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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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A indústria farmacêutica já oferece auto-estima engarrafada, como Zoloft e Prozac

Seria então a solução ideal a contrária: se eu suspeitar que meu filho pode ter a doença, eu o examino sem ele saber e depois o mato de modo indolor pouco antes do ataque? A fantasia máxima aqui seria a de uma instituição estatal anônima fazer isso com todos nós sem nosso conhecimento -porém, mais uma vez, surge a pergunta: nós sabemos (que o outro sabe) ou não? Está aberto o caminho para uma sociedade perfeitamente totalitária... O que é falso aqui é a premissa subjacente: a noção de que o dever ético máximo é o de proteger o Outro da dor, mantê-lo na ignorância protetora. A conclusão inevitável é que, com a biogenética, não se trata tanto de perdermos a dignidade e a liberdade -na verdade sentimos que NUNCA AS TIVEMOS, PARA COMEÇO DE CONVERSA. Se hoje temos "terapias que tornam imprecisa a separação entre o que conquistamos por conta própria e o que conquistamos devido aos níveis de várias substâncias químicas em nossos cérebros" [Fukuyama, "Our Post-Human Future"], a própria eficiência dessas terapias não implica que "o que conquistamos por conta própria" também depende de um grau DIFERENTE de "níveis de substâncias químicas em nossos cérebros"? Então não é como se nos dissessem que, para citar o famoso título de Tom Wolfe, "Perdão, sua Alma Acaba de Morrer"-; o que nos dizem, efetivamente, é que nunca tivemos uma alma, para começo de conversa.

Ilusão de dignidade
Se as alegações da biogenética estiverem certas, então a opção que enfrentamos hoje não é entre a dignidade humana e a geração tecnológica "pós-humana" de indivíduos, mas entre agarrar-se à ILUSÃO de dignidade e aceitar a REALIDADE do que somos. Por isso, quando Francis Fukuyama afirma que "o desejo de reconhecimento tem uma base biológica, e essa base está relacionada aos níveis de serotonina no cérebro", nossa própria consciência desse fato não mina o sentimento de dignidade decorrente de sermos reconhecidos pelos outros? Não podemos tê-lo em ambos os níveis ao mesmo tempo -podemos tê-lo apenas ao preço de uma abjuração fetichista: "Embora eu saiba muito bem que minha auto-estima depende da serotonina, de qualquer modo a aprecio..." Na página seguinte, Fukuyama expõe os três níveis para se conquistar auto-estima: "A maneira normal, e moralmente aceitável, de superar a baixa auto-estima era lutar consigo mesmo e com os outros, trabalhar duro, suportar sacrifícios às vezes dolorosos e finalmente ascender e ser visto como alguém que realizou isso. O problema da auto-estima como é entendida na psicologia pop americana é que ela se torna um direito, algo que todo mundo precisa ter, seja ou não merecido. Isso desvaloriza a auto-estima e torna prejudicial sua busca. Mas então vem a indústria farmacêutica americana, que por meio de drogas como Zoloft e Prozac pode oferecer auto-estima engarrafada, elevando a serotonina no cérebro" ["Our Post-Human Future"]. A diferença entre a segunda e a terceira opções é muito mais assustadora do que pode parecer. Quando eu obtenho auto-estima porque a sociedade concorda que tenho direito a isso e oferece o reconhecimento de meus pares, trata-se na verdade de um paradoxo performático que se destrói a si mesmo; no entanto, quando a obtenho através de drogas, consigo a "coisa real". Imaginemos o seguinte roteiro: eu participo de um concurso de perguntas e respostas; em vez do difícil processo de aprender, eu reforço minha memória com drogas -no entanto, a auto-estima que obtenho ao vencer o concurso ainda se baseia na conquista real, isto é, eu realmente me saí melhor que meu colega que passou noites tentando aprender todos os fatos importantes sobre o tema do concurso. O contra-argumento intuitivo óbvio é que apenas meu adversário realmente tem o direito de sentir-se orgulhoso, porque seu resultado foi consequência de trabalho duro e árdua dedicação -no entanto, não há algo inerentemente humilhante e condescendente nessa posição, como ao dizermos para uma pessoa com deficiência mental que consegue tecer o cesto proverbial: "Você deve se orgulhar pelo que fez"? Além disso, não consideramos justificável que alguém com um enorme talento natural para cantar se orgulhe de seu desempenho, embora estejamos conscientes de que seu canto se baseia mais em talento do que em esforço e estudo (o antigo problema Mozart-Salieri)? Entretanto, se eu melhorasse meu canto por meio de uma droga, não seria objeto de estima (a não ser na situação em que eu fizesse um grande esforço para inventar essa droga e a testasse em mim mesmo). Portanto, não se trata simplesmente de trabalho duro e esforço "versus" a ajuda de uma droga: o ponto principal é que tanto o trabalho duro como o talento são considerados "parte de mim", do meu "Self", enquanto o aperfeiçoamento através da droga resulta de uma manipulação externa. E, mais uma vez, isso nos leva de volta ao mesmo problema: quando SABEMOS que meu "talento natural" depende de uma substância química em meu cérebro, realmente importa, moralmente, se eu o obtive do exterior ou ao nascer? Para complicar ainda mais as coisas: E se minha própria disposição para me dedicar ao esforço interior, à disciplina e ao trabalho duro depender de uma substância química? E se, para vencer um concurso, eu não tomar diretamente uma droga que reforce minha memória, mas "simplesmente" uma droga que reforce meu empenho e minha dedicação? Também é "trapaça"? Por que então Fukuyama passa da defesa da democracia liberal como "fim da história" para a ameaça representada pelas ciências do cérebro? A resposta parece fácil: a ameaça biogenética é uma versão nova e muito mais radical do "fim da história", que mina os próprios fundamentos da democracia liberal: os novos avanços científicos e tecnológicos potencialmente tornam obsoleto o sujeito liberal-democrata livre e autônomo. Existe, porém, um motivo mais profundo para Fukuyama voltar-se para as ciências do cérebro, um motivo que envolve diretamente sua visão política: é como se a perspectiva das manipulações biogenéticas obrigasse Fukuyama a perceber o reverso sombrio de sua imagem idealizada da democracia liberal. De repente, a propósito da ameaça biogenética, ele é forçado a confirmar todas as coisas que desapareceram magicamente de sua utopia liberal-democrata: as perspectivas sombrias de as corporações usarem o mercado livre para manipular as pessoas e dedicar-se a terríveis experimentos médicos, de os ricos criarem sua prole como uma raça especial, com capacidades físicas e mentais superiores, instigando assim uma nova guerra de classes. Está claro para Fukuyama que a única maneira de conter esse perigo é reafirmar um forte controle estatal do mercado e desenvolver novas formas de vontade política democrática. (Embora seja fácil fazer graça com as óbvias simplificações de Fukuyama, há mesmo assim algo de refrescante em sua figura: em nosso espaço intelectual cheio de falsos protestos, finalmente um apologista da ordem existente totalmente dedicado -e não é de admirar que sua obra com frequência produza um inesperado grão de verdade.)

Fim da história e do sujeito
Embora concordemos com tudo isso, somos tentados a acrescentar: não precisamos dessas medidas também independentemente da ameaça biogenética, apenas para controlar o terrível potencial da economia de mercado global? Talvez o problema não seja a biogenética em si, mas sobretudo o contexto social das relações de poder no qual ela funciona. O problema de Fukuyama é portanto duplo: sua argumentação é ao mesmo tempo abstrata demais e concreta demais. Ele deixa de questionar todas as implicações filosóficas das novas ciências e tecnologias da mente, e deixa de situar essas ciências e tecnologias em seu contexto socioeconômico antagônico. O que ele não compreende (e um verdadeiro hegeliano DEVERIA compreender) é a ligação necessária entre os dois "fins da história", a passagem necessária de um para outro: o "fim da história" liberal-democrata imediatamente se transforma em seu contrário, já que, no momento mesmo de seu triunfo, começa a perder sua própria base: o sujeito liberal-democrata.
A biogenética (e, de maneira geral, também o reducionismo cognitivista-evolucionário) deveria ser atacada de uma direção diferente. Bo Dahlbom está certo, em sua crítica de Daniel Dennett ["Mind is Artificial", no volume "Dennett and his Critics"], quando insiste no caráter SOCIAL da "mente". Em primeiro lugar, as teorias da mente são obviamente condicionadas por seu contexto social e histórico: a noção de Dennett de diversos esboços concorrentes não exibe suas raízes no capitalismo tardio "pós-industrial", com seus motivos de concorrência, descentralização etc.? Fredric Jameson propôs recentemente uma leitura de "Consciousness Explained" [A Consciência Explicada] como uma alegoria do capitalismo atual. De modo ainda mais importante, Dennett insiste que as ferramentas -a inteligência exteriorizada de que os seres humanos dependem- são uma parte inerente da identidade humana: não tem sentido imaginar um ser humano como uma entidade biológica, SEM a rede complexa de suas ferramentas -essa idéia equivale a, por exemplo, um ganso ou um pássaro sem penas. Ele não abre assim um caminho que deveria ser levado muito mais adiante que no próprio Dennett? Já que, para colocar nos bons e velhos termos marxistas, o homem é a totalidade de suas relações sociais, por que Dennett não dá o passo lógico seguinte e analisa diretamente essa rede de relações sociais? Esse domínio da "inteligência exteriorizada", desde as ferramentas até, especialmente, a própria linguagem, e as relações sociais nela envolvidas, forma um domínio por si só, o do que Hegel chamou de "espírito objetivo", o domínio da substância artificial em oposição à substância natural. A fórmula proposta por Dahlbom, portanto, é: da "Sociedade de Mentes" (a idéia desenvolvida por Minsky, Dennett e outros) às "Mentes de Sociedade", isto é, a mente humana como algo que só pode surgir e funcionar dentro de uma complexa rede de relações sociais e complementos mecânicos artificiais que "objetivam" a inteligência. Agora podemos ver onde está o erro do projeto reducionista: o problema não é como reduzir a mente a processos neurais "materiais", substituir a linguagem da mente pela linguagem dos processos cerebrais, traduzir a primeira na segunda, mas, sobretudo, compreender como a mente pode surgir somente ao estar incrustada na rede de relações sociais e complementos materiais. Deveríamos portanto mudar a ênfase da metáfora para a metonímia: o verdadeiro problema não é "Como seria possível as máquinas IMITAREM a mente humana?", mas: "Como a própria identidade da mente humana depende de complementos mecânicos externos, como ela incorpora as máquinas?"

Controle remoto interior
Em março de 2002 a mídia relatou que Kevin Warwick, de Londres, tornou-se o primeiro ciber-homem: em um hospital de Oxford, seu sistema neurológico foi diretamente conectado a uma rede de computadores; ele é, portanto, o primeiro homem para o qual dados são fornecidos diretamente, sem passar pelos cinco sentidos. ISSO é o futuro: a combinação, e não a substituição, da mente humana com o computador.
Tivemos mais uma amostra desse futuro em maio de 2002, quando foi relatado que cientistas da Universidade de Nova York ligaram um chip de computador diretamente ao cérebro de um rato, de modo que se podia dirigir o rato (determinar a direção em que ele correria) por meio de um mecanismo semelhante ao de um carrinho com controle remoto. Esse não é o primeiro caso de ligação direta entre um cérebro e uma rede de computadores: já existem ligações que permitem a pessoas cegas receber informações visuais elementares sobre seu entorno diretamente no cérebro, sem passar pelo aparato da percepção visual (olhos etc.); o que é novo, no caso do rato, é que pela primeira vez a "vontade" de um agente animal vivo -as decisões "espontâneas" sobre os movimentos que fará- é controlada por uma máquina externa.
A questão filosófica aqui é: como o infeliz rato "vivenciou" seu movimento, que na verdade foi decidido externamente? Ele continuou a "vivenciá-lo" como algo espontâneo, isto é, estava totalmente inconsciente de que seus movimentos eram dirigidos? Ou tinha consciência de que "alguma coisa estava errada", de que outro poder externo estava decidindo seus movimentos? E o que acontecerá quando o mesmo experimento for realizado em seres humanos (o que, não obstante as questões éticas, não deverá ser muito mais complicado que no caso do rato)?
Então, mais uma vez: Um ser humano dirigido continuará "vivenciando" seus movimentos como algo espontâneo, continuará totalmente inconsciente de que seus movimentos são dirigidos, ou terá consciência de que "alguma coisa está errada", de que outro poder externo está decidindo seus movimentos? E como, exatamente, aparece esse "poder externo"? Como algo "dentro de mim", um impulso interno incontível, ou como uma simples coerção externa? Também são sintomáticas as possíveis aplicações desse mecanismo mencionadas por cientistas e jornalistas: o acoplamento de ajuda humanitária e campanha antiterrorista -poderíamos usar ratos ou outros animais dirigidos para encontrar vítimas de um terremoto sob os destroços E para atacar terroristas sem pôr em risco vidas humanas...
A tendência no desenvolvimento dos computadores é na direção de sua invisibilidade: as grandes máquinas ronronantes com misteriosas luzes piscando serão cada vez mais substituídas por pequenas peças adaptadas de modo imperceptível a nossos ambientes "normais", permitindo que funcionem mais suavemente. Os computadores, em vez de se tornarem os monstros vorazes vistos nos filmes de ficção científica, se tornarão tão pequenos e imperceptíveis que serão invisíveis, em toda parte e em lugar nenhum, tão poderosos que desaparecerão de vista.
Basta lembrarmos os automóveis de hoje, em que muitas funções são realizadas suavemente devido a pequenos computadores que a maioria de nós não percebe (acionamento dos vidros, aquecimento...); no futuro próximo, teremos cozinhas, ou até vestidos, copos e sapatos computadorizados. Longe de ser uma questão de um futuro distante, essa invisibilidade já está aqui: daqui a um ano a Philips pretende lançar no mercado um telefone e reprodutor de música que será entremeado ao tecido de um paletó de tal forma que será possível não apenas vestir o paletó da maneira habitual, sem se preocupar com o maquinário digital, mas também lavá-lo sem remover nada.
Esse desaparecimento do nosso campo de experiência sensual (visual) não é tão inocente quanto possa parecer: a própria característica que tornará fácil lidar com o paletó Philips -não mais uma máquina volumosa e delicada, mas quase uma prótese orgânica de nosso corpo- lhe conferirá um caráter fantasmagórico de Mestre invisível todo-poderoso -a prótese maquínica será menos um aparato externo com o qual interagimos e mais uma parte de nossa experiência direta como organismo vivo, com o que nos descentrará a partir do interior.
Por esse motivo, é enganoso o paralelo entre a crescente invisibilidade dos computadores e o conhecido fato de que quando as pessoas sabem suficientemente bem alguma coisa deixam de ter consciência dela. O sinal de que aprendemos uma língua é que não precisamos mais nos concentrar em suas regras: não apenas a falamos "espontaneamente", como nos concentrarmos ativamente em suas regras nos impede de falar com fluência. No entanto, no caso da língua, tivemos de aprendê-la antes, "tê-la na cabeça", enquanto os computadores invisíveis em nossos ambientes estão aí agindo não "espontaneamente", mas apenas cegamente.
Então, o que teria dito Hegel a respeito do projeto genoma e das intervenções biogenéticas? Qualquer que fosse sua reação, certamente não teria sido retrair-se com medo, preferindo a ignorância ao risco. Hegel não se alegraria com "Tu És Genoma", nessa versão definitiva e fragmentadora do antigo "Tu És Isso", como o exemplo máximo do julgamento infinito cujos dois outros famosos exemplos hegelianos são "O espírito é um osso" e "O "Self" é dinheiro"?
Ao contrário de Jürgen Habermas, deveríamos assim afirmar a necessidade ética de assumirmos a plena objetivação do genoma: essa redução do meu ser substancial à fórmula insensível do genoma me força a atravessar o fantasmagórico "étoffe du moi", o estofo de que são feitos nossos egos -e é somente através desse esforço que pode emergir a subjetividade propriamente dita.

Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves


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