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Crianças pós-modernas
PERSONAGENS INFANTIS CONTEMPORÂNEOS COMO O CAPITÃO CUECA MISTURAM AVENTURAS TRADICIONAIS COM IRONIA E METALINGUAGEM
PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA
Cerca de cinco anos
atrás, escrevi para o
Mais! [1º/8/04] um
artigo sobre a experiência de ler histórias a meus netos, Marco e Lara, e, nesse processo, de descobrir que a literatura infantil
não mudou muito desde o tempo em que eu era criança.
Apesar das transformações
sociais aceleradas dos últimos
60 ou 70 anos, muitos novos e
bem-sucedidos autores de livros infantis ainda escolhem
temas tradicionais, como cavaleiros, bruxas, piratas, trens a
vapor e cidadezinhas em que as
pessoas compram pão do padeiro, peixe do peixeiro e assim
por diante, em vez de fazer suas
compras no supermercado.
Marco e Lara têm hoje, respectivamente, nove e seis anos
de idade, e ainda leio para eles
regularmente. Um de seus novos [livros] favoritos é a série
de histórias em quadrinhos sobre as aventuras de Tintim,
criada há duas gerações pelo
artista belga Hergé [1907-83].
A série contém muitos sinais
de que é ambientada no mundo
dos anos 1930 -desde mordomos até chapéus-coco ou
aviões com hélices. Mesmo assim, as crianças curtem essa
história de época como se as
aventuras de Tintim tivessem
acontecido ontem.
Algo novo
Graças a Marco e Lara, também venho descobrindo autores que são famosos hoje, mas
eram virtualmente desconhecidos dez ou 15 anos atrás.
Entre eles estão Francesca
Simon, criadora de "Horrid
Henry"; Lauren Child, criadora
de "Charlie e Lola", e Dav Pilkey, criador de "Capitão Cueca"
(Marco e Lara ainda não têm
idade suficiente para gostar de
"Harry Potter").
Alguns desses autores retrabalham temas tradicionais de
maneira renovada, mas outros
oferecem sinais de algo novo.
Para um exemplo de um tema tradicional retrabalhado
com sucesso, poderíamos pensar nos livros sobre Horrid
Henry [Henry Horroroso], que
começaram a ser publicados
em 1993 e vêm sendo adaptados para a televisão.
Travessuras
O próprio Horrid Henry é
uma personagem singular,
mas, para os leitores de minha
geração, a ideia de um garoto
sempre travesso, mas também
inteligente e arteiro e sempre
(ou quase sempre) simpático,
será eternamente associada a
William Brown, o herói dos livros "Just William", de Richmal Crompton [1890-1969],
que começaram a ser publicados na década de 1920 e ainda
eram populares nos anos 1940,
quando primeiro tive contato
com eles.
Henry é um garoto dos anos
1990 que, por exemplo, é obcecado por TV e jogos de computador, mas, sob outros aspectos, suas travessuras e sua inteligência ardilosa lembram as de
William.
É uma pena que os dois garotos não possam se conhecer.
Fiquei satisfeito, de certo
modo, além de desapontado, de
outro, por ver confirmada minha tese sobre o conservadorismo essencial dos escritores de
literatura infantil -com exceções, tanto no Brasil quanto na
Europa e nos EUA.
Confirmada, isto é, até a descoberta mais recente de Marco:
o Capitão Cueca, herói de uma
série lançada em 1998 e que já
chegou ao seu 12º volume, vendendo bem não apenas em inglês mas em traduções para
mais de 20 línguas [no Brasil,
publicada pela Cosac Naify].
Sob alguns aspectos, também
essas histórias se enquadram
no padrão tradicional.
Como versões do Meio-Oeste [dos EUA] de Horrid Henry e
William Brown, as personagens principais, George Beard e
Harold Hutchens, que vivem e
estudam numa cidadezinha de
Ohio, são travessos e também
simpáticos.
O vocabulário empregado
pelas duas crianças ("cool",
"nerd", "zap", "ai, cara!") é tão
atual quanto o corte de cabelo
reto de George, mas os truques
com os quais se divertem, como
trocar as letras no cardápio do almoço na cantina da escola,
devem ser tão velhos quanto as
próprias cantinas das escolas.
Sob outros aspectos, entretanto, as histórias não são nem
um pouco tradicionais.
Podem até ser descritas como pós-modernas, graças não
apenas às referências recorrentes a universos alternativos,
mas também, especialmente,
ao amor do autor pela paródia e
especialmente pelas autorreferências.
O herói, Capitão Cueca, é
uma paródia de Super-Homem
-um sujeito mais gorducho do
que atlético, que canta loas às
cuecas de algodão enquanto
voa em suas missões para submeter os vilões à justiça.
O Capitão também é apresentado ao leitor como criação
de George e Harold, que passam boa parte de seu tempo,
tanto em casa quanto na escola,
escrevendo e desenhando tiras
de quadrinhos sobre ele.
Suas tiras são reproduzidas
na série, de modo que os leitores se veem sugados para dentro de um mundo de quadrinhos dentro de um livro de
quadrinhos.
De maneira realmente pós-moderna, a divisão entre ficção
e realidade vai perdendo nitidez à medida que as histórias se
desenrolam.
O sr. Krupp, diretor da escola
em que George e Harold estudam, confisca seus quadrinhos,
os lê e faz comentários sobre
eles. Depois de ser hipnotizado
pelos garotos, Krupp vira o Capitão Cueca a cada vez que ouve
alguém estalar os dedos.
E há mais: George e Harold
sabem que são personagens
num livro de quadrinhos. Harold pergunta à bibliotecária de
sua escola: "A sra. não foi demitida em nosso último livro?".
Após um desastre, o comentário de George é "aposto que
algo ainda pior vai acontecer
quando você virar a página!".
Às vezes as personagens
zombam do autor. Em uma
ocasião, Harold diz a George
que "esse tipo de coisa só acontece em histórias infantis mal
escritas cujos autores estão ficando sem ideias".
Paródia consciente
Essas piadas são dirigidas às
crianças ou apenas aos adultos,
que de fato compram os livros?
O que as crianças pensam das
histórias?
As pesquisas que venho fazendo com o público se baseiam numa amostra bastante
pequena -Marco e Lara, apenas-, mas me levam a concluir
que as crianças que leem ou ouvem a série têm consciência da
paródia e das autorreferências
e que esse tom de brincadeira
lhes agrada.
Devo admitir que, até agora,
eu desconfiava que a pós-modernidade fosse um fenômeno
sobretudo acadêmico, talvez
não muito mais do que um jogo
acadêmico no qual professores
de literatura afirmavam que
uma nova era começara para
todos nós, enquanto a maioria
das pessoas continuava a dar
como certo que seu mundo não
mudara de fato. Mas temos
duas crianças pós-modernas
vivendo em casa!
PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O
Que É História Cultural?" (ed. Zahar).
Tradução de Clara Allain.
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