São Paulo, domingo, 22 de março de 2009

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Crianças pós-modernas

PERSONAGENS INFANTIS CONTEMPORÂNEOS COMO O CAPITÃO CUECA MISTURAM AVENTURAS TRADICIONAIS COM IRONIA E METALINGUAGEM

PETER BURKE
COLUNISTA DA FOLHA

Cerca de cinco anos atrás, escrevi para o Mais! [1º/8/04] um artigo sobre a experiência de ler histórias a meus netos, Marco e Lara, e, nesse processo, de descobrir que a literatura infantil não mudou muito desde o tempo em que eu era criança.
Apesar das transformações sociais aceleradas dos últimos 60 ou 70 anos, muitos novos e bem-sucedidos autores de livros infantis ainda escolhem temas tradicionais, como cavaleiros, bruxas, piratas, trens a vapor e cidadezinhas em que as pessoas compram pão do padeiro, peixe do peixeiro e assim por diante, em vez de fazer suas compras no supermercado.
Marco e Lara têm hoje, respectivamente, nove e seis anos de idade, e ainda leio para eles regularmente. Um de seus novos [livros] favoritos é a série de histórias em quadrinhos sobre as aventuras de Tintim, criada há duas gerações pelo artista belga Hergé [1907-83].
A série contém muitos sinais de que é ambientada no mundo dos anos 1930 -desde mordomos até chapéus-coco ou aviões com hélices. Mesmo assim, as crianças curtem essa história de época como se as aventuras de Tintim tivessem acontecido ontem.

Algo novo
Graças a Marco e Lara, também venho descobrindo autores que são famosos hoje, mas eram virtualmente desconhecidos dez ou 15 anos atrás.
Entre eles estão Francesca Simon, criadora de "Horrid Henry"; Lauren Child, criadora de "Charlie e Lola", e Dav Pilkey, criador de "Capitão Cueca" (Marco e Lara ainda não têm idade suficiente para gostar de "Harry Potter").
Alguns desses autores retrabalham temas tradicionais de maneira renovada, mas outros oferecem sinais de algo novo.
Para um exemplo de um tema tradicional retrabalhado com sucesso, poderíamos pensar nos livros sobre Horrid Henry [Henry Horroroso], que começaram a ser publicados em 1993 e vêm sendo adaptados para a televisão.

Travessuras
O próprio Horrid Henry é uma personagem singular, mas, para os leitores de minha geração, a ideia de um garoto sempre travesso, mas também inteligente e arteiro e sempre (ou quase sempre) simpático, será eternamente associada a William Brown, o herói dos livros "Just William", de Richmal Crompton [1890-1969], que começaram a ser publicados na década de 1920 e ainda eram populares nos anos 1940, quando primeiro tive contato com eles.
Henry é um garoto dos anos 1990 que, por exemplo, é obcecado por TV e jogos de computador, mas, sob outros aspectos, suas travessuras e sua inteligência ardilosa lembram as de William.
É uma pena que os dois garotos não possam se conhecer.
Fiquei satisfeito, de certo modo, além de desapontado, de outro, por ver confirmada minha tese sobre o conservadorismo essencial dos escritores de literatura infantil -com exceções, tanto no Brasil quanto na Europa e nos EUA.
Confirmada, isto é, até a descoberta mais recente de Marco: o Capitão Cueca, herói de uma série lançada em 1998 e que já chegou ao seu 12º volume, vendendo bem não apenas em inglês mas em traduções para mais de 20 línguas [no Brasil, publicada pela Cosac Naify].
Sob alguns aspectos, também essas histórias se enquadram no padrão tradicional.
Como versões do Meio-Oeste [dos EUA] de Horrid Henry e William Brown, as personagens principais, George Beard e Harold Hutchens, que vivem e estudam numa cidadezinha de Ohio, são travessos e também simpáticos.
O vocabulário empregado pelas duas crianças ("cool", "nerd", "zap", "ai, cara!") é tão atual quanto o corte de cabelo reto de George, mas os truques com os quais se divertem, como trocar as letras no cardápio do almoço na cantina da escola, devem ser tão velhos quanto as próprias cantinas das escolas. Sob outros aspectos, entretanto, as histórias não são nem um pouco tradicionais.
Podem até ser descritas como pós-modernas, graças não apenas às referências recorrentes a universos alternativos, mas também, especialmente, ao amor do autor pela paródia e especialmente pelas autorreferências.
O herói, Capitão Cueca, é uma paródia de Super-Homem -um sujeito mais gorducho do que atlético, que canta loas às cuecas de algodão enquanto voa em suas missões para submeter os vilões à justiça.
O Capitão também é apresentado ao leitor como criação de George e Harold, que passam boa parte de seu tempo, tanto em casa quanto na escola, escrevendo e desenhando tiras de quadrinhos sobre ele.
Suas tiras são reproduzidas na série, de modo que os leitores se veem sugados para dentro de um mundo de quadrinhos dentro de um livro de quadrinhos.
De maneira realmente pós-moderna, a divisão entre ficção e realidade vai perdendo nitidez à medida que as histórias se desenrolam.
O sr. Krupp, diretor da escola em que George e Harold estudam, confisca seus quadrinhos, os lê e faz comentários sobre eles. Depois de ser hipnotizado pelos garotos, Krupp vira o Capitão Cueca a cada vez que ouve alguém estalar os dedos.
E há mais: George e Harold sabem que são personagens num livro de quadrinhos. Harold pergunta à bibliotecária de sua escola: "A sra. não foi demitida em nosso último livro?". Após um desastre, o comentário de George é "aposto que algo ainda pior vai acontecer quando você virar a página!".
Às vezes as personagens zombam do autor. Em uma ocasião, Harold diz a George que "esse tipo de coisa só acontece em histórias infantis mal escritas cujos autores estão ficando sem ideias".

Paródia consciente
Essas piadas são dirigidas às crianças ou apenas aos adultos, que de fato compram os livros? O que as crianças pensam das histórias?
As pesquisas que venho fazendo com o público se baseiam numa amostra bastante pequena -Marco e Lara, apenas-, mas me levam a concluir que as crianças que leem ou ouvem a série têm consciência da paródia e das autorreferências e que esse tom de brincadeira lhes agrada.
Devo admitir que, até agora, eu desconfiava que a pós-modernidade fosse um fenômeno sobretudo acadêmico, talvez não muito mais do que um jogo acadêmico no qual professores de literatura afirmavam que uma nova era começara para todos nós, enquanto a maioria das pessoas continuava a dar como certo que seu mundo não mudara de fato. Mas temos duas crianças pós-modernas vivendo em casa!


PETER BURKE é historiador inglês, autor de "O Que É História Cultural?" (ed. Zahar).
Tradução de Clara Allain.


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