São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

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A poesia do palco

Tragédias clássicas de Racine e Corneille, como "Fedra" e "O Cid", são reeditadas em tradução bem-cuidada

MARCIO AURELIO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Estão sendo lançados três volumes de traduções de Jenny Klabin Segall de importância incontestável para o teatro, para a literatura e para as artes em geral. Um é dedicado a Corneille, com as peças "O Cid", "Horácio" e "Polieucto"; e dois volumes são dedicados a Racine, contendo, o primeiro, as peças "Andrômaca" e "Britânico", e o segundo, "Fedra", "Ester" e "Atália".
A contribuição importante das traduções se fez presente em outras edições anteriores, mas, reunidas no presente formato, se tornam agora um privilégio, por possibilitar um olhar mais abrangente sobre a produção destes dois grandes artistas da cultura francesa. A oportunidade de ler essas peças permite visão bastante clara do movimento transformador do conteúdo e da forma em decorrência das mudanças sociais e políticas em que viveram ambos os autores, levando-os a outra margem dentro de sua produção.
Os principais homens de letras do Brasil prefaciaram edições anteriores de obras traduzidas por Segall, sempre com elogios. O domínio da tradutora em várias línguas venceu barreiras de nacionalidade e nos devolveu em língua portuguesa os grandes poetas, vigas estruturais do classicismo francês.

Discurso autônomo
Intelectual e artista de sólida formação humanista, Segall nos proporciona deleite e puro encantamento com o rigor de seu trabalho. Além das questões técnicas que envolvem a tradução da obra literária -temos que reconhecer que não são poucas nem fáceis-, é preciso acrescentar um aspecto: o de não só pensar no plano literário mas também no dramático.
Isso é assunto para outro tipo de especialização. Amplia-se, e muito, o leque no que diz respeito à cultura e ao conhecimento.
Sua produção é, sem dúvida, merecedora de elogios e também das possíveis e questionáveis ressalvas pelas críticas recebidas anteriormente. São pontos de vista. Ela fazia suas opções e se responsabilizava por elas. A tradutora, pela audácia, é transparente em sua realização, dado o tipo de investimento que pode ser revelado pelas opções das obras escolhidas, e que realizou plenamente -servindo para sublinhar a amplitude da complexa cultura revelada em seu trabalho.
Isso pontualmente colocado nos leva à necessidade de reforçar o que também nos parece importante: traduzir para teatro exige outro tipo de conhecimento e cultura, isto é, que o tradutor conheça as poéticas a que estão circunscritas cada obra, sua concepção enquanto discurso autônomo para uma cena viva e vibrante.
Esse tipo de conhecimento fatalmente levará o tradutor a buscar outros tipos de opção e, no caso em questão, a opção foi pelo mais difícil, que é o de conservar o mesmo número de versos e a manutenção da mesma estrutura formal de ritmo e rimas.
Dado o grande número de traduções legadas ao teatro, além do francês, traduziu brilhantemente do alemão. Poderíamos dizer que se trata de trabalho para muitas vidas. Fica claro que a tradutora, aplicadíssima, revisou sempre com rigorosas e sistemáticas correções as diferentes edições que vieram a público, até a sua morte (1967).
Conhecedora do teatro clássico francês, era sabedora dos entraves e dificuldades técnicas no que diz respeito à oralidade de dificílima execução dos textos originais nos palcos. Para os próprios baluartes do seu teatro, nos apresenta em suas traduções soluções, ou melhor, interpretações lapidares, nos remetendo a uma dimensão da poesia cênica onde os valores humanos são apresentados em alta elaboração.
Desenha-nos, cenicamente, possibilidades de sonoridades dramáticas, ritmos e sons da melhor música.

Dos épicos aos detalhes
O teatro está sempre aliado à música do tempo, e isso é de sua natureza mítica. Retraduzi-lo significa reapropriar-se completamente de conceitos que foram estruturais para serem usados poeticamente como representação da sociedade.
Corneille (1606-84) era advogado como seu pai. Sua profissão marca o traço moral para a argumentação de suas peças. Pensemos no caso das três peças apresentadas no presente volume, que nos proporcionam saborear as opções poéticas usadas para compor sua mitologia de heróis, uma obra apaixonada e moralista.
O Racine (1639-99) apresentado ao Brasil pela tradutora está configurado em dois momentos de sua produção e que se revelam muito diferentes; o primeiro é ligado à mitologia antiga e, o segundo, ao lirismo bíblico. A título de curiosidade, mas que pode ser reveladora da transformação da realidade, observemos os nomes dos protagonistas destas peças e veremos, de um autor para o outro, a mudança de nomes masculinos para femininos.
Do mundo épico para o mundo dos detalhes. A história nos auxilia na compreensão do fenômeno.
A tradução destas obras, trabalho hercúleo, representa um grande legado em língua portuguesa. Revela o caráter de tão nobre personalidade. Seu acervo pessoal planta a base estrutural da montagem do maior Centro de Documentação em Artes Cênicas de São Paulo e talvez do Brasil. Este leva seu nome, e se encontra na iminência de desaparecer.
Que o ressurgimento das reedições do trabalho de Jenny Klabin Segall sirva como alerta para a preservação também deste patrimônio da cultura brasileira.


Marcio Aurelio é diretor teatral e professor na Escola de Comunicações e Artes da USP.

Andrômaca/Britânico
188 págs., R$ 29,80
de Racine. Trad. Jenny Klabin Segall. Martins Fontes (r. Conselheiro Ramalho, 330, CEP 01325-000, SP, tel. 0/ xx/11/ 3241-3677).
Fedra/Ester/Atália
274 págs., R$ 37,50
de Racine. Tradução de Jenny Klabin Segall. Martins Fontes.
O Cid/Horácio/Polieucto
298 págs., R$ 42,50
de Corneille. Tradução de Jenny Klabin Segall. Martins Fontes.



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