São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

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O Oriente na rota do Atlântico Sul

"Peregrinação", do viajante português Fernão Mendes Pinto, faz um relato saboroso das hierarquias sociais, práticas culturais e políticas das civilizações da Ásia e antecipa a dinâmica da globalização no século 16

JOÃO FRAGOSO
ESPECIAL PARA A FOLHA

Chegado o sacerdote à cidade de Martabão [em Mianmar] e porque a grandíssima dignidade de sua pessoa não permitia, em nenhuma hipótese, tocar os pés no chão, o rei determinou que fosse desembarcado ao ombro, por cima dos príncipes e senhores do reino, até o mais suntuoso templo de toda cidade..."
Essa cena cinematográfica é uma das várias narradas por Fernão Mendes Pinto na sua "Peregrinação" pela Ásia em meados do século 16. Se ela é verdadeira ou não, só Deus sabe. Mas, com certeza, ela informa a percepção de um português, vindo do braço popular do Antigo Regime europeu, sobre as hierarquias socais, as práticas culturais e as políticas das refinadas civilizações do Oriente da época.


A Europa tinha pouco a oferecer ao Oriente, portanto os portugueses preferiam se dedicar ao tráfico regional do Índico


Páginas antes, ele descreve assim Nanquim, então segunda cidade da China: "As casas dos magistrados e demais autoridades que governaram províncias e reinos, têm torres muito altas, com cumes cobertos de ouro, nelas possuem seus armazéns de armas, seus tesouros, sedas e uma infinidade de porcelanas. Afirmaram-nos os chins que tem esta cidade 800 mil vizinhos e 24 mil casas de mandarins, 130 açougues, 8.000 ruas, mil mosteiros, 30 prisões e 10 mil teares de seda".
Parece que Mendes Pinto não era "grande especialista em números". Na verdade, poucos viajantes tinham o dom da estatística, principalmente quando descreviam sociedades diferentes da sua.

Europa rústica
Porém é justamente essa falta de rigor um dos aspectos interessantes desses depoimentos. Os viajantes tendiam a realçar, nas regiões desconhecidas, o que os surpreendiam. Não custa lembrar que, no Quinhentos, a população de Portugal não ultrapassava a 1,5 milhão de habitantes, ou seja, duas Nanquins. No resto do continente, menos de nove cidades tinham mais de 100 mil habitantes. Essa Europa, apesar de ciosa das diferenças hierárquicas, era marcadamente camponesa, sacudida por crises de alimentos e de mortalidade; em suma, sua aristocracia, diante dos senhores birmaneses e chineses, não passava de rústica.
Tendo Mendes Pinto vivido por 12 anos na "estreiteza da miséria" na casa de seu pai, em Montemor-o-Velho, dela foi levado por seu tio a Lisboa e, depois de servir a fidalgos, embarcou para a Índia.
Assim, nosso herói estava longe de ser cavaleiro ou humanista em excursão científica. Fora para a Índia, Birmânia, China e o Japão, entre outras paragens, para fugir da pobreza e, com muita sorte, conseguir alguma riqueza. Nesse périplo, foi soldado da fortuna, agente no comércio particular do capitão-mór de Málaca, náufrago, escravo de mouros e prisioneiro de chineses.
As suas aventuras ocorreram, particularmente, no Sudeste Asiático. Ao contrário do Norte da África e do Índico Ocidental, naquela região o impulso mercantil predominava sobre o militar, destacando-se a pequena e a média nobreza assim como os elementos "mais marginais da sociedade portuguesa". Talvez por isso Mendes Pinto tenha embarcado na fusta do capitão Antônio de Faria, oficial que partiu de Málaca com incumbências militares, mercantis e diplomáticas em direção ao golfo de Bengala e para além.
Nessa viagem, como de costume, Faria pretendia realizar diversos negócios particulares custeados por mercadores de Málaca, pois a coroa lusa permitia aos funcionários misturarem o serviço à monarquia com seus interesses particulares.
Da mesma forma, os empreendimentos de Faria reafirmam algo já sabido: a Europa tinha pouco a oferecer ao Oriente, portanto os portugueses preferiam se dedicar ao tráfico regional do Índico do que às ligações entre os dois continentes.

Prata, drogas e seda
Daí Pegu (reino situado no atual Mianmar) ocupar diversos capítulos da "Peregrinação". Tal reino, com seus arrozais e templos budistas, consistia na desembocadura de importantes rotas comerciais terrestres e fluviais. Para o comércio asiático ele oferecia o lacre de Martabão, almíscar, pedras preciosas e prata; sendo que os primeiros produtos iam também para a Europa. Como importador, Pegu, por intermédio de Málaca, recebia drogas da Insulíndia, sedas e porcelanas da China e anfião de Áden (Arábia).
Enfim, a "Peregrinação", além de apresentar o Estado da Índia luso e as façanhas de portugueses (mercadores, soldados, padres e proscritos) na Ásia, nos dá pistas para entender um pouco mais as conjunturas que produziram o sistema atlântico e o Estado do Brasil. Para Vitorino Magalhães Godinho, em meados do século 16, sendo o império luso atacado nos seus diferentes quadrantes, em particular no Estado da Índia, Lisboa começou a dar mais atenção aos tratos do Atlântico Sul.
Subramanyam, mais tarde, fez reparos a essa abordagem. A presença portuguesa na Ásia quinhentista coincidiu com a expansão dos otomanos no mar Vermelho, dos persas e mongóis pela Índia.
Porém, até o final do Quinhentos, tais movimentos não implicaram em reveses mortais para os lusos. Para Mendes Pinto, aquele recuo ocorreu em princípios do século 17, com as mudanças dos ventos militares e políticos na Birmânia. Pois bem, seja no século 16 ou no 17, o fato é que o realinhamento dos impérios na Ásia levaria ao recuo do Estado da Índia, até então principal pedra da coroa portuguesa, e ao realce da produção escravista no Brasil e do tráfico negreiro.
Desse modo, a compreensão da história do Atlântico Sul passa pelos movimentos dos impérios asiáticos. Estamos, assim, diante de uma história globalizada, onde os destinos de diferentes mundos aparecem conectados. Pois bem, parte da "Peregrinação" de Fernão Mendes ocorreu no cenário privilegiado daquela conexão.

João Fragoso é professor titular de teoria da história da Universidade Federal do Rio de Janeiro, autor de, entre outros, "Homens de Grossa Aventura" (Civilização Brasileira).

Peregrinação
432 págs., R$ 59 (vol. 1) 384 págs., R$ 59 (vol. 2) de Fernão Mendes Pinto. Nova Fronteira ( r. Bambina, 25, Botafogo, CEP 22251-050, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/21/ 2131-1111).



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