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MASSA E ELITE RACHAM SISTEMA UNIVERSITÁRIO FRANCÊS
LUIZ FELIPE DE ALENCASTRO
ESPECIAL PARA A FOLHA
O
ensino universitário francês integra-se no maior
ministério do governo, o
da Educação Nacional. Do
bedel da escolinha de Caiena, na
Guiana Francesa, aos prêmios Nobel
que ensinam no Collège de France,
em Paris, um milhão de funcionários do mesmo ministério se repartem pelas escolas e universidades da
França metropolitana e dos territórios ultramarinos.
No total, os gastos com a educação
nacional representam 7% do PNB da
França, proporção que situa esses
investimentos acima da média dos
países desenvolvidos.
Estribado na doutrina republicana
e centralista herdada da Revolução
de 1789, o ensino público facilitou
durante décadas a integração social
no país e o destaque internacional
dos pesquisadores franceses. Seguindo seus princípios cardeais
-laicidade, gratuidade e obrigatoriedade-, a escola primária e secundária desemboca em duas esferas paralelas de ensino superior.
A primeira, mais extensa e abrangente, formada pelas 92 universidades públicas, recebe a maior parte
dos estudantes. Note-se que, depois
da crise de Maio de 68, as grandes
universidades foram divididas em
unidades menores, reagrupando
apenas alguns departamentos.
Desse ponto de vista, não há mais
na França instituições universitárias
reunindo faculdades de todas as disciplinas, sob a autoridade de um reitor num único campus, como é o caso da USP, da Universidade Federal
do Rio de Janeiro ou da Universidade Federal de Minas Gerais ou da
maioria das universidades americanas, européias e asiáticas.
A segunda esfera, mais centralizada e seletiva, corresponde às "escolas" de ensino superior (Escola Normal Superior, Escola Politécnica, Escola Nacional de Administração).
Admitidos por um concurso mais rigoroso e submetidos a controles intensificados, os diplomados das "escolas" formam, desde o final da Segunda Guerra, a elite intelectual e
administrativa do país.
Tanto nas universidades quanto
nas "escolas", o financiamento das
pesquisas depende do CNRS (Centro Nacional de Pesquisa Científica),
cujas funções inspiraram no Brasil a
criação do CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico).
No contexto das reformas pós-Maio de 68, as "escolas" iniciaram
um processo de descentralização,
deslocando parte de suas atividades
de Paris para metrópoles regionais,
como Lyon ou Grenoble. Tais reformas não impediram as crises sucessivas que sacodem o sistema educacional francês de cima a baixo.
Na base da rede pública, as revoltas
que incendiaram os subúrbios de
Paris no mês de novembro mostraram, de maneira estrepitosa, que a
escola republicana perdeu boa parte
de sua capacidade de integração social. Num contexto de desemprego e
de multiculturalismo acentuados
pelas correntes imigratórias, comprovou-se o fiasco dos métodos tradicionais e das repetidas mudanças
no ensino.
No topo do sistema, a situação
também é difícil e contribui para difundir a idéia do declínio da França.
Na realidade, os especialistas vêm
apontando há bastante tempo os
percalços da educação pública. Na
ausência de enquadramento pedagógico adequado, a política de escolarização mais ampla levou a uma
"massificação" das escolas secundárias e das universidades.
Organismo sem estratégia
Paralelamente, as "escolas" guardaram seu perfil elitista, travando a
mobilidade social. Um estudo recente mostrou que os executivos ou
profissionais liberais representam
apenas 14% dos franceses que têm filhos entre 18 e 25 anos. Mas os filhos
dessas categorias sociais representam 62% dos alunos das "escolas" e
35% dos estudantes das universidades. No campo da pesquisa, o CNRS
tornou-se um organismo difícil de
gerir e desprovido de estratégia. O
governo do premiê Dominique Villepin anunciou a dotação de mais 1
bilhão de euros para a pesquisa em
2006 e a criação de 3.000 novos postos de pesquisadores.
Mas o CNRS está paralisado por
uma disputa interna entre diretores,
entre a reorganização em torno de
uma Agência Nacional de Pesquisa e
os defensores de mais autonomia
para os diferentes laboratórios.
No horizonte mais próximo, o desenvolvimento de outro pólo universitário na região parisiense em
que se situa a Biblioteca François
Mitterrand, que já está sendo chamada de "novo Quartier Latin",
confirma o empenho do governo em
consolidar Paris como um grande
centro universitário europeu.
Noutra escala, há planos mais ambiciosos. O processo dito "Sorbonne-Bolonha", lançado na universidade parisiense e na universidade
italiana, iniciou uma equiparação de
estudos que desemboca num espaço
integrado do ensino superior europeu. Invocando a memória dos
monges medievais e dos humanistas
do Renascimento -"que trabalhavam para seus contemporâneos e
para as futuras gerações"-, o historiador e dirigente polonês Bronislaw
Geremek e o biólogo francês J.D.
Vincent propõem um novo avanço.
Num artigo recente no "Le Monde", eles defendem a criação, pelos
países da União Européia, de uma
grande universidade baseada em Estrasburgo. Nessa cidade francesa,
que é sede do Parlamento Europeu,
a nova "Universidade da Europa"
ajudaria a coordenar as pesquisas e a
estimular a mobilidade dos estudantes e professores do continente.
Luiz Felipe de Alencastro é professor na
Universidade de Paris-Sorbonne e autor de
"O Trato dos Viventes" (Companhia das Letras), entre outros livros.
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