São Paulo, domingo, 22 de agosto de 2004

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

+ livros

UM EMPRESÁRIO DO SUBMUNDO

Georges Gobet - 1º.jun.2003/France Presse
Eleitora vota durante pleito presidencial, em Lomé, capital do Togo


Em "Francisco Felix de Souza", o africanista Alberto da Costa e Silva traça a biografia do mercador baiano que desafiou a marinha britânica e a ordem internacional para dar continuidade ao tráfico negreiro no século 19

Luiz Felipe de Alencastro
especial para a Folha

A biografia do baiano Francisco Felix de Souza (1760?-1849), o Chachá, escrita por Alberto da Costa e Silva, suscita de imediato uma pergunta: por que só agora apareceu este livro? Chachá teve um papel de destaque na África, no economia brasileira e no comércio internacional. Sua vida atraiu a atenção de historiadores, romancistas e cineastas estrangeiros (1). O grande antropólogo e historiador Karl Polanyi (1886-1964) considerava Chachá uma personalidade de primeiro plano.
Todo esse interesse vem do fato de que Chachá, conselheiro de Gezo, o rei do Daomé, e homem de influência na Costa dos Escravos (cobrindo parte dos atuais territórios do Togo, Benin e Nigéria), desafiou a marinha de guerra britânica e a ordem internacional de sua época para dar continuidade ao tráfico negreiro.
A Bahia -onde ele nasceu, se criou e mantinha filhos, sócios, bens e capitais- era a sua base no lado americano. Ajudá, no atual Benin (que se chamava Daomé), era o centro de suas atividades na África.
Agindo na zona de articulação do comércio internacional com a economia tradicional africana, Chachá tinha perfeita noção do lado brutal e dinâmico do capitalismo contemporâneo. Os nomes de dois de seus navios negreiros não nos deixam mentir: um deles se chamava O Empreendedor, outro Mete Mão. Metendo a mão nos povos africanos, Chachá se tornou um empreendedor capitalista de porte. Um grande empresário que atuava no lado oculto da economia brasileira. Alguém -como já se escreveu- que devia ser comparado ao barão de Mauá, o grande empresário do lado respeitável da economia brasileira.
Apesar disso, excetuando-se certos capítulos de livros e artigos de revista, geralmente traduzidos, nenhuma biografia de Chachá havia ainda sido publicada no Brasil (2). Parte do desinteresse se deve à desinformação sobre os capítulos da história brasileira que se desenrolaram no continente africano. Situação propriamente absurda, dado que a história da África é um dos raros campos internacionais, cobertos por uma documentação redigida em português, em que os historiadores brasileiros podem dar uma contribuição original à sua disciplina. Alberto da Costa e Silva, que tanto tem feito para promover a história da África no nosso país, narra a saga desse baiano que atravessou o oceano para tentar a sorte no golfo de Guiné. Desde meados do século 17 houve colonos da América portuguesa que souberam se dar bem na África -em Luanda, Benguela ou num porto qualquer da Costa da Mina-, em vez de ir para outra região brasileira ou para Portugal. Como lembra Costa e Silva, no começo do século 18, um ex-escravo vindo do Brasil, João de Oliveira, fundou dois novos portos na região -Porto Novo e Lagos. O primeiro é hoje a capital do Togo, e, o segundo, ex-capital da Nigéria, se transformou na maior cidade africana. Chachá chegou à África nos anos 1780. Foi para a fortaleza portuguesa de São João Batista de Ajudá. Construída em 1721 com fundos provenientes da Bahia, a fortaleza ainda em 1824 continuava a ser mantida com verbas do orçamento provincial baiano. A soberania portuguesa só foi restabelecida em 1844, quando uma guarnição de soldados portugueses desembarcados da ilha de São Tomé assumiu o controle da fortaleza. Até então o enclave estava sob a soberania formal ou informal brasileira. Muitas vezes a bandeira do império do Brasil tremulou sobre o forte de Ajudá.

"Já, já!"
Conforme as conveniências, o estatuto de seus interlocutores e a conjuntura da política internacional, Chachá assumia a nacionalidade brasileira ou portuguesa. Se não fosse mulato e quase branco, pelos critérios locais e baianos, diria que era dali mesmo, da Costa dos Escravos, como o faziam, quando lhes convinha, os negros brasileiros morando na região. Como observa Costa e Silva, uma versão sobre a origem do apelido "Chachá", que depois virou título da função de conselheiro real exercida por Francisco Félix de Souza, é a de que o nome seria tirado de uma expressão habitual dele: "Já, já!". É possível, pois há algo similar na vizinhança. Nos anos 1830, uma comunidade de afro-brasileiros estabelecidos em Accra (atual capital de Gana) era chamada de "tabong", corruptela da expressão que eles usavam o tempo todo: "Tá bom!". Chachá e seus sucessores africanos sumiram do capitalismo e da historiografia brasileira. Mas alguns de seus sócios baianos tiveram mais sorte. O comendador Joaquim Pereira Marinho -que lavou o dinheiro do tráfico negreiro no Banco da Bahia (incorporado pelo Bradesco em 1973), do qual é um dos fundadores, e na Santa Casa de Misericórdia- tem até hoje, plantada na frente do hospital Santa Isabel, a estátua que encomendou a um escultor italiano para posar de benemérito baiano e pai da pátria.

"Global player"
Costa e Silva conhece bem diversos países africanos, onde passou anos como diplomata e como pesquisador apaixonado pelo "continente negro". Seu livro sobre Chachá é uma referência e um caminho para novos estudos. Seria interessante saber mais sobre o lado brasileiro dos negócios de Chachá. Muita informação deve estar enfiada nos arquivos da Bahia e de Portugal.
Mas seria fundamental seguir de perto o "global player" que Chachá desafiava, a Inglaterra. Os ingleses instauraram no Parlamento, tanto na Câmara dos Comuns quando na Câmara dos Lordes, várias CPIs sobre o tráfico negreiro. Dezenas de implicados no negócio, grandes negociantes, diplomatas, oficiais navais tinham opinião formada sobre o tráfico negreiro brasileiro e Chachá. Seus depoimentos foram registrados nas atas parlamentares reeditadas, em 1968, pela Irish University Press e logo estarão on-line. Quando esse material for analisado ficará mais evidente a herança de Chachá e da via brasileira para o atraso que o país trilhou no século 19.


Notas
1. Werner Herzog fez o filme "Cobra Verde" (1988, baseado no romance de Bruce Chatwin sobre Chachá, traduzido no Brasil como "O Vice-Rei de Uidá", Companhia das Letras, 1989);
2. Pierre Verger, em seu "Fluxo e Refluxo do Tráfico de Escravos entre o Golfo do Benin e a Bahia de Todos os Santos" (ed. Corrupio, SP, 1987), abordou a história de Chachá, que foi recentemente atualizada num artigo do grande especialista do Daomé, Robin Law, "A Carreira de Francisco Félix de Souza na África Ocidental 1800-1849", revista "Topoi", nº 2, 2001, Universidade Federal do Rio de Janeiro. Costa e Silva, que cita escrupulosamente suas fontes, dedica em parte seu livro a esses dois autores.


Luiz Felipe de Alencastro, 58, é professor na Universidade de Paris/Sorbonne e bolsista da John Carter Brown Library, da Universidade Brown (EUA).

Francisco Felix de Souza
208 págs., R$ 29,00 de Alberto da Costa e Silva. Ed. Nova Fronteira (r. Bambina, 25, CEP 22251-050, Rio de Janeiro, RJ, tel. 0/xx/ 21/ 2131-1111).



Texto Anterior: + autores: A futura sociedade dos patetas
Próximo Texto: Lançamentos
Índice


Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Folhapress.