São Paulo, domingo, 22 de julho de 2007

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+ Literatura

Relíquias da leitura

Milhares de crianças passaram de Harry Potter a outras leituras, mas muitas perderam o hábito

MOTOKO RICH

De todos os poderes mágicos utilizados por Harry Potter, talvez nenhum tenha exercido mais encantamento do que sua suposta capacidade de transformar os hábitos de leitura dos jovens.
Numa espécie de mitologia sobre a série extremamente popular da britânica J.K. Rowling, muitos pais, professores, bibliotecários e livreiros lhe deram crédito por inspirar uma geração de crianças a ler por prazer, em um mundo dominado por mensagens instantâneas e downloads de músicas.
Para muitas crianças, isso é verdade. Mas, assim como as próprias novelas intrincadas, a verdade sobre Harry Potter e a leitura não é uma história de sucesso tão evidente.
De fato, conforme a série se aproxima de um final muito lamentado, estatísticas do governo dos Estados Unidos mostram que a porcentagem de jovens que lêem por diversão continua caindo significativamente à medida que ficam mais velhos, quase exatamente na mesma proporção que antes do aparecimento de Harry Potter.

Sensação editorial
Não há dúvida de que os livros foram uma sensação editorial. Nos dez anos passados desde a publicação do primeiro volume, "Harry Potter e a Pedra Filosofal" [ed. Rocco], a série vendeu 325 milhões de exemplares em todo o mundo, com 121,5 milhões somente nos EUA.
Antes de Harry Potter, era virtualmente inédito que adolescentes fizessem fila por um simples livro.
Crianças que antes só haviam lido livros de capítulos curtos de repente estavam devorando mais de 700 páginas em questão de dias.
A editora Scholastic, que lançou a série nos EUA, planeja uma tiragem recorde de 12 milhões de exemplares para "Harry Potter e as Relíquias da Morte", o ansiosamente esperado sétimo e último episódio, lançado à 0h01 de 21/7 [horário de Londres].
Mas alguns pesquisadores dizem que a série, afinal, não atraiu tanto as crianças a ponto de abandonarem seus Game Boys [jogos eletrônicos portáteis] e se agarrarem a um livro.
Algumas se assustaram com o tamanho crescente dos volumes ["A Pedra Filosofal" é o primeiro e o menor, com 309 páginas em inglês; o novo livro deve ter 784 páginas].
Outros dizem que Harry Potter não tem tanta repercussão quanto títulos que refletem com mais realismo suas vidas cotidianas. "A mania por Harry Potter foi uma coisa muito positiva para as crianças", disse Dana Gioia, presidente da Fundação Nacional para as Artes.
"O problema é que um Harry Potter de vez em quando não basta para reverter o declínio da leitura."

"Aqui está o próximo"
Educadores concordam que a série por si só não tem essa capacidade.
"A menos que haja estímulo às crianças -um adulto entusiasmado dizendo "Aqui está o próximo'-, isso não vai acontecer", disse Nancie Atwell, autora de "The Reading Zone - How to Help Kids Become Skilled, Passionate, Habitual, Critical Readers" [Zona de Leitura - Como Ajudar as Crianças a Se Tornarem Leitores Hábeis, Apaixonados, Habituais e Críticos].
Os jovens têm menos inclinação a ler por prazer conforme avançam para a adolescência, dizem os educadores, e por diversas razões.
Algumas delas são tendências antigas (as crianças mais velhas sempre se tornam mais ativas socialmente, passam mais tempo lendo para o colégio ou simplesmente encontram outras fontes de entretenimento além dos livros) e algumas são mais recentes (a multiplicação de dispositivos de alta tecnologia que disputam sua atenção, de iPods a consoles Wii).
O que os pais e outros esperavam era que o sucesso fenomenal dos livros de Potter amortecesse essas tendências, talvez até criando uma geração de leitores para toda a vida.
"Qualquer pessoa que tenha filhos ou netos vê a concorrência pelo tempo das crianças aumentar quando eles entram na adolescência, e a leitura tem dificuldade para competir com eficácia", disse Gioia.
É verdade que milhares de crianças passaram dos livros de Harry Potter para outras leituras prazerosas, mas muitas também perderam o hábito.
Segundo a Avaliação Nacional de Progresso Educacional, uma série de estatísticas federais feitas a intervalos de anos com uma amostragem de estudantes da 4ª, 8ª e 12ª séries, a porcentagem de jovens que dizem ler por prazer quase diariamente caiu de 43% na quarta série para 19% na oitava em 1998, ano da publicação de "A Pedra Filosofal" nos EUA.
Em 2005, quando foi publicado o sexto livro, "Harry Potter e o Enigma do Príncipe", os resultados foram idênticos.

Cultura pop
De uma maneira que costumava ser rara para livros, Harry Potter entrou na consciência da cultura pop. Os filmes aumentaram o entusiasmo, dando origem a videogames e figurinhas para colecionar. Antes de Harry Potter, "não acho que as crianças se orgulhassem de ler", diz Connie Williams, bibliotecária da Kenilworth Junior High School, em Petaluma (Califórnia). "Agora é mais normal. É como: "Puxa, agora podemos ler, é legal"."
Mas criar o hábito da leitura é uma batalha constante entre jovens saturados por outras opções. Durante uma aula de inglês para a sexta série em Dorchester, Aaron Forde, um querubim de 12 anos, disse que adora jogar futebol, basquete e futebol americano. Além disso, passava quatro horas por dia conversando com amigos no site de relacionamentos MySpace.
Ele leu os três primeiros Harry Potter, mas disse que não tem mais muito interesse em continuar. "Não gosto tanto de ler. Tenho coisas melhores para fazer."
Neema Avashia, a professora de inglês de Aaron, disse que é raro Harry Potter atrair os leitores relutantes. "Tento ter na minha biblioteca livros que reflitam de onde vêm as crianças", disse Avashia. "E Harry Potter não é realmente de onde elas vêm." Ela comenta que sua classe é 85% não-branca e Harry Potter tem poucos personagens pertencentes a grupos raciais minoritários.
Alguns especialistas em leitura dizem que incentivar as crianças a ler ficção em geral pode ser uma meta enganosa. "Se você examinar o que a maioria das pessoas precisa ler para sua profissão, é narrativa zero", diz Michael L. Kamil, professor de educação na Universidade Stanford. "Não quero negar que se devam ler histórias e literatura. Mas estamos exagerando." Em vez disso, as crianças precisam aprender a ler para informar-se, disse Kamil, algo que podem praticar lendo na internet, por exemplo.

Este texto foi publicado no "New York Times". Tradução de Luiz Roberto Mendes Gonçalves.


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