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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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FILÓSOFO DEFENDE A NECESSIDADE DE TRANSFORMAR A ÉTICA A PARTIR DA BIOLOGIA, EM LUGAR DE ACOPLÁ-LAS ARTIFICIALMENTE COM UM SIMPLES HÍFEN

A falha da BIO-ÉTICA

por Slavoj Zizek

Podemos contar hoje com uma bio-ética? Sim, mas ela é ruim -o que os alemães chamam de "Bindenstrich-Ethik", uma ética com hífen. O que se perde nessa ética com hífen é simplesmente a ética como tal. Seu problema não é que a ética universal seja dissolvida numa miríade de temas particulares (bioética, ética comercial, ética médica...), mas, muito ao contrário, que determinados avanços científicos se confrontam diretamente com os antigos "valores" humanistas, provocando reclamações sobre como as perspectivas da biogenética ameaçam nosso senso de dignidade e autonomia.
De modo sucinto, a principal consequência dos avanços na biogenética é o fim da natureza: ao conhecermos as regras de sua construção, os organismos naturais se tornam objetos disponíveis e manipuláveis. A natureza, humana e inumana, é assim "dessubstancializada", privada de sua impenetrável densidade, daquilo que Heidegger chamou de "terra". A biogenética, com sua redução da própria psique humana a um objeto de manipulação tecnológica, é portanto efetivamente uma espécie de instância empírica do que Heidegger via como o "perigo" inerente à tecnologia moderna.
É crucial aqui a interdependência entre homem e natureza: ao reduzir o homem a um mero objeto natural cujas propriedades podem ser manipuladas, o que perdemos não é (somente) a humanidade, mas a PRÓPRIA NATUREZA. Nesse sentido Francis Fukuyama está certo: a própria humanidade depende de certa noção de uma "natureza humana" herdada, da dimensão impenetrável em/de nós mesmos na qual nascemos/somos atirados: o homem só existe na medida em que existe a impenetrável natureza inumana.
Como, então, reagimos a essa ameaça? Lembre-se do conhecido caso da doença de Huntington: o gene diretamente responsável por ela foi isolado, e qualquer pessoa pode saber exatamente não apenas se sofrerá de Huntington, mas também quando. Depende de um erro de transcrição genética -a repetição gaguejante da "palavra" CAG [citosina-adenina-guanina] no meio desse gene: a idade em que a loucura surgirá depende estrita e implacavelmente do número de repetições de CAG em certo lugar desse gene (se houver 40 repetições, a pessoa terá os primeiros sintomas aos 59 anos; se houver 41 repetições, aos 54; se houver 50, aos 27).

Para Habermas, a autonomia exige ignorar a contingência natural que nos determina

Uma vida aprazível, condicionamento físico, os melhores remédios, alimentação saudável, o amor e o apoio familiar nada podem fazer a esse respeito: "É pura fatalidade, independente da variabilidade ambiental" [Matt Ridley, no livro "Genoma"]. Ainda não há tratamentos, nada se pode fazer sobre isso. Então o que devemos fazer ao saber que podemos nos submeter a exames e assim adquirir uma informação que, se positiva, dirá exatamente quando vamos ficar loucos e morrer? Podemos imaginar confronto mais claro com o Real totalmente sem sentido de uma contingência que determina nossa vida? Não admira que a maioria das pessoas (inclusive os cientistas que identificaram esse gene) prefira a ignorância -essa ignorância não é simplesmente negativa, já que seu vácuo abre espaço para a imaginação. Além disso, o fato de que, com a perspectiva das intervenções biogenéticas aberta pelo acesso ao genoma, a espécie modifica/redefine à vontade a SI MESMA, suas próprias coordenadas, efetivamente emancipa a humanidade das restrições de uma espécie limitada, de sua escravidão a "genes egoístas".

Autolimitação conservadora
Essa emancipação, no entanto, tem um preço. Numa palestra em Marburg, Habermas repetiu sua advertência contra manipulações biogenéticas em seres humanos: "Com as intervenções no legado genético do homem, o domínio da natureza reverte a um ato de assumir-o-controle-de-si-mesmo, que modifica nossa autocompreensão genérico-ética e pode perturbar as condições necessárias de um modo de vida autônomo e um entendimento universalista da moral" [citado por Thorsten Jantschek, no jornal "Die Zeit" de 5 de julho de 2001]. Habermas vê aqui duas ameaças à espreita. Primeiro, essas intervenções tornam imprecisos os limites entre o que nós criamos e o que cresceu espontaneamente, e portanto afeta a autocompreensão do indivíduo. Como um adolescente reagirá ao saber que suas tendências "espontâneas" (digamos, agressivas ou pacíficas) são resultado da intervenção intencional de outros em seu código genético? Isso não vai solapar o próprio núcleo de sua identidade como pessoa, ou seja, a noção de que desenvolvemos nossa identidade moral através da "Bildung", a dolorosa luta para formar/educar as tendências naturais de uma pessoa? Em última instância, a perspectiva das intervenções biogenéticas diretas torna sem sentido a própria idéia de educação. Em segundo lugar, no plano intersubjetivo, essas intervenções biogenéticas darão origem a relações assimétricas entre os que são "espontaneamente" humanos e aqueles cujas características foram artificialmente manipuladas: algumas pessoas aparecerão como criadores privilegiados de outras pessoas... No nível mais elementar, isso afeta nossa identidade sexual. O que está em jogo é não apenas a possibilidade de os pais escolherem o sexo dos filhos, mas o caráter das operações de mudança de sexo. Até hoje era possível justificá-las citando a lacuna entre as identidades biológica e psíquica de uma pessoa: quando um homem biológico se vê como uma mulher presa a um corpo de homem, por que não deveria poder mudar de sexo biológico e, assim, dar equilíbrio a sua vida sexual e emocional? No entanto, a possibilidade de manipulação biogenética abre uma perspectiva muito mais radical de manipulação da própria identidade psíquica. Embora essa argumentação seja de uma simplicidade impecável, encerra um grande problema: o próprio fato da possibilidade das manipulações biogenéticas não modifica retroativamente nossa autocompreensão como seres "naturais", no sentido de que hoje experimentamos nossas próprias disposições "naturais" como algo "mediado", não apenas como algo dado imediatamente, mas algo que pode em princípio ser manipulado e é portanto simplesmente contingente? Não há como retornar ao imediato ingênuo: quando SABEMOS que nossas tendências naturais dependem da cega contingência genética, a adesão teimosa a essas tendências é tão falsa quanto a adesão a velhos hábitos "orgânicos" num universo moderno. Assim, basicamente, o que Habermas está dizendo é: embora hoje saibamos que nossas disposições dependem da insignificante contingência genética, vamos fingir e agir como se não fosse o caso, de modo a mantermos nosso sentido de dignidade e de autonomia -o paradoxo, aqui, é que a autonomia só pode ser mantida proibindo o acesso à cega contingência natural que nos determina, isto é, em última instância, LIMITANDO a nossa autonomia e a liberdade de intervenção científica. Não seria isso uma nova versão do antigo argumento conservador de que para mantermos nossa dignidade moral é melhor não saber certas coisas? Em suma, a lógica de Habermas é a seguinte: já que os resultados da ciência representam uma ameaça para nossa (noção predominante de) autonomia e liberdade, devemos reprimir a ciência -o preço que pagamos por essa solução é a separação fetichista entre ciência e ética ("Sei muito bem o que a ciência afirma; não obstante, para manter minha [aparência de] autonomia, prefiro ignorá-la e agir como se não soubesse"). Essa divisão nos impede de enfrentar a verdadeira pergunta: como essas novas condições nos forçam a transformar e reinventar as próprias noções de liberdade, autonomia e responsabilidade ética? O que dizer do possível contra-argumento católico segundo o qual o verdadeiro perigo não é nossa efetiva redução a entidades não-espirituais, mas o próprio fato de que, na biogenética, NÓS, HOMENS, NOS TRATAMOS COMO TAL? Em outras palavras, o ponto principal não é termos ou não uma alma imortal etc. -é claro que temos-, mas que, ao lidarmos com a biogenética, perdemos a consciência disso e tratamos a nós mesmos como se fôssemos simples organismos biológicos. No entanto, esse argumento apenas desloca o problema: nesse caso, não seriam os próprios fiéis católicos os sujeitos ideais para se envolver plenamente nas manipulações biogenéticas, já que seriam totalmente conscientes de estar lidando apenas com o aspecto material da existência humana, e não com o núcleo espiritual do homem? Em suma, eles deveriam ter permissão para fazer o que quisessem em biogenética, já que sua fé na alma humana etc. os impediria de reduzir o homem a um objeto de manipulações científicas. Assim, nossa pergunta volta com uma vingança: se os homens têm uma alma imortal ou uma dimensão espiritual autônoma, por que temer as manipulações biogenéticas? Do ponto de vista psicanalítico, o cerne do problema está na autonomia da ordem simbólica. Suponha que eu seja impotente devido a algum bloqueio não resolvido em meu universo simbólico, e que eu tome Viagra em vez de me "educar" por meio do trabalho de resolver o bloqueio simbólico. A solução funciona, sou novamente capaz de atuar sexualmente, mas o problema permanece: Como o bloqueio simbólico em si será afetado por essa solução? Como ela será "subjetivada"?

Lições de psicanálise
A situação aqui é totalmente insolúvel: a solução não será vivenciada como o resultado de uma elaboração simbólica do bloqueio. Nesse sentido, ela pode desbloquear o obstáculo simbólico em si, obrigando-me a aceitar sua total insignificância; ou pode gerar um desvio psicótico, provocando a volta do obstáculo em um nível psicótico mais fundamental (digamos, sou levado a uma atitude paranóica, vendo a mim mesmo como exposto ao capricho de um senhor cujas intervenções podem decidir meu destino). Existe sempre um preço simbólico a pagar por essas soluções "imerecidas". E, "mutatis mutandis", o mesmo vale para as tentativas de combater o crime por meio de intervenção bioquímica ou biogenética direta: quando se combate o crime submetendo os criminosos a tratamento bioquímico, obrigando-os a ingerir medicamentos contra o excesso de agressividade, deixa-se intacto o mecanismo social que desencadeou o potencial de agressividade nos indivíduos.
Outra lição da psicanálise é que -ao contrário da noção de que a curiosidade é inata aos seres humanos, de que no fundo de cada um exista uma "Wissenstrieb", a pulsão de saber- a atitude espontânea do ser humano é a de "Não quero saber". Todo avanço no conhecimento é produzido por uma dolorosa luta contra propensões espontâneas. Voltemos um momento ao mal de Huntington: se em minha família existe um caso, deveria eu fazer o exame que dirá se (e quando) contrairei inexoravelmente a doença, ou não? Se não puder suportar a perspectiva de saber quando morrerei, a solução ideal (mais fantasiosa que realista) talvez seja autorizar uma pessoa ou instituição em que eu confie totalmente a me examinar e NÃO ME CONTAR O RESULTADO, para me matar de maneira inesperada e indolor quando eu estiver dormindo, pouco antes do ataque da doença fatal, se o resultado for positivo... No entanto, o problema dessa solução é que eu sei que o Outro sabe (a verdade sobre minha doença), e isso estraga tudo, expondo-me a uma terrível e aflitiva suspeita.



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