persistiu. Com a eleição de Jean-Bertrand Aristide [eleito presidente em
1990 e em 2000], houve um sopro de
esperança. Seu afastamento [em fevereiro de 2004] abriu um novo período de crise e agitação, que levou à
intervenção das Nações Unidas. Foi
nessas condições que tropas brasileiras foram chamadas para assegurar
a ordem no Haiti.
Considerando a história desse
país, é bem provável que grande parte da população se ressinta da interferência de tropas estrangeiras em
seu território. Tropas de "pacificação" sempre encontram resistência,
e sua função é ingrata. Dadas a situação de miséria e a violência endêmica que imperam nessa região, a situação é ainda mais difícil.
Emília Viotti da Costa é professora emérita
da USP e da Universidade Yale (EUA), autora
de "Coroas de Glórias, Lágrimas de Sangue"
(Companhia das Letras), entre outros livros.
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