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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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"Maria Antonieta d'Alkmin e Oswald de Andrade - Marco Zero" reúne cartas, fotografias e documentos dos últimos anos de vida do escritor modernista

O guerreiro de primeira linha

Beatriz Resende
especial para a Folha

Diferentemente das "Memórias de João Miramar", "Maria Antonieta d'Alkmin e Oswald de Andrade - Marco Zero" é um livro de fato sentimental. Organizado pela filha do casal, Marília de Andrade, e por Ésio Macedo Ribeiro, a publicação traz documentos referentes aos últimos anos da vida do escritor guardados pelo importante Centro de Estudos Alexandre Eulálio, da Universidade Estadual de Campinas, e mais outros, das coleções dos autores: bilhetes, cartinhas, fotografias, documentos pessoais. Em apêndice, poema de Edgard Braga e ensaio de Vera Chalmers. Em 1940, Oswald de Andrade conhece Maria Antonieta d'Alkmin, joga uma cantada à sua imagem e semelhança -"Você gosta de literatura?"- e a contrata como secretária. No ano seguinte, com ela se casa "em últimas núpcias". Estava sendo sincero. Serão 11 anos de amor recíproco, como comprovam os documentos desde álbum. A normalista não era exatamente uma Lolita, tinha 24 anos, mas era quase 30 anos mais jovem do que aquele avô, que lhe fora apresentado como um comunista, autor de "Os Condenados". Foi a sexta mulher na longa séria de casamentos do poeta, iniciada com Kamiá, mãe de Nonê. A lista passa pela cerimônia realizada "in extremis", às vésperas da morte de miss Cyclone ou Dayse ou Maria de Lourdes, talentosa companheira de momentos anotados em "O Perfeito Cozinheiro das Almas Deste Mundo", diário da "garçonnière" mantida por um grupo de modernistas de São Paulo. A quinta fora a amiga da família de Antonieta, Julieta Bárbara, que proporcionara o encontro dos dois. Paralelamente ao início da relação, Oswald escreve o primeiro volume de "Marco Zero", "A Revolução Melancólica", e o poema feito como declaração de amor à nova paixão, o longo e elaborado "Cântico dos Cânticos para Flauta e Violão", incluído no livro. No texto escrito por Maria Antonieta, em 1961, "Evocações (Oswald de Andrade em Minha Vida)", em que narra o trabalho de auxílio na criação do romance que deveria ser enviado a concurso literário nos Estados Unidos, está uma das partes mais interessantes desse volume memorialístico. Em tardes de trabalho exaustivo, dr. Oswald ditava à secretária improvisada trechos da obra, relia o que fora escrito à mão, fazia modificações, inseria detalhes, riscava páginas inteiras.

Prática trabalhosa Em bilhetes cuidadosamente guardados pela mulher apaixonada pedia-lhe que revisse os vários cadernos com material selecionado, procurasse anotações prévias, fizesse pesquisas, como a encomendada em 3 de setembro de 1942: "Veja se acha nos cadernos de material a história da onça "gata" e as raivas da fazendeira depois da revolução". Revela-se, então, uma prática literária lenta e trabalhosa, contrariando qualquer idéia de espontaneísmo, livre fluxo de pensamento ou escritura de um jato, com que costumamos identificar a produção modernista. Nesse relato, serve ainda como depoimento para uma história da vida literária à época a impressão que causa em Antonieta a viagem ao Rio. O encanto diante de Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira, o fascínio pelas noitadas no Vermelhinho e no Amarelinho com Moacyr Werneck de Castro e Rubem Braga, o encontro com Villa-Lobos e o impacto que lhe causou a mulher de Álvaro Moreyra, Eugênia, "num vestido preto soirée justo e acinturado, aquelas franjinhas lisas do cabelo negro, negro, sua maquiagem, seus brincos pingentes e um colar de fantasia caindo até a cintura". Tanto quanto o charuto fumegante de Eugênia, comandando a cena, causa-lhe espanto a docilidade do marido, espremido à mesa, numa ponta de banco, ouvindo encantado falarem as crianças e a mulher. É também Maria Antonieta quem fala da repercussão causada pela conferência pronunciada em Belo Horizonte, em 1944, a convite do então prefeito Juscelino Kubitschek, o protesto dos "irmãos maristas (apelido que Oswald deu aos discípulos de Mário de Andrade)" e a ameaça de tumulto diante do ataque aos integralistas. Sábia decisão incluir no volume o texto de "O Caminho Percorrido", balanço do movimento modernista 22 anos depois e posicionamento vigoroso num momento em que a vida democrática sofria graves ameaças dentro e fora do país. A conferência reafirma a importância da antropofagia, "lancinante divisor de águas", que salvara o sentido do modernismo, e destaca a função do intelectual na sociedade: "O papel do intelectual e do artista é tão importante hoje como o guerreiro de primeira linha". Mas nem aí o escritor contém sua verve satírica. Oswald lembra ao público que o sr. Tristão de Athayde está tingindo a cabeça de acaju. Em seguida, denuncia a adesão de Cassiano Ricardo -"ratazana em molho pardo"- ao integralismo. Mas a verdade é que, àquela altura da vida, Oswald estava deixando de ser o iconoclasta de plantão, para quem era preciso ser vanguarda 24 horas por dia, na obra e na vida. Começa a se abrandar, vai engordando, levado aos doces pela gula e pelo diabetes. As fotos o mostram ora feliz, entre os filhos pequenos, ora envelhecido, segurando a filha em robe de chambre e, finalmente, abatido e doente, sempre com os olhos pregados na companheira. Do hospital, escreve à mulher: "Mande o assento de borracha e o livro que está aí na sala, entitulado "Russian Art'".

Poucos amigos Por conta da sentimentalidade que atravessa o volume, nele figuram poemas do filho caçula, morto aos 20 anos, e redação onde sintetiza a imagem que fica daquele momento: "Meu pai era alto, gordo, velho, com cabelos grisalhos". E, em seguida: "Ele era inteligentíssimo".
No texto final de Marília Andrade comove o contraste entre a vocação para a felicidade que o autor teve por toda a vida e a dificuldade em experimentá-la na fase final, endividado, distante do prestígio que só voltaria após sua morte, com a encenação de "O Rei da Vela", em 1967, cercado de poucos amigos.
Afinal, não é comum uma reação como a de Antonio Candido. Todos conhecemos a violência com que Oswald de Andrade, em artigo de 1943, incluído em "Ponta de Lança", responde às críticas feitas por Candido, não poupando agressões ao "sr. Antonio Candido e seus chato-boys". Ao que parece, porém, o ataque foi inútil diante da proverbial generosidade do professor. Às vésperas da morte, em outubro de 1954, são Antonio Candido e Mário da Silva Brito os únicos amigos que cercam, carinhosamente, o escritor.
Em janeiro de 1969, Maria Antonieta suicida-se, no Rio de Janeiro. Ao que parece, nunca superou a perda do amado.


Beatriz Resende é professora da UniRio e pesquisadora da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É autora de "Apontamentos de Crítica Cultural" (DNL/Aeroplano), entre outros.


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