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"Memória e História" reúne crônicas do historiador Boris Fausto,
publicadas entre 1997 e 2005 e mantendo-se distantes das ideologias
Passado a quente
RONALDO VAINFAS
ESPECIAL PARA A FOLHA
Boris Fausto, colunista do
Mais!, é, sem dúvida, um dos
principais historiadores brasileiros. Sua nova obra, cujo
título "Memória e História" sugere
texto de cariz teórico, na verdade é
um livro de crônicas. Pequenos artigos escritos na virada do milênio,
entre 1997 e 2005, distribuídos em
quatro grandes conjuntos: "América
Latina - Semelhanças e Estranhamentos"; "História, Interpretações e
Idéias"; "Temas Brasileiros"; e "Cenas de Micro-História".
São todos textos saborosos, que
cativam o leitor por completo, quer
pelos temas tratados, quer pela qualidade literária. De maneira que o
leitor que pretenda se distrair com
assuntos sérios, ainda que não seja
do ramo, encontrará no volume o livro certo. E, de quebra, aprenderá
muito de história. A da América Latina, que o autor percorre mesclando conhecimento histórico com diário de viagens. A da história européia, em especial a contemporânea,
com destaque para a era dos totalitarismos. A do Brasil, certamente, sobretudo a republicana, a era Vargas
e o regime militar.
Destaca-se no livro o método genial de propor reflexões de fundo a
partir da narrativa de um caso à toa
ou do comentário sobre um grande
fato. Vem como não quer nada e logo propõe a charada.
Como no texto sobre o Hino do
Brasil, cujo célebre verso "deitado
eternamente em berço esplêndido"
é associado ao Macunaíma, herói de
Mário de Andrade que fez da preguiça uma virtude. Ou como no texto
sobre o abuso do "juridiquês", a linguagem técnica dos advogados e juízes, pretexto para discutir as vozes
incontroláveis do mundo jurídico. O
método funciona e dá o recado pretendido, por meio de palavras "altas
e claras, como as estrelas", diria Vieira no remoto século 17.
Lapsos e temores
Os textos de microistória são delícias para saborear. Os comícios da
praça da Sé, as conversas com o barbeiro, "seu Mário", as festas de fim
de ano, a cobiça de passaportes brasileiros na Europa dos anos 1970, as
decepções e temores da terceira idade, os lapsos de memória. "Crenças
Duvidosas" é texto impagável: desnuda a imprecisão da ciência médica
ao comentar artigo da "New Scientist", segundo o qual a prática da
masturbação desde os 20 anos reduz, no homem, ao chegar aos 50, o
risco de câncer na próstata. Pode ser,
pode não ser. Temos aí a prova irrefutável de que, sem evidências, nenhuma ciência merece crédito.
Da ciência geral à particular, no caso a história, o melhor do livro reside
na opção determinada do autor, para não dizer vocação, em se distanciar de estereótipos e ideologismos.
E nisso encontramos a crítica a um
possível conceito de "memória" que
"congela o passado" ou o recria, seja
para amortecer conflitos, seja para
favorecer negociações.
É um conceito de memória aparentado à visão hiper-relativista da
história, bem ao gosto do pós-modernismo. Um conceito de memória
que canibaliza a história para transformá-la em cardápio de múltiplas
interpretações possíveis, todas válidas, dependentes do sujeito, estejam
elas ou não ancoradas em fatos.
O erro de Hobsbawm
Boris Fausto não é de fazer esse tipo de concessão. Assim, não hesita
em dizer, por exemplo, que Eric
Hobsbawm erra feio ao considerar o
comunismo stalinista "universalista" em seus propósitos, à diferença
do nazismo nacionalista e racista
-embora ambos tenham sido regimes violentos e antidemocráticos.
Não hesita em mostrar as ilusões
do nosso grande poeta, Carlos
Drummond de Andrade, quando
escreveu, nos anos 1940, sua "Ode a
Stalingrado" -a grande batalha que
virou a Segunda Guerra Mundial-,
sem deixar de explicar a razão do engano. Não hesita em admitir que,
homem do Exército, filho de imigrante alemão e gaúcho, o general
Ernesto Geisel teve papel "fundamental para tirar o país de um período sombrio, ao qual ele próprio estivera associado". Não hesita em dizer
-e isso aparece em alguns artigos
do livro- que "o comunismo e o
nazi-fascismo, diferentes entre si, foram a grande árvore de desgraças do
século 20".
Moral da história: o historiador
deve se afastar das ideologias, desconfiar dos relativismos autocentrados, distinguir com nitidez história e
memória, não embarcar no discurso
fácil das múltiplas versões e da plasticidade multicolorida de interpretações delirantes. Se o assunto é história, há que ter cuidado com a prova
dos fatos. "Digam o que disserem os
chamados pós-modernos", diz Boris Fausto, "há uma verdade histórica que se encontra assentada". E isso
não tem a ver com teoria, mas com
"empiria". Assino embaixo.
Ronaldo Vainfas é professor titular de história na Universidade Federal Fluminense e
autor de, entre outros livros, "Trópico dos
Pecados" (ed. Nova Fronteira).
Memória e História
262 págs., R$ 39
de Boris Fausto. Ed. Graal (r. do Triunfo, 177,
CEP 01212-010, SP, tel. 0/xx/11/3337-8399).
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