São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003 |
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+ autores Recepção conflituosa do romance precedeu já no século 19 seu destino industrial na sociedade de consumo Vanguarda e narração Juan José Saer
Nos anos 50 e 60, os teóricos do
"nouveau roman" afirmavam
com veemência que o romance
era a única arte que, no século
20, não realizara a revolução vanguardista, diferentemente das artes plásticas, da
música e da poesia, que fazia quase três
quartos de século vinham fazendo cada
uma a sua. Se, logo ao irromper na cena
artística, o cubismo e outras escolas dos
anos 10, 20 e 30, como o dodecafonismo
e o surrealismo, provocaram anátemas,
escândalo e polêmica, àquela altura já
haviam sido transferidos para o sereno
limbo a que o vaivém do gosto artístico
costuma relegar os clássicos.
Contrariamente, ainda em 1973, em
seu livro sobre o "nouveau roman", Jean
Ricardou escrevia: "Quer seja por editoras ou prêmios literários, quer seja na
imprensa ou na universidade, é certo que
o "nouveau roman" já conseguiu imprimir muito do caráter de sua atividade.
(...) Mas a acolhida global que as instâncias culturais lhe reservaram parece singularmente uma recepção a contragosto". Hoje, 30 anos mais tarde, pode-se
constatar que essa resistência ainda continua viva e que, apesar de uma recepção
parcialmente positiva nas instâncias culturais oficiais (Nathalie Sarraute na
"Pléiade", por exemplo, ou o Prêmio
Nobel para Claude Simon, o que, de certo modo, é um reconhecimento ao conjunto da escola), em muitos círculos a
rejeição continua obstinada e violenta.
Por que tanta sanha? As causas podem
ser muitas e de ordem diversa. A mais
evidente é que a complexidade de uma
obra artística, aquilo que a distingue do
habitual, não apenas desconcerta, mas
às vezes, quando não se está preparado
para recebê-la, chega a decepcionar e a
ofender. A recepção tumultuada das novidades, não raro radicais, que é uma
constante na história das vanguardas,
costuma ser composta de racionalizações arbitrárias, mas também de indignação e de despeito. No caso do "nouveau roman", esse pertinaz repúdio é
muito intrigante, se levarmos em conta
que seu advento já deixou de constituir
uma novidade e hoje faz parte da história da literatura francesa.
Uma rejeição tão obstinada, porém,
pode ter outras causas que caberia indagar, talvez, não no caráter próprio do
"nouveau roman", mas na função que a
sociedade atribui ao gênero narrativo. É
evidente que a poesia lírica sempre desfrutou de um estatuto mais livre que o da
poesia épica, porque a poesia lírica, apta
para expressar a intimidade pessoal do
poeta, podia se permitir (na visão de
seus receptores, nunca na dos poetas
mesmos) uma maior irresponsabilidade
que a épica, frequentemente requisitada
para encarnar o ponto de vista da sociedade inteira.
Quando, na primeira metade do século 19, a poesia começa a ser escrita também em prosa, o uso que os poetas fazem desse novo instrumento aos poucos
se tornará uma contribuição decisiva para as vanguardas, ao passo que, quando
o gênero épico adota a prosa, com o novo gênero que nasce dessa escolha -o
romance-, muitos fenômenos contraditórios e até conflituosos se desencadeiam ao mesmo tempo, nas múltiplas
tentativas dessa arte singular.
A representatividade social herdada da
épica parece obrigar o romance a privilegiar a linearidade, a ação, a transparência (no sentido que Sartre dá à palavra,
de uma linguagem utilizada não em sua
materialidade opaca, como faz a poesia,
mas como um intermediário invisível
entre o leitor e o significado). Por mais
que a épica, pelo menos desde "D. Quixote de la Mancha", tenha deixado de
desempenhar um papel preponderante
na evolução das formas narrativas (e até
poderíamos dizer que a narrativa ocidental se desvia paulatinamente para
uma retórica antiépica), os procedimentos que veiculavam seus valores sociais e
literários continuam onipresentes, e é
evidente que o exercício de toda narrativa válida tem consistido em opor-se a
eles. É essa oposição que explica a recepção conflituosa de cada nova narração a
partir da segunda metade do século 19.
Os procedimentos utilizados pela épica
-linearidade, ação, transparência, mas
também intriga excessiva, personagens
contrastados, conflitos temáticos e muitos outros- continuam a alimentar maciçamente a produção industrial de uma
nova mercadoria: a narrativa de consumo. Isso não é um juízo de valor, mas
uma descrição, que poderíamos qualificar de supérflua, tão evidente se tornou o
fenômeno a que ela se aplica. Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras). Escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!. Tradução de Sergio Molina. Nota O escritor Juan José Saer participará, na próxima quarta-feira, de um encontro com, entre outros, o poeta e crítico Haroldo de Campos sobre vanguardas literárias no Centro Cultural Banco do Brasil, em Brasília (DF). Informações pelo tel. 0/xx/ 61/310-7087. Texto Anterior: ET + cetera Próximo Texto: Capa 22.06 Índice |
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