São Paulo, domingo, 22 de julho de 2007

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A alma do negócio

Anúncios comerciais ajudam a contar a história dos valores dominantes em cada sociedade

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

Todos os dias, irmanados no mesmo pacote pela conveniência da distribuição, recebo os dois maiores jornais de São Paulo. Há pouco tempo, tive uma surpresa.
A Folha chegou na forma habitual, mas surgiu a seu lado "A Província de São Paulo".
Por alguns segundos, acreditei sonhar, até perceber que, por artes imaginosas de uma agência de publicidade, o "Estado de S. Paulo" daquele dia tinha sido encapado com a primeira e a última páginas do número um da "Província de São Paulo", com data de 4 de janeiro de 1875.
A primeira página traz um artigo em que se expõem os princípios e as razões sociopolíticas que justificavam o lançamento do jornal. A última é quase toda ocupada por anúncios.
Do ponto de vista histórico, ela é a que tem maior interesse, constatação que, por certo, decepcionaria os redatores do jornal -Américo de Campos e Francisco Rangel Pestana-, se eles pudessem regressar a este mundo.

Minúcias
De saída, salta aos olhos a diferença de forma e conteúdo das mensagens publicitárias, em comparação com as de nossos dias. Tudo é explicitado por descrições minuciosas, destinadas a garantir ao leitor a qualidade dos bens e serviços anunciados. Nada é alusivo, subliminar, sugerido ou -nem pensar- erotizado.
Um bom exemplo é o de uma "empresa locomotora" que fazia o serviço de "trolleys" entre Rio Claro e Campinas, em que são destacadas a qualidade de seus carros, a perícia dos cocheiros, a segurança proporcionada por animais bem-tratados e ferrados com material de primeira qualidade. A página constitui um instantâneo impressionista, muito rico em sugestões, da história de São Paulo.
Fico com exemplos relativos ao ensino e às relações sociais. Começando pelo ensino, um anúncio em grandes proporções do "Ateneu Rio-Clarense" nos leva a uma época em que o ensino público engatinhava e os colégios particulares costumavam ter internatos.
O ateneu recebia alunos internos, meio-pensionistas e externos, a partir do curso primário, ensinando também todos os preparatórios exigidos pelas academias de direito, além de dança e música, em aulas pagas à parte.
Como evidência de uma certa significação da colônia alemã em Rio Claro, formada principalmente de comerciantes, "ensinava-se também o alemão, desde que houvesse número suficiente para abrir-se uma classe".

Ajoelhar no milho
Da especificação do material que deviam trazer os alunos internos, decorre que o diretor não estava disposto a fazer muitos gastos: "Cama, colchão, travesseiro, um jarro, uma bacia para rosto, outra para banhos, um urinol, a roupa necessária não só para uso do colégio como também um parelho mais fino para os dias em que tenham de ir assistir a qualquer festividade religiosa ou sair a passeio".
A questão dos castigos é tratada de forma concisa: "Castigos físicos só serão aplicados em caso gravíssimo, que possa trazer a desmoralização para o estabelecimento". Que casos seriam considerados gravíssimos? Que castigos físicos seriam aplicados? A palmatória por certo, os joelhos sobre o milho também, as pancadas de vara, quem sabe?
Quanto às relações sociais, o tema principal é o da escravidão, aflorado num gênero de anúncio que, embora bastante explorado pelos historiadores, sempre diz muito da nossa formação social.
Procura-se um moleque para alugar, aparentemente para prestar serviços à tipografia da "Província de São Paulo", ou buscam-se escravos fugidos havia meses.

Tolerância e repulsa
O último caso refere-se a dois cativos de uma fazenda em Paraibuna, no interior do Estado, pertencentes a um certo Joaquim Antonio Garcia. Eram eles: "Jerônimo, preto, crioulo, estatura mais que regular, reforçado de corpo, rosto comprido, desdentado na frente, bem barbado, tendo num dos pés a cicatriz de um golpe de machado, fala grossa e pausada; lavra e serra madeira e é dado à embriaguez".
Depois "João, mulato cabra, alto, delgado, olhos grandes, barbado no queixo, fala fina e pausada, pés compridos e voltados para fora, muito diligente e ativo". O fazendeiro promete o pagamento de uma remuneração "a quem apreendê-los e puser seguros em qualquer cadeia da Província".
Moleques de aluguel, escravos fugidos são horrores do passado, com a ressalva de que a escravidão ilegal existe até hoje, em algumas áreas do país.
Mas, sem ignorar que o país passou por transformações positivas ao longo dos anos, é impossível esquecer que novos horrores floresceram: meninos que ensaiam toscos malabarismos nos sinais de trânsito, mortos de todas as idades e classes sociais, atingidos por balas assassinas.
No terreno da sensibilidade, quantos leitores do passado, lendo anúncios do gênero apontado, sentiram repulsa pela persistência da escravidão? Provavelmente, uma minoria. Não nos apressemos, porém, em culpar a gente daquela época.
Antes, perguntemos quantos leitores dos jornais de hoje, passando os olhos por páginas e páginas de anúncios de venda de imensos apartamentos exclusivos, se horrorizam com o contraste entre essas habitações de alto luxo e a a miséria dos sem-teto?

BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras). Ele escreve mensalmente na seção "Autores", do Mais!.


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