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"Maria Antonieta d'Alkmin e Oswald de Andrade - Marco Zero" reúne cartas,
fotografias e documentos dos últimos anos de vida do escritor modernista
O guerreiro de primeira linha
Beatriz Resende
especial para a Folha
Diferentemente das "Memórias
de João Miramar", "Maria Antonieta d'Alkmin e Oswald de
Andrade - Marco Zero" é um livro de fato sentimental. Organizado pela
filha do casal, Marília de Andrade, e por
Ésio Macedo Ribeiro, a publicação traz
documentos referentes aos últimos anos
da vida do escritor guardados pelo importante Centro de Estudos Alexandre
Eulálio, da Universidade Estadual de
Campinas, e mais outros, das coleções
dos autores: bilhetes, cartinhas, fotografias, documentos pessoais. Em apêndice,
poema de Edgard Braga e ensaio de Vera
Chalmers.
Em 1940, Oswald de Andrade conhece
Maria Antonieta d'Alkmin, joga uma
cantada à sua imagem e semelhança
-"Você gosta de literatura?"- e a contrata como secretária. No ano seguinte,
com ela se casa "em últimas núpcias".
Estava sendo sincero. Serão 11 anos de
amor recíproco, como comprovam os
documentos desde álbum.
A normalista não era exatamente uma
Lolita, tinha 24 anos, mas era quase 30
anos mais jovem do que aquele avô, que
lhe fora apresentado como um comunista, autor de "Os Condenados". Foi a sexta mulher na longa séria de casamentos
do poeta, iniciada com Kamiá, mãe de
Nonê. A lista passa pela cerimônia realizada "in extremis", às vésperas da morte
de miss Cyclone ou Dayse ou Maria de
Lourdes, talentosa companheira de momentos anotados em "O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo", diário
da "garçonnière" mantida por um grupo
de modernistas de São Paulo. A quinta
fora a amiga da família de Antonieta, Julieta Bárbara, que proporcionara o encontro dos dois.
Paralelamente ao início da relação, Oswald escreve o primeiro volume de
"Marco Zero", "A Revolução Melancólica", e o poema feito como declaração de
amor à nova paixão, o longo e elaborado
"Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão", incluído no livro.
No texto escrito por Maria Antonieta,
em 1961, "Evocações (Oswald de Andrade em Minha Vida)", em que narra o trabalho de auxílio na criação do romance
que deveria ser enviado a concurso literário nos Estados Unidos, está uma das
partes mais interessantes desse volume
memorialístico. Em tardes de trabalho
exaustivo, dr. Oswald ditava à secretária
improvisada trechos da obra, relia o que
fora escrito à mão, fazia modificações,
inseria detalhes, riscava páginas inteiras.
Prática trabalhosa Em bilhetes cuidadosamente guardados pela mulher
apaixonada pedia-lhe que revisse os vários cadernos com material selecionado,
procurasse anotações prévias, fizesse
pesquisas, como a encomendada em 3 de
setembro de 1942: "Veja se acha nos cadernos de material a história da onça "gata" e as raivas da fazendeira depois da revolução". Revela-se, então, uma prática
literária lenta e trabalhosa, contrariando
qualquer idéia de espontaneísmo, livre
fluxo de pensamento ou escritura de um
jato, com que costumamos identificar a
produção modernista.
Nesse relato, serve ainda como depoimento para uma história da vida literária
à época a impressão que causa em Antonieta a viagem ao Rio. O encanto diante
de Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira, o fascínio pelas noitadas no Vermelhinho e no Amarelinho com Moacyr
Werneck de Castro e Rubem Braga, o encontro com Villa-Lobos e o impacto que
lhe causou a mulher de Álvaro Moreyra,
Eugênia, "num vestido preto soirée justo
e acinturado, aquelas franjinhas lisas do
cabelo negro, negro, sua maquiagem,
seus brincos pingentes e um colar de fantasia caindo até a cintura". Tanto quanto
o charuto fumegante de Eugênia, comandando a cena, causa-lhe espanto a
docilidade do marido, espremido à mesa, numa ponta de banco, ouvindo encantado falarem as crianças e a mulher.
É também Maria Antonieta quem fala
da repercussão causada pela conferência
pronunciada em Belo Horizonte, em
1944, a convite do então prefeito Juscelino Kubitschek, o protesto dos "irmãos
maristas (apelido que Oswald deu aos
discípulos de Mário de Andrade)" e a
ameaça de tumulto diante do ataque aos
integralistas. Sábia decisão incluir no volume o texto de "O Caminho Percorrido", balanço do movimento modernista
22 anos depois e posicionamento vigoroso num momento em que a vida democrática sofria graves ameaças dentro e fora do país.
A conferência reafirma a importância
da antropofagia, "lancinante divisor de
águas", que salvara o sentido do modernismo, e destaca a função do intelectual
na sociedade: "O papel do intelectual e
do artista é tão importante hoje como o
guerreiro de primeira linha". Mas nem aí
o escritor contém sua verve satírica. Oswald lembra ao público que o sr. Tristão
de Athayde está tingindo a cabeça de
acaju. Em seguida, denuncia a adesão de
Cassiano Ricardo -"ratazana em molho pardo"- ao integralismo.
Mas a verdade é que, àquela altura da
vida, Oswald estava deixando de ser o
iconoclasta de plantão, para quem era
preciso ser vanguarda 24 horas por dia,
na obra e na vida. Começa a se abrandar,
vai engordando, levado aos doces pela
gula e pelo diabetes. As fotos o mostram
ora feliz, entre os filhos pequenos, ora
envelhecido, segurando a filha em robe
de chambre e, finalmente, abatido e
doente, sempre com os olhos pregados
na companheira. Do hospital, escreve à
mulher: "Mande o assento de borracha e
o livro que está aí na sala, entitulado
"Russian Art'".
Poucos amigos Por conta da sentimentalidade que atravessa o volume, nele figuram poemas do filho caçula, morto
aos 20 anos, e redação onde sintetiza a
imagem que fica daquele momento:
"Meu pai era alto, gordo, velho, com cabelos grisalhos". E, em seguida: "Ele era
inteligentíssimo".
No texto final de Marília Andrade comove o contraste entre a vocação para a
felicidade que o autor teve por toda a vida e a dificuldade em experimentá-la na
fase final, endividado, distante do prestígio que só voltaria após sua morte, com a
encenação de "O Rei da Vela", em 1967,
cercado de poucos amigos.
Afinal, não é comum uma reação como
a de Antonio Candido. Todos conhecemos a violência com que Oswald de Andrade, em artigo de 1943, incluído em
"Ponta de Lança", responde às críticas
feitas por Candido, não poupando agressões ao "sr. Antonio Candido e seus chato-boys". Ao que parece, porém, o ataque foi inútil diante da proverbial generosidade do professor. Às vésperas da
morte, em outubro de 1954, são Antonio
Candido e Mário da Silva Brito os únicos
amigos que cercam, carinhosamente, o
escritor.
Em janeiro de 1969, Maria Antonieta
suicida-se, no Rio de Janeiro. Ao que parece, nunca superou a perda do amado.
Beatriz Resende é professora da UniRio e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
É autora de "Apontamentos de Crítica Cultural"
(DNL/Aeroplano), entre outros.
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