São Paulo, domingo, 22 de maio de 2005

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"TRISTES TRÓPICOS" É O "LIVRO-ACONTECIMENTO" DO ESTRUTURALISMO

O MEDO DA DECADÊNCIA

DA REPORTAGEM LOCAL

A experiência brasileira e seu relato em "Tristes Trópicos" contêm, "em germe, várias das questões que Lévi-Strauss vai tratar" e fornece bases para debates contemporâneos da antropologia, diz Carlos Fausto, 42.
Na entrevista a seguir, o coordenador da pós-graduação em antropologia do Museu Nacional, da Universidade Federal do Rio de Janeiro, comenta ainda um certo espírito "passadista" do francês, que abrigaria o temor constante "de que o mundo está se transformando para pior, que as coisas se corrompem, que os índios estão desaparecendo". (RC)

 

Folha - Qual é a importância do livro para a obra de Lévi-Strauss e para a antropologia?
Carlos Fausto -
Os "Tristes Trópicos" ocupam um lugar muito particular na obra do Lévi-Strauss. É quando ele tenta se candidatar ao Collège de France e é rejeitado. Ele diz que naquele momento não sabia o que fazer, achou que sua carreira acadêmica não teria sucesso e resolve escrever um livro em que não tivesse obrigação científica estrita.

Folha - Nesse momento, o que ele havia publicado eram "As Estruturas Elementares do Parentesco"?
Fausto -
Exatamente, em 1949. A tese maior foram as "Estruturas..." e, a menor, "A Vida Social e Familiar dos Nambiquaras". Quando os "Tristes Trópicos" saem, têm um sucesso estrondoso e projetam seu nome para uma audiência maior do que aquela de etnólogos. É o "livro-acontecimento" do estruturalismo.

Folha - Mas é um livro que ainda faz um registro de uma antropologia pré-estruturalista, não?
Fausto -
É um livro no estilo de crônica de viagem, que não é propriamente a afirmação de um tipo de antropologia, mas que já contém, em germe, várias questões que Lévi-Strauss vai tratar e que descreve. Ao mesmo tempo, desde o pós-guerra, vinha publicando artigos que serão depois reunidos no "Antropologia Estrutural".

Folha - Quão importante é essa experiência do Brasil para o aparecimento das "Estruturas"?
Fausto -
O Lévi-Strauss acabou, dentro da disciplina, se consagrando como um teórico. Ele, de fato, não fez pesquisa de campo no sentido moderno do termo -ele fez viagens a campo. Por essa razão, a gente tende a não olhar para o que essa experiência sul-americana produziu e influenciou aquilo que seria sua obra.
Os nambiquaras aparecem nas "Estruturas" na primeira parte, mas estão num certo sentido aquém das estruturas elementares, porque não têm grupos, clãs, metades. Mas fornecem para Lévi-Strauss o modelo mínimo do que seria essa relação de reciprocidade. Que está lá na sua forma mais pura, no casamento de primos, mas ainda não institucionalizada por classes matrimoniais, metades exogâmicas, coisas do gênero.
Esse modelo nambiquara e depois o modelo bororo, com metades exogâmicas, vão fornecer para ele a base da intuição do que seria o princípio de reciprocidade que está no fundamento das estruturas elementares.

Folha - Essa experiência marca toda sua obra posterior?
Fausto -
É fundamental, e não se entende sua obra, se se quiser julgá-la apenas como uma obra teórica. Quem não lê aquilo como uma obra americanista, sobre populações indígenas da América, não é capaz de julgar o trabalho do Lévi-Strauss.

Folha - Quanto esse livro heterodoxo influencia a produção antropológica para além de Lévi-Strauss?
Fausto -
Aí não são apenas os "Tristes Trópicos". A experiência americanista como um todo, em particular nambiquaras e bororos, vai direcionar dois grandes campos de questões. Um, sobre o que é o dualismo. Será tema de debates gerais na antropologia. E, outro, a discussão sobre o lugar da afinidade ou, de modo mais geral, da alteridade e da identidade nas filosofias sociais dos povos ameríndios.
Ele vai retomá-la em 1991, associando o que chamará de um dualismo em perpétuo desequilíbrio, no qual a identidade é um estado sempre revogável, com a abertura ao outro. Essa necessidade, para a reprodução da sociedade, de que ela busque na alteridade aquilo que lhe permite ter uma dinâmica produtiva.

Folha - Mas ele parece sempre temer pelos índios, que os nambiquaras estão ameaçados...
Fausto -
Ele tem um lado absolutamente racionalista, ferrenho. Ao mesmo tempo, tem um negócio passadista, uma idéia de que o mundo está se transformando para pior, que as coisas se corrompem, que os índios estão desaparecendo, que essas culturas estão sendo transformadas de maneira horrorosa -o que não corresponde à nossa experiência e ciência pós-moderna, de que a hibridização é uma coisa positiva. Hoje, [o crítico] José Ramos Tinhorão falando sobre o samba e a tradição é um porre. Nos anos 60, a gente gostava, ele estava defendendo a pureza. Hoje a gente gosta do que o Hermano Vianna diz -a mescla, a mistura.


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