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Coletâneas de três autores brasileiros apontam os dilemas da poesia moderna,
dividida entre o sublime e o engajamento ou entre a expressão épica e a lírica
Formas fixas, tensões múltiplas
Luis Bueno
especial para a Folha
Em um poema publicado originalmente em "Plural de Nuvens"
(1984), Gilberto Mendonça Teles
procura localizar ou não localizar
sua obra no panorama da poesia brasileira do século 20: "Sou um poeta só, sem
geração,/ que chegou tarde à gare modernista...// A de quarenta e cinco me tutela,/ me trata como a um filho natural".
A reunião de obras com largo caminho
percorrido, como é o caso de Geir Campos (1924-99), Carlos Nejar (1939) e do
próprio Gilberto Mendonça Teles (1931),
convida o leitor a fazer seus balanços: balanço da obra, balanço das gerações.
A "Antologia Poética" de Geir Campos, organizada por Israel Pedrosa, fornece aquela que, entre essas três trajetórias, é a mais reveladora das evoluções
por que passou a poesia brasileira na segunda metade do século 20. Em seus primeiros livros percebe-se bem sua filiação
àquela que ficou conhecida como Geração de 45, que quis trilhar "um novo caminho fora dos limites do modernismo",
nas palavras de Fernando F. de Loanda.
Condição humana Em "Rosa dos
Rumos" (1950) e "Arquipélago" (1952),
Geir Campos já se revela poeta de grande
habilidade, demonstrada no manejo seguro e maduro das formas fixas. A comparação é largamente empregada nesses
primeiros livros, e o método mais frequente de desenvolvimento do tema recupera algo caro aos parnasianos e aos
simbolistas -o que não quer dizer que o
poeta seja mero repetidor de métodos, é
mesmo um atualizador deles.
Partindo de algum elemento concreto
-um urubu, um pião, um caracol, um
relógio ou uma dançarina-, o poema
busca revelar diante do leitor algum aspecto da condição humana, que marca
um interesse dominante pelo sublime
nessa obra inicial.
Esse interesse, no entanto, vai ceder lugar ao engajamento, que se coloca logo
em "Poética", poema de abertura de
"Canto Claro" (1957), e formula o desejo
de escrever uma poesia que seja clara e
capaz de levar os homens à ação. Na prática, esse desejo se concretizará em textos
como "Da Profissão do Poeta" (1956) ou
"Canto ao Homem da ONU", que afirmam a esperança num tempo de mais
justiça, lembrando a embocadura de um
Thiago de Mello.
A essa altura, Geir Campos assume integralmente todos os impasses desse tipo
de literatura e, em nome da urgência dos
problemas presentes, chega a exageros
como o de negar qualquer valor ao tipo
de inquietação que ele próprio manifestara antes: "Aos que perquirem os fins da
existência/ pergunto:/ Quanta gente há
no país/ sem meios de subsistência?".
Em compensação, esse movimento para
fora do sublime o leva a certos momentos de síntese e precisão: "Ai eterno é o
que passa/ mais depressa".
Memória "Hora Aberta", reunião de
toda a poesia de Gilberto Mendonça Teles, traz um movimento até certo ponto
semelhante ao de Geir Campos. Sua estréia também se dá sob o signo da Geração de 45 e, na apresentação a "Estrela-d'Alva" (1957), o poeta afirma que obedece à própria sensibilidade, e não "às
normas liberais do modernismo". De fato, seus primeiros livros revelam um esforçado metrificador, bastante ingênuo,
dedicando poemas à mãe, ao poente, aos
pássaros ou à árvore, ou seja, tentando
arrancar poesia, por meio de um disfarçado sentimentalismo, daquilo que já seria convencionalmente poético. Os resultados são modestos, mas o exercício
dá bons frutos e o poeta passa por grande
e rápida evolução e, já em "Fábula de Fogo" (1961), se encontram elementos que
marcarão sua obra madura: a consciência aguda do afazer literário, o verso
fluente, que mal se percebe metrificado,
a descoberta da simplicidade verbal e da
poesia amorosa despida de solenidade:
"Um dia ficaremos tristes/ e sós no centro da paisagem/ tocada de silêncio".
Nos livros seguintes, essa evolução se
confirma, mas, diferentemente de Geir
Campos, não é no engajamento que ele
encontrará sua dicção mais própria, e
sim na memória e no humor, veios que
se ajustam perfeitamente à sua linguagem, cada vez mais fluente e simples.
No livro "Sociologia Goiana" (1982) há
um poema, "Estímulo", que sintetiza tudo isso, a desconfiança do engajamento,
o humor e o memorialismo: "Você precisa deixar de escrever poemas de amor./
Isso não existe mais, está superado./ O
tempo hoje é de poemas engajados./ Escreva sobre o povo e sua fome.// Guardei
o conselho do festivo escritor goiano/ e
fui-me engajar nos braços da namorada
impaciente./ Depois, fomos jantar no
restaurante do mercado.// Era a minha
primeira lição de metafísica".
Luz, fogo e vento A forma como se
organiza a poesia reunida de Carlos Nejar, em dois volumes, "A Idade da Noite"
e "A Idade da Aurora", favorece bastante
a compreensão da trajetória do poeta.
Diferentemente das obras reunidas de
Geir Campos e de Gilberto Mendonça
Teles, aqui o leitor não tem diante de si os
livros em ordem puramente cronológica. O primeiro volume se abre com um
livro de 1991, "Meus Estimados Vivos",
um poema longo ou uma série de poemas que compõem um todo em que se
enuncia a vida no espaço fechado, escuro
e com pouco ar de um túnel e se narra o
esforço empreendido para sair dele.
A leitura desses quinhentos e poucos
versos serve de excelente introdução ao
universo poético de Nejar. Em primeiro
lugar porque indica que não se trata de
poeta de coletâneas, mas sim de livros de
poesia, dando continuidade e recolocando uma tradição importante, mas um
tanto marginalizada, da moderna poesia
brasileira: aquela que funde o narrativo,
poderia se dizer o épico e o lírico, como
fizeram Cecília Meireles no "Romanceiro da Inconfidência" e Jorge de Lima na
"Invenção de Orfeu".
Em segundo lugar porque nos apresenta alguns dos símbolos mais caros ao
poeta, como a luz, o fogo e o vento -este
último como aragem anunciadora daquilo que está fora do túnel. Em terceiro
lugar porque coloca de saída aquilo que
se pode chamar com segurança de visão
de mundo do poeta. O verso final de
"Meus Estimados Vivos" revela, em síntese e essência, no que consiste essa grande armação que sustém toda a obra de
Nejar: "A eternidade é ver".
Vida concreta Uma fórmula como
essa relaciona de forma orgânica a longa
duração e o passageiro e propõe que há
uma espécie de razão de existência do
sublime no corriqueiro, o que dá conta
da amplidão de interesses e da articulação entre esses interesses que há na poesia de Nejar. Não é preciso abandonar a
reflexão sobre a condição humana, no
que ela tem de mais abstrata e universal,
para pensar na vida concreta do trabalhador rural, por meio de um personagem específico, como acontece em "Canga". Mesmo porque, visto sob essa ótica,
o trabalhador é mais que sua fome. Sendo assim, a inquietação social em Carlos
Nejar não reivindica que se renuncie a
nenhuma outra inquietação: ela é também existencial.
Diferentes que sejam as soluções encontradas por Geir Campos, Gilberto
Mendonça Teles e Carlos Nejar, a oportunidade de ler suas obras quase na íntegra é fundamental para que se compreenda a literatura de um tempo e, mais
do que isso, para que se compreenda um
tempo que é o nosso.
Luis Bueno é professor de literatura brasileira na
Universidade Federal do Paraná.
Antologia Poética
400 págs., R$ 48,00
de Geir Campos. Ed. Leo Christiano (caixa postal
25.026, CEP 20552-970, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/
xx/21/ 2568-1979).
Hora Aberta
1.114 págs., R$ 85,00
de Gilberto Mendonça Teles. Ed. Vozes (r. Frei
Luís, 100, CEP 25689-900, Petrópolis, RJ, tel. 0/
XX/24/2233-9000).
A Idade da Noite
464 págs., R$ 45,00
de Carlos Nejar. Ateliê Editorial (r. Manoel Pereira
Leite, 15, CEP 06709-280, Cotia, SP, tel. 0/ xx/ 11/
4612-9666).
A Idade da Aurora
508 págs., R$ 50,00
de Carlos Nejar. Ateliê Editorial.
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