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NÃO EXISTE ALMOÇO GRÁTIS
Ensino gratuito onera quem não estuda, e tradição corporativista sobrecarrega sistema e inibe produção acadêmica
GLÁUCIO ARY DILLON SOARES
ESPECIAL PARA A FOLHA
Fui convidado para comentar a
crise universitária brasileira,
particularmente três episódios
recentes (crise na PUC-SP; demissão na Fundação Getúlio Vargas-SP e greve das universidades federais), a partir da minha experiência em universidades americanas.
Porém seria metodologicamente
errado pinçar as universidades brasileiras e norte-americanas e compará-las fora de contexto. Elas são contexto-dependentes. Os EUA são um
país muito diferente do Brasil (e dos
demais países industriais também).
O sociólogo Seymour Lipset, em
"American Excepcionalism" [Excepcionalismo Americano, ed. Norton, EUA], argumentou, com fartos
dados, que os EUA são minimalistas
no que concerne o Estado e o setor
público em geral. Qualquer gasto
público encontra logo a pergunta:
"Quem paga por isso?".
Nos EUA, os gastos públicos sociais representavam apenas 15% do
PNB [Produto Nacional Bruto], em
contraste com a Europa Ocidental,
que investia 24%; já a participação
do setor privado nos gastos sociais
era 41% nos EUA, ao passo que na
União Européia variava de 17% no
Reino Unido a 1,5% na Espanha. Na
península Ibérica, como na América
Latina, é baixíssima a participação
do setor privado nos gastos sociais.
Estado místico
Pouquíssimos americanos acham
que a educação superior seja uma
obrigação do Estado. A afirmação de
que "a universidade tem que ser pública, gratuita e de qualidade" é absurda no contexto americano, onde
predominam os modelos que somam zero: se um gasto é criado, alguém tem que pagar por ele. O setor
público não tira dinheiro do ar. Não
há "free lunch". Nada é de graça, nada pode ser de graça. O dinheiro sai
de algum lugar, em geral do bolso do
contribuinte.
Os brasileiros têm uma visão mística do Estado, ao passo que os americanos o desmistificaram. Se o Estado gastar mais, os americanos gastarão menos. Os estudantes americanos pagam caro pela educação: uma
das universidades públicas estaduais
mais baratas dos Estados Unidos é a
de Arizona, cujas taxas e matrícula
custam perto de R$ 10 mil por ano.
Já um aluno de graduação em Harvard gastará, em 2005-6, US$ 38 mil
[R$ 88 mil] em nove meses, incluindo casa e comida.
Como pagam a conta? Muitos trabalham desde cedo e economizam,
juntamente com os pais. É o principal projeto dos pais e dos filhos. Requer sacrifício. As bolsas são raras,
mas os empréstimos a estudantes
são freqüentes. A lógica do sistema
ensina que a renda futura dos estudantes aumentará dramaticamente
em razão de seus estudos. Terão
condições de pagar.
Dessa maneira, o estudo de alguns
não onera outros. Não obstante parte do problema financeiro da PUC-SP se deve à inadimplência dos estudantes já formados que não pagaram seus empréstimos.
O contraste com o Brasil, onde os
pobres pagam pela educação dos ricos e da classe média, é doloroso.
Os EUA gastam mais com a educação superior -7% do PNB- do
que a União Européia, que gasta entre 5% e 6%. Outra contabilidade,
mais restrita, feita pelo Sutton Trust,
nos proporciona números diferentes relativos a 2003: 2,7%, em contraste com 1,3% da UE, com o Reino
Unido gastando apenas 1%. A origem desses gastos, porém, é diferente: nos EUA, quem estuda paga; na
União Européia, como no Brasil, outros pagam pelos que estudam.
O modelo universitário americano
funciona? Lá, funciona: é menos elitista do que o europeu -perto de
dois terços dos jovens americanos
entre 20 e 24 anos estão nas universidades e "colleges", aproximadamente o dobro da percentagem dos
principais países europeus, que andam perto de um terço. O patrimônio das universidades americanas é
muito maior: Oxford e Cambridge
parecem pequenas em comparação
com as maiores universidades de
hoje, sua posição sendo a de 15ª
-nenhuma outra universidade britânica estaria entre as 150 maiores
do mundo.
Desproporção
A qualidade, expressa em pesquisas, prêmios e reconhecimento público, é muito maior nas universidades americanas. Até 2003, o país recebeu mais prêmios Nobel em ciência do que os cinco principais países
europeus somados (Alemanha, Reino Unido, França, Holanda e Rússia), mas essa é uma história incompleta. O grosso dos prêmios da Alemanha e, sobretudo, da França e do
Reino Unido, foi obtido no passado
distante. Oxford e Cambridge chegaram a dominar o cenário institucional, mas o declínio da Inglaterra
foi acentuado. A Alemanha apresentou a maior produção científica entre os países até 1920-29: os alemães
receberam 30% dos prêmios Nobel
antes da Segunda Guerra, mas menos de 10% desde 1940.
Os EUA, nas duas primeiras décadas do século 20, receberam apenas
três e quatro prêmios, respectivamente. Sete décadas mais tarde o
número aumentou para 65! Se usarmos patentes, citações, publicações
em revistas com prestígio, impacto
das revistas e outros indicadores de
excelência, a preponderância americana é muito grande, e a preponderância das universidades americanas é acachapante. Mais da metade
das citações científicas são feitas a
pesquisadores em instituições americanas, o Reino Unido vindo em segundo, distante, com 9%.
Há diferenças entre o comportamento dos professores nos EUA e no
Brasil. Minha experiência diz que os
professores lá trabalham, na média,
muito mais do que nas federais daqui. Mesmo nas melhores universidades, a praxe é dar dois cursos, um
na graduação e outro na pós; todos
ou quase todos pesquisam e publicam. São avaliados pela produção,
pelo ensino, pela obtenção de recursos e pelo serviço que prestam à profissão e à universidade, que inclui
participação em comitês, associações profissionais etc.
Os poucos que não pesquisam e
não publicam não são bem vistos
pelos colegas, mas compensam dando mais cursos, fazendo mais trabalho burocrático, orientando mais
alunos. Nos "colleges" de dois anos e
em alguns dos de quatro anos, a carga docente é muito maior.
O que diferencia as universidades
públicas brasileiras das americanas é
a distribuição do trabalho e da produção. Temos professores e pesquisadores excepcionais, mas o baixo
clero, no Brasil, é maioria e pesa
muito. O etos não é acadêmico e
científico, mas burocrático-sindical
e, freqüentemente, político-ideológico. Pressões para pesquisar e dar
aulas, em algumas instituições, causam escárnio e acusações de fordismo e meritocratismo.
Greves de professores e funcionários de universidades são difíceis de
entender nos EUA e as de alunos são
impensáveis: afinal, eles são os que
mais perdem. Há algum tempo, realizei uma pesquisa para a Capes
[Coordenação de Aperfeiçoamento
de Pessoal de Nível Superior] na Inglaterra, quando um bolsista achou
que eu era um funcionário da casa e
ameaçou abandonar os estudos caso
o valor das bolsas não fosse reajustado. Estava fazendo um favor à Capes. Ameaça interessante...
A irresponsabilidade de professores, funcionários e alunos de federais
e estaduais só pode ser entendida a
partir de uma forte tradição corporativista, junto com o que o antropólogo Roberto DaMatta chama da
"ética do privilégio".
A elite e a classe média acham normal não pagar nada nas universidades, nem o estacionamento de seus
carros, mas acham absurdo que as
empregadas domésticas tenham direitos trabalhistas. A ética do privilégio não é questionada.
As caça-níqueis
Vinculo a crise financeira de várias
instituições universitárias ao crescimento das faculdades caça-níqueis.
Algumas dessas instituições são vergonhosas, de baixíssimo nível, mas
"roubam" alunos de instituições
mais sérias, como as PUCs. A entrada é muito mais fácil, e o custo é consideravelmente menor. As instituições públicas também retiram alunos pagantes das fundações e instituições privadas sem objetivo de lucro, que ficaram espremidas entre
elas e as caça-níqueis.
Porém algumas esqueceram que
são privadas e que não contam com
recursos públicos regulares e se
comportam como se fossem públicas. A cobrança, tanto dos alunos
devedores quanto dos professores
improdutivos, não é muito maior do
que nas instituições públicas. Estão
protegidos pela ética do privilégio.
No Brasil, algumas instituições pequenas apresentam uma produtividade muito maior do que as universidades públicas: na década de 80, fiz
uma comparação entre a produção
científica do Iuperj [Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro] -então com 22 professores- e as demais instituições das
ciências sociais no Rio de Janeiro.
A produção era maior do que a da
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Universidade Estadual do Rio
de Janeiro, Universidade Federal
Fluminense e PUC (RJ) consideradas em conjunto. Como em alguns
departamentos os professores não
fazem pesquisas nem sabem como, a
demanda por pesquisas mudou para fundações e instituições privadas,
muitas das quais são ONGs. Essa
mudança foi ajudada pela burocracia impenetrável e pela instabilidade
das universidades.
Aulas e pesquisas
É difícil imaginar a demissão do
professor Marcelo Neves acontecendo numa universidade norte-americana. Negar ao professor licença para participar da Anpocs dificilmente
aconteceria. As universidades de
qualidade estimulam seus professores a irem a congressos relevantes e
apresentarem trabalhos.
Em geral, vários professores e alguns alunos participam dos principais congressos e todos tomam as
medidas necessárias para não prejudicar as aulas. Em contraste, nas instituições dedicadas ao ensino, como
os "colleges" menores, a participação em congressos e seminários é
muito pequena, mas não é desestimulada. Porém a participação, como observador, de eleições em outro país durante três semanas -se
for essa a duração- excede os parâmetros que conheço.
Muitos colegas participaram, como observadores, das difíceis eleições na América Central, após guerras civis. Vi e participei de eventos
semelhantes, mas de duração muito
menor, além do que os participantes
tinham muito tempo de casa. Ou seja, a participação em eventos é corriqueira, dependendo do caráter da
instituição, da duração da licença e
da antigüidade do docente.
A existência de uma lista internacional de protesto contra a demissão
também seria inusitada em instituições americanas, exceto em questões relacionadas a perseguições políticas. As demissões são vistas como uma questão interna das instituições. As demissões de professores, raras no Brasil e raríssimas nas
federais e estaduais brasileiras, são
freqüentes nos EUA, onde os professores iniciantes só adquirem estabilidade após quatro a seis anos de
casa. A maioria não a adquire.
Não obstante decisões desse tipo
são tomadas em coletivos com a
participação de professores de mais
graduação.
Tratamos de instituições, países e
culturas diferentes, sendo equivocado comparar as universidades fora
de contexto. Não é tão simples.
Gláucio Ary Dillon Soares é doutor em sociologia pela Universidade de Washington e
professor aposentado da Universidade da
Flórida (EUA). É autor de "A Democracia Interrompida" (FGV), entre outros livros.
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