São Paulo, domingo, 22 de maio de 2005

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UM DOS PRINCIPAIS CRÍTICOS DE LÉVI-STRAUSS, O NORTE-AMERICANO CLIFFORD GEERTZ FAZ RESTRIÇÕES AOS ARGUMENTOS ETNOGRÁFICOS DE "TRISTES TRÓPICOS", MAS RESSALTA SUA CONTRIBUIÇÃO À FILOSOFIA E À LITERATURA

As provações de um jovem herói

Fernando Donasci
Meninas prontas para o casamento, após terem passado pelo ritual da menina-moça


COLABORAÇÃO PARA A FOLHA

Juntamente com Claude Lévi-Strauss -ainda que em pólos antagônicos-, Clifford Geertz (1926) pode ser considerado um dos mais importantes nomes da antropologia contemporânea. Na entrevista a seguir, concedida por e-mail, ele presta tributo a "Tristes Trópicos", livro a que já se referiu como uma espécie de "ovo cósmico" de toda a obra lévi-straussiana, não sem marcar suas diferenças em relação ao estruturalismo .
Além de grande pesquisador de campo, Geertz repensou os fundamentos epistemológicos de sua ciência. A antropologia "hermenêutica" que ele advoga é uma disciplina que, analogamente à crítica literária, lida com textos culturais, escritos ou não -isto é, com "teias de significados" que não pairam no ar, como coisas externas, objetivas e impostas às consciências, sendo, ao contrário, scripts dinâmicos, feitos e refeitos a cada momento pelos mais diversos agentes de uma sociedade.
Daí que a escala de observação geertziana não seja a das estruturas abstratas e universais, e sim a dos modos de pensar e de viver de sujeitos de carne e osso, com as quais o estudioso deve interagir em busca de sua própria interpretação para a massa de interpretações que vivifica cada cultura em particular.
Professor emérito do Instituto de Estudos Avançados da Universidade Princeton, Geertz escreveu livros como "A Interpretação das Culturas" (ed. LTC), "Saber Local" (Vozes) e "Negara - O Estado Teatro no Século 19" (Bertrand Brasil). (CAIO LIUDVIK)
 

Folha - Quando e em quais circunstâncias o senhor leu "Tristes Trópicos" pela primeira vez?
Clifford Geertz -
Eu li pela primeira vez "Tristes Trópicos" em fins da década de 50 e início dos anos 60. Mais tarde, eu li a tradução resumida de [John] Russell e, depois, a versão mais completa, mas de algum modo menos evocativa, de [John e Doreen] Weightman nos anos 90.
Voltei a lê-lo várias vezes no original e, bem detalhadamente, quando preparava minha análise desse livro para "Obras e Vidas" [ed. UFRJ], de 1988. "Tristes Trópicos" foi um livro de que gostei muito de ler e que achei muito instrutivo.

Folha - Qual foi sua primeira reação? Ela mudou com o tempo?


"Tristes Trópicos" teve grande impacto sobre a forma de escrita das ciências humanas, encorajando a saída do discurso frio

Geertz -
Minha primeira reação, que nunca se alterou, talvez seja resumida do melhor modo possível numa formulação que certa vez fiz: ""Tristes Trópicos" pode não ser o melhor livro de antropologia já escrito, mas pode ser o melhor livro já escrito por um antropólogo". Ele me parece uma maiúscula contribuição para a literatura e filosofia ocidentais, lindamente escrito e realizado, quaisquer que sejam as reservas que eu possa fazer em relação aos argumentos especificamente etnográficos e socioantropológicos que o livro apresente.

Folha - Que aspectos ou passagens do livro o tocam mais?
Geertz -
O aspecto mais atraente do livro, para mim, é o modo como Lévi-Strauss insere a si mesmo no seu texto sem, todavia, torná-lo "subjetivo", "impressionista" ou excessivamente pessoal. Ele faz sua experiência como um jovem antropólogo refugiado nos trópicos surgir maravilhosamente viva, embora mantendo uma adequada perspectiva acerca do que é revelado diante dele.

Folha - Qual a maior contribuição de "Tristes Trópicos" para a antropologia, senão para a cultura ocidental em geral? O que sobrevive ou está ultrapassado no livro?
Geertz -
Penso que "Tristes Trópicos" teve grande impacto sobre a forma de escrita das ciências humanas em geral, encorajando a saída do discurso frio, objetivista, que é tão típico delas. Enquanto um modelo de "como escrever", ele se mantém e se manterá como uma inspiração para quem tenha a coragem de segui-lo, embora, na verdade, ele seja inimitável. O que temo que esteja ultrapassado é o estruturalismo, embora eu nunca tenha tido muita afinidade com esse "approach" teórico, conforme meu artigo "O Selvagem Cerebral" (1967) mostra.

Folha - Nesse artigo, o senhor diz que "Tristes Trópicos" é uma narrativa de uma típica "busca heróica". Por quê? E, na medida em que tem essa estrutura "mítica", o livro negaria, em grau maior ou menor, aquele "objetivismo "hard'" que aparentemente impregna outros trabalhos e a metodologia de Lévi-Strauss? Seria possível dizer que "Tristes Trópicos" revela um Lévi-Strauss mais próximo de sua "antropologia hermenêutica"?
Geertz -
Concordo em que "Tristes Trópicos", mais que qualquer outro trabalho de Lévi-Strauss, parece meu (ou o meu parece com ele) em sua resistência contra esse "objetivismo hard", e suponho que algo disso é possível ser identificado ao longo de suas obras, embora com freqüência acobertado por grandes gestos em prol da grande teoria e um tipo de reducionismo materialista.
Com relação ao modelo da busca: assim é de fato como "Tristes Trópicos" está organizado: um jovem herói desce num mundo selvagem, caminha errante e passa por provações e emerge com uma consciência clarificada, como um Rousseau, um Buda. Lévi-Strauss nunca disse nada de muito positivo sobre a hermenêutica, a minha ou de qualquer outro -ele a chamou de "uma filosofia de balconista"-, mas você pode ter razão em que ele freqüentemente é um hermeneuta "malgré lui".
Em todo caso, fico feliz em saudá-lo pelo qüinquagésimo aniversário de seu grande livro e me lembro do famoso psicólogo alemão Koehle, que, desde que seu primeiro livro foi publicado, adotou aquela data como a de seu verdadeiro aniversário.


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