São Paulo, domingo, 22 de janeiro de 2006

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"Memória e História" reúne crônicas do historiador Boris Fausto, publicadas entre 1997 e 2005 e mantendo-se distantes das ideologias

Passado a quente

RONALDO VAINFAS
ESPECIAL PARA A FOLHA

Boris Fausto, colunista do Mais!, é, sem dúvida, um dos principais historiadores brasileiros. Sua nova obra, cujo título "Memória e História" sugere texto de cariz teórico, na verdade é um livro de crônicas. Pequenos artigos escritos na virada do milênio, entre 1997 e 2005, distribuídos em quatro grandes conjuntos: "América Latina - Semelhanças e Estranhamentos"; "História, Interpretações e Idéias"; "Temas Brasileiros"; e "Cenas de Micro-História".
São todos textos saborosos, que cativam o leitor por completo, quer pelos temas tratados, quer pela qualidade literária. De maneira que o leitor que pretenda se distrair com assuntos sérios, ainda que não seja do ramo, encontrará no volume o livro certo. E, de quebra, aprenderá muito de história. A da América Latina, que o autor percorre mesclando conhecimento histórico com diário de viagens. A da história européia, em especial a contemporânea, com destaque para a era dos totalitarismos. A do Brasil, certamente, sobretudo a republicana, a era Vargas e o regime militar.
Destaca-se no livro o método genial de propor reflexões de fundo a partir da narrativa de um caso à toa ou do comentário sobre um grande fato. Vem como não quer nada e logo propõe a charada.
Como no texto sobre o Hino do Brasil, cujo célebre verso "deitado eternamente em berço esplêndido" é associado ao Macunaíma, herói de Mário de Andrade que fez da preguiça uma virtude. Ou como no texto sobre o abuso do "juridiquês", a linguagem técnica dos advogados e juízes, pretexto para discutir as vozes incontroláveis do mundo jurídico. O método funciona e dá o recado pretendido, por meio de palavras "altas e claras, como as estrelas", diria Vieira no remoto século 17.

Lapsos e temores
Os textos de microistória são delícias para saborear. Os comícios da praça da Sé, as conversas com o barbeiro, "seu Mário", as festas de fim de ano, a cobiça de passaportes brasileiros na Europa dos anos 1970, as decepções e temores da terceira idade, os lapsos de memória. "Crenças Duvidosas" é texto impagável: desnuda a imprecisão da ciência médica ao comentar artigo da "New Scientist", segundo o qual a prática da masturbação desde os 20 anos reduz, no homem, ao chegar aos 50, o risco de câncer na próstata. Pode ser, pode não ser. Temos aí a prova irrefutável de que, sem evidências, nenhuma ciência merece crédito.
Da ciência geral à particular, no caso a história, o melhor do livro reside na opção determinada do autor, para não dizer vocação, em se distanciar de estereótipos e ideologismos. E nisso encontramos a crítica a um possível conceito de "memória" que "congela o passado" ou o recria, seja para amortecer conflitos, seja para favorecer negociações.
É um conceito de memória aparentado à visão hiper-relativista da história, bem ao gosto do pós-modernismo. Um conceito de memória que canibaliza a história para transformá-la em cardápio de múltiplas interpretações possíveis, todas válidas, dependentes do sujeito, estejam elas ou não ancoradas em fatos.

O erro de Hobsbawm
Boris Fausto não é de fazer esse tipo de concessão. Assim, não hesita em dizer, por exemplo, que Eric Hobsbawm erra feio ao considerar o comunismo stalinista "universalista" em seus propósitos, à diferença do nazismo nacionalista e racista -embora ambos tenham sido regimes violentos e antidemocráticos.
Não hesita em mostrar as ilusões do nosso grande poeta, Carlos Drummond de Andrade, quando escreveu, nos anos 1940, sua "Ode a Stalingrado" -a grande batalha que virou a Segunda Guerra Mundial-, sem deixar de explicar a razão do engano. Não hesita em admitir que, homem do Exército, filho de imigrante alemão e gaúcho, o general Ernesto Geisel teve papel "fundamental para tirar o país de um período sombrio, ao qual ele próprio estivera associado". Não hesita em dizer -e isso aparece em alguns artigos do livro- que "o comunismo e o nazi-fascismo, diferentes entre si, foram a grande árvore de desgraças do século 20".
Moral da história: o historiador deve se afastar das ideologias, desconfiar dos relativismos autocentrados, distinguir com nitidez história e memória, não embarcar no discurso fácil das múltiplas versões e da plasticidade multicolorida de interpretações delirantes. Se o assunto é história, há que ter cuidado com a prova dos fatos. "Digam o que disserem os chamados pós-modernos", diz Boris Fausto, "há uma verdade histórica que se encontra assentada". E isso não tem a ver com teoria, mas com "empiria". Assino embaixo.


Ronaldo Vainfas é professor titular de história na Universidade Federal Fluminense e autor de, entre outros livros, "Trópico dos Pecados" (ed. Nova Fronteira).

Memória e História
262 págs., R$ 39
de Boris Fausto. Ed. Graal (r. do Triunfo, 177, CEP 01212-010, SP, tel. 0/xx/11/3337-8399).



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