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São Paulo, domingo, 22 de junho de 2003

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Coletâneas de três autores brasileiros apontam os dilemas da poesia moderna, dividida entre o sublime e o engajamento ou entre a expressão épica e a lírica

Formas fixas, tensões múltiplas

Luis Bueno
especial para a Folha

Em um poema publicado originalmente em "Plural de Nuvens" (1984), Gilberto Mendonça Teles procura localizar ou não localizar sua obra no panorama da poesia brasileira do século 20: "Sou um poeta só, sem geração,/ que chegou tarde à gare modernista...// A de quarenta e cinco me tutela,/ me trata como a um filho natural". A reunião de obras com largo caminho percorrido, como é o caso de Geir Campos (1924-99), Carlos Nejar (1939) e do próprio Gilberto Mendonça Teles (1931), convida o leitor a fazer seus balanços: balanço da obra, balanço das gerações. A "Antologia Poética" de Geir Campos, organizada por Israel Pedrosa, fornece aquela que, entre essas três trajetórias, é a mais reveladora das evoluções por que passou a poesia brasileira na segunda metade do século 20. Em seus primeiros livros percebe-se bem sua filiação àquela que ficou conhecida como Geração de 45, que quis trilhar "um novo caminho fora dos limites do modernismo", nas palavras de Fernando F. de Loanda.

Condição humana Em "Rosa dos Rumos" (1950) e "Arquipélago" (1952), Geir Campos já se revela poeta de grande habilidade, demonstrada no manejo seguro e maduro das formas fixas. A comparação é largamente empregada nesses primeiros livros, e o método mais frequente de desenvolvimento do tema recupera algo caro aos parnasianos e aos simbolistas -o que não quer dizer que o poeta seja mero repetidor de métodos, é mesmo um atualizador deles. Partindo de algum elemento concreto -um urubu, um pião, um caracol, um relógio ou uma dançarina-, o poema busca revelar diante do leitor algum aspecto da condição humana, que marca um interesse dominante pelo sublime nessa obra inicial. Esse interesse, no entanto, vai ceder lugar ao engajamento, que se coloca logo em "Poética", poema de abertura de "Canto Claro" (1957), e formula o desejo de escrever uma poesia que seja clara e capaz de levar os homens à ação. Na prática, esse desejo se concretizará em textos como "Da Profissão do Poeta" (1956) ou "Canto ao Homem da ONU", que afirmam a esperança num tempo de mais justiça, lembrando a embocadura de um Thiago de Mello. A essa altura, Geir Campos assume integralmente todos os impasses desse tipo de literatura e, em nome da urgência dos problemas presentes, chega a exageros como o de negar qualquer valor ao tipo de inquietação que ele próprio manifestara antes: "Aos que perquirem os fins da existência/ pergunto:/ Quanta gente há no país/ sem meios de subsistência?". Em compensação, esse movimento para fora do sublime o leva a certos momentos de síntese e precisão: "Ai eterno é o que passa/ mais depressa".

Memória "Hora Aberta", reunião de toda a poesia de Gilberto Mendonça Teles, traz um movimento até certo ponto semelhante ao de Geir Campos. Sua estréia também se dá sob o signo da Geração de 45 e, na apresentação a "Estrela-d'Alva" (1957), o poeta afirma que obedece à própria sensibilidade, e não "às normas liberais do modernismo". De fato, seus primeiros livros revelam um esforçado metrificador, bastante ingênuo, dedicando poemas à mãe, ao poente, aos pássaros ou à árvore, ou seja, tentando arrancar poesia, por meio de um disfarçado sentimentalismo, daquilo que já seria convencionalmente poético. Os resultados são modestos, mas o exercício dá bons frutos e o poeta passa por grande e rápida evolução e, já em "Fábula de Fogo" (1961), se encontram elementos que marcarão sua obra madura: a consciência aguda do afazer literário, o verso fluente, que mal se percebe metrificado, a descoberta da simplicidade verbal e da poesia amorosa despida de solenidade: "Um dia ficaremos tristes/ e sós no centro da paisagem/ tocada de silêncio". Nos livros seguintes, essa evolução se confirma, mas, diferentemente de Geir Campos, não é no engajamento que ele encontrará sua dicção mais própria, e sim na memória e no humor, veios que se ajustam perfeitamente à sua linguagem, cada vez mais fluente e simples. No livro "Sociologia Goiana" (1982) há um poema, "Estímulo", que sintetiza tudo isso, a desconfiança do engajamento, o humor e o memorialismo: "Você precisa deixar de escrever poemas de amor./ Isso não existe mais, está superado./ O tempo hoje é de poemas engajados./ Escreva sobre o povo e sua fome.// Guardei o conselho do festivo escritor goiano/ e fui-me engajar nos braços da namorada impaciente./ Depois, fomos jantar no restaurante do mercado.// Era a minha primeira lição de metafísica".

Luz, fogo e vento A forma como se organiza a poesia reunida de Carlos Nejar, em dois volumes, "A Idade da Noite" e "A Idade da Aurora", favorece bastante a compreensão da trajetória do poeta. Diferentemente das obras reunidas de Geir Campos e de Gilberto Mendonça Teles, aqui o leitor não tem diante de si os livros em ordem puramente cronológica. O primeiro volume se abre com um livro de 1991, "Meus Estimados Vivos", um poema longo ou uma série de poemas que compõem um todo em que se enuncia a vida no espaço fechado, escuro e com pouco ar de um túnel e se narra o esforço empreendido para sair dele. A leitura desses quinhentos e poucos versos serve de excelente introdução ao universo poético de Nejar. Em primeiro lugar porque indica que não se trata de poeta de coletâneas, mas sim de livros de poesia, dando continuidade e recolocando uma tradição importante, mas um tanto marginalizada, da moderna poesia brasileira: aquela que funde o narrativo, poderia se dizer o épico e o lírico, como fizeram Cecília Meireles no "Romanceiro da Inconfidência" e Jorge de Lima na "Invenção de Orfeu". Em segundo lugar porque nos apresenta alguns dos símbolos mais caros ao poeta, como a luz, o fogo e o vento -este último como aragem anunciadora daquilo que está fora do túnel. Em terceiro lugar porque coloca de saída aquilo que se pode chamar com segurança de visão de mundo do poeta. O verso final de "Meus Estimados Vivos" revela, em síntese e essência, no que consiste essa grande armação que sustém toda a obra de Nejar: "A eternidade é ver".

Vida concreta Uma fórmula como essa relaciona de forma orgânica a longa duração e o passageiro e propõe que há uma espécie de razão de existência do sublime no corriqueiro, o que dá conta da amplidão de interesses e da articulação entre esses interesses que há na poesia de Nejar. Não é preciso abandonar a reflexão sobre a condição humana, no que ela tem de mais abstrata e universal, para pensar na vida concreta do trabalhador rural, por meio de um personagem específico, como acontece em "Canga". Mesmo porque, visto sob essa ótica, o trabalhador é mais que sua fome. Sendo assim, a inquietação social em Carlos Nejar não reivindica que se renuncie a nenhuma outra inquietação: ela é também existencial.
Diferentes que sejam as soluções encontradas por Geir Campos, Gilberto Mendonça Teles e Carlos Nejar, a oportunidade de ler suas obras quase na íntegra é fundamental para que se compreenda a literatura de um tempo e, mais do que isso, para que se compreenda um tempo que é o nosso.


Luis Bueno é professor de literatura brasileira na Universidade Federal do Paraná.



Antologia Poética
400 págs., R$ 48,00
de Geir Campos. Ed. Leo Christiano (caixa postal 25.026, CEP 20552-970, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/ xx/21/ 2568-1979).

Hora Aberta
1.114 págs., R$ 85,00
de Gilberto Mendonça Teles. Ed. Vozes (r. Frei Luís, 100, CEP 25689-900, Petrópolis, RJ, tel. 0/ XX/24/2233-9000).

A Idade da Noite
464 págs., R$ 45,00
de Carlos Nejar. Ateliê Editorial (r. Manoel Pereira Leite, 15, CEP 06709-280, Cotia, SP, tel. 0/ xx/ 11/ 4612-9666).

A Idade da Aurora
508 págs., R$ 50,00
de Carlos Nejar. Ateliê Editorial.



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