São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

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Entre a biografia e a ficção histórica, "A Bruxa de Kepler" narra a vida e obra do astrônomo que preparou o terreno para a descoberta da lei da gravidade por Newton, mas sem abdicar da contemplação religiosa

O céu como limite

RONALDO ROGÉRIO DE FREITAS MOURÃO
ESPECIAL PARA A FOLHA

As descobertas de Johannes Kepler (1571-1630) assim como do seu contemporâneo Galileu Galilei constituíram um estágio fundamental entre as idéias de Nicolau Copérnico e as de Isaac Newton. Eles foram as principais figuras que transformaram a cosmologia heliocêntrica numa verdade intelectualmente respeitável, ao elaborarem uma descrição física mais realista do universo. Ambos viveram num tempo de profundas perturbações e disputas sectárias de natureza político-religiosas.
Um dos grandes méritos de "A Bruxa de Kepler", de James A. Connor, é o de valorizar a importância de Kepler como homem que confirmou Copérnico bem como quem elaborou a primeira e minuciosa tentativa de definir a lei da gravidade. Com efeito, ao introduzir a existência, no Sol, de uma "anima movens", de um espírito de movimento, de um "vigor movens" que se enfraquecia à medida que um planeta se afastava do Sol, assim como ao estabelecer as três leis que regem o movimento planetário, Kepler armou o cenário que permitiria a Newton estabelecer a lei da gravidade -inclusive a idéia de que o efeito da ação de movimento diminuía com a distância.


Kepler também foi grande como Gandhi e Martin Luther King Jr. e lutou pela paz e a reconci-liação entre as igrejas cristãs


Na realidade, Kepler substituiu o conceito de espírito movente pelo de um movimento mecânico, de uma força de atração, deixando para Newton a tarefa de definir essa ação à distância. Apesar de não ter sido reconhecido "por acaso ou intencionalmente por Newton", Kepler teve uma importância capital na sua obra. Aliás, alguns amigos e defensores de Newton, dentre eles o astrônomo inglês Edmond Halley, censuraram-no por não ter atribuído a Kepler o devido reconhecimento.
Toda essa visão grandiosa do universo estava associada à contemplação divina, a qual Kepler procurava estabelecer por meio de fórmulas matemáticas. Em sua visão de universo, Kepler sustentava que ela só poderia ser encontrada nos mistérios harmoniosos da geometria, e não nas propriedades da matemática. Três séculos depois, Einstein retomaria essa idéia ao desenvolver a teoria geral da relatividade e ao geometrizar o espaço-tempo.
Aliás, como Nicolau de Cusa, Kepler estabeleceu uma distinção fundamental, na geometria existente, entre a reta e a curva; a curva representava Deus e, a reta, os humanos.
Na realidade, a busca da esfera celeste era a busca de Deus. Mais tarde, ao enviar ao seu mestre Mästlin os originais do seu livro "Mysterium Cosmographicum" (1596), Kepler foi censurado pelo mesmo por não ter levado em consideração a espessura das esferas. A resposta de Kepler foi de que as esferas não eram reais, mas ficções matemáticas, recorrendo às observações de Tycho Brahe sobre o cometa de 1577 para confirmar sua argumentação.
Sua vida, sua obra e sua matemática estiveram sempre voltadas para Deus. Nas harmonias matemáticas profundamente ocultas do universo, Kepler encontrou Deus. Ao contrário de Newton, que separava suas especulações místicas das científicas, Kepler as misturava. "Sua vida como cientista era tão teológica quanto científica" (pág. 93).

Galileu e Gandhi
Na realidade, para Connor, "Johannes Kepler foi uma das mentes científicas mais poderosas do seu século -ele foi páreo para Galileu em quase todos os aspectos, um precursor de Newton, um homem que desbravara o caminho para a maioria das descobertas importantes que definiram a ciência no século 17".
E, no entanto, Kepler também foi grande como Gandhi e Martin Luther King Jr. foram. Ele lutou pela paz e pela reconciliação entre as igrejas cristãs, mesmo quando isso por pouco não lhe custou a vida. Algumas pessoas nascem para ser grandes; algumas se tornam grandes pelos acontecimentos da sua época.
Outras, como King, Gandhi e Kepler, se tornam grandes porque fazem escolhas repletas de coragem moral. Kepler era um crente luterano e jamais se converteria ao catolicismo, mesmo que isso fosse positivo para a sua carreira. As pessoas ao seu redor saltavam de uma igreja para outra. O sogro de Kepler fez isso.
O mesmo fizeram muitos dos seus conhecidos e rivais, simplesmente para ficarem em melhor situação política ou social ou para não perderem seus bens terrenos. Mas Kepler acreditava na Reforma; ele acreditava nela de coração e alma. Ele não abandonou a Igreja Luterana nem quando esta o excomungou. Quando a Contra-Reforma expulsou os luteranos de suas casas, ele seguiu junto com eles.
Esse é o homem que Connor procura revelar ao mundo por meio do relato um pouco fantasioso do julgamento da mãe, acusada de feitiçaria. Ao focalizar a prisão de Katharina, mãe de Kepler, Connor produz um relato grotesco do julgamento, restabelecendo o ambiente preconceituoso existente contra as mulheres independentes e corajosas que, no início do século 17, procuravam defender as suas idéias com liberdade.
Não devemos esquecer que, para compreender o Kepler homem, filósofo e cientista, é preciso compreender primeiro o Kepler religioso -ou melhor, o luterano-, para o qual "toda a ciência era no fundo uma prece".
Para fazê-lo, Connor procurou restaurar o clima de histeria existente no princípio do século 17, quando reconstituiu com detalhes o ambiente político-religioso que antecedeu e dominou a Guerra dos 30 Anos. Nenhuma outra biografia kepleriana conseguiu com tanto êxito reconstituir o contexto no qual viveu o astrônomo Kepler. Ao descrever o cenário religioso da época -uma das principais preocupações de Connor no tratamento biográfico de Kepler-, lamentavelmente as realizações científicas keplerianas ficaram em segundo plano.
O livro de Connor constitui um relato histórico muito bem pesquisado. Na verdade, "A Bruxa de Kepler" se situa na difícil fronteira que separa a biografia clássica da ficção histórica, pois o escritor nunca hesitou em descrever os sentimentos interiores dos seus personagens, extrapolando-os livremente. Isso não constitui um defeito, pois torna a leitura mais atraente. Finalmente, aconselho a sua leitura para o público leigo em geral interessado na história da ciência e, por que não?, para o historiador das ciências.

Ronaldo Rogério de Freitas Mourão é astrônomo, autor de "Kepler - A Descoberta das Leis do Movimento Planetário" (Odysseus), entre outros livros.

A Bruxa de Kepler
380 págs., R$ 53 de James A. Connor. Tradução de Talita M. Rodrigues. Ed. Rocco (av. Presidente Wilson, 231, 8º andar, Centro, CEP 20030-905, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 3525-2000).



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