São Paulo, Domingo, 22 de Agosto de 1999
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O autor alemão Johann Wolfgang Goethe produziu ao menos uma obra-prima em cada um dos gêneros literários de que se ocupou
O escritor universal

Reprodução
Retrato de Goethe feito por Georg Melchior Kraust por volta de 1775


NELSON ASCHER
da Equipe de Articulistas

Goethe. Mesmo quem não consiga localizar a Alemanha num mapa da Europa reconhece esse nome. Essas duas sílabas representam mais do que o nome de uma pessoa: são concomitantemente uma marca registrada e um verbete de enciclopédia. A marca é, além disso, um certificado de qualidade que rotula tanto um produto maior, a literatura alemã, quanto toda uma categoria, qual seja, a alta cultura, séria e filosoficamente densa. O verbete enciclopédico, por sua vez, é necessariamente extenso, já que deve dar conta da vida exemplar de alguém que, do sucesso precoce da juventude à glória olímpica da velhice, não apenas fez de tudo, escreveu em todos os gêneros, teve renome, influência, poder e viveu em tempos interessantes, como, por meio de diários, cartas, textos autobiográficos e cultivando ao seu redor uma pequena corte de discípulos, secretários etc., tomou também as providências necessárias para que nada disso fosse esquecido.
Quando o dissílabo "Goethe" aparece numa determinada frase, ele normalmente prolonga e não raro culmina uma sequência que inclui Homero, Virgílio, Dante e Shakespeare, ou então aparece indissoluvelmente vinculado a outro dissílabo: "Fausto". A história do mago-cientista que faz um pacto com o demônio, embora tenha surgido séculos antes de o alemão interessar-se por ela e tenha sido objeto de inúmeras versões depois, pertence-lhe como a "Odisséia" a Homero ou "Romeu e Julieta" a Shakespeare. Mais do que uma história, ela é vista como um paradigma e um arquétipo, seja de sua época (o princípio da modernidade), seja de sua nação e povo. Que isso seja verdade ou não é irrelevante. Não é preciso ter lido o "Fausto" para saber do que se trata. Em poucas palavras, Goethe é um clássico, e isso quer dizer -e é dito à exaustão- que sua obra representa um dos ápices do espírito humano, que ela sintetiza brilhantemente seu tempo, que ela é um tesouro de seu país e um patrimônio universal etc., etc., etc.
Ser um clássico significa também que, acima dos julgamentos de valor, ele existe para ser admirado, não discutido, pois qualquer discussão crítica de uma obra se inicia com a seguinte pergunta, "isso é bom ou ruim?", mas quando o objeto é um clássico a única pergunta possível é "por que (mais) isso é tão bom?". Quem diz "eu não gosto do "Fausto'" não está emitindo uma opinião sobre um livro, mas passando um juízo negativo sobre si mesmo. Não gostar de um clássico é algo que não existe, pois os clássicos não se avaliam, eles é que são as réguas com as quais se medem as outras obras. Os críticos revisionistas podem espernear quanto quiserem, mas ainda assim é virtualmente impossível destronar um escritor que tenha ocupado seu lugar no cânone. Quem, por exemplo, quiser seriamente pôr um Goethe em questão, terá não só que ler tudo o que ele escreveu, uma tarefa para muitos anos, mas tudo o que se escreveu sobre ele, e isso é trabalho para várias vidas. Se sobrar algum tempo, caberá ao crítico em questão ler os textos que influenciaram o autor e aqueles que existem devido à sua influência.
Ler uma obra, no entanto, é o oposto de admirá-la, e tantas coisas na trajetória do alemão contribuíram para sua monumentalização, que ler o poeta, prosador, dramaturgo etc. que ele foi de fato exige menos a proverbial suspensão da descrença ("suspension of disbelief") do que uma suspensão da credulidade. Antes, porém, é necessário tomar conhecimento de como foi que ele se tornou um monumento.
Quando Goethe nasceu, em 1749, em Frankfurt, não existia nem uma literatura alemã, nem uma Alemanha. O país que hoje se mostra unificado e talvez já menos ameaçador nos mapas era, então, um mosaico de reinos, principados, ducados e cidades-livres. Havia uma língua alemã que, apesar de falada numa multiplicidade de dialetos, fora fixada, em termos literários, por Martinho Lutero na sua tradução da Bíblia. Desde a Idade Média, é claro, escrevia-se em alemão, nem faltavam criações importantes na língua, mas um conjunto de poemas e romances, de dramas e epopéias que de alguma maneira se inter-relacionassem e estivessem emoldurados por debates variados, isso existia na França e na Espanha, na Inglaterra e na Itália, mas não em terras alemãs. A poesia que se fazia era convencional, obsoleta e geralmente imitativa de modelos estrangeiros, as obras de ficção não seduziam o público, os dramas eram irrelevantes. Não é à toa, portanto, que as classes que tinham acesso à cultura, a aristocracia e a burguesia urbana, acompanhavam com muito mais interesse a poesia e o teatro franceses, os romances ingleses ou a ópera italiana.
A família de Goethe pertencia à sólida burguesia de sua cidade-livre. Seu pai, formado em direito, era conselheiro imperial (nessa quase abstrata unidade chamada Sacro Império Romano Germânico, que, segundo as más línguas contemporâneas e posteriores, fazia jus somente ao último adjetivo, se tanto) e seus ancestrais haviam galgado a escala social um degrau por geração. Johann Wolfgang, único filho homem (tinha uma irmã), estudou direito em Leipzig e Estrasburgo e praticou, até 1775, a profissão em Frankfurt. Durante sua estada em Estrasburgo, ele fez amizade com outros jovens autores e juntos, sob a influência do pensador Johann Gottfried von Herder (1744-1803), desencadearam um movimento de renovação das letras e da cultura alemãs que ficaria conhecido, devido ao título de uma peça de um deles, Friedrich Maximilian von Klinger (1752-1831), como "Sturm und Drang" (Tempestade e Ímpeto, o nome oficial do pré-romantismo germânico).
Herder, uma personalidade original e inovadora, tomou a língua como um dos centros de suas preocupações e foi um dos primeiros a formular um nexo férreo entre esta e o conceito de nação, vendo em cada idioma e nas suas criações, mesmo, ou sobretudo, as de origem popular, a cristalização mais pura do espírito nacional irredutível que diferencia um povo do outro. Entre seus legados positivos está o rompimento das barreiras entre as culturas alta e popular, bem como o interesse etnográfico pelo patrimônio oral dos mais distintos povos, suas lendas, mitos, canções. Foi ele o compilador pioneiro de uma antologia transnacional de poesia popular e folclórica. Sua mais negativa herança, todavia, é o nacionalismo étnico, que se tornou regra a leste da França e não apenas criou uma base teórica para a xenofobia e o racismo moderno, como contribuiu para a criação de problemas que, como os dos Bálcãs hoje em dia, ainda não foram devidamente equacionados.
Sob sua influência Goethe passou cedo a pensar em termos de uma autêntica literatura alemã, que ainda estava por ser criada, e encontrou na poesia popular um meio de fugir às convenções literárias, bem como a inspiração para seus primeiros poemas. Em 1771 ele criou (e publicou dois anos mais tarde) a primeira grande tragédia do novo teatro alemão, "Götz von Berlichingen", uma peça de intriga política, ambientada na Alemanha das revoltas camponesas do início do século 16 e centrada na figura do cavaleiro homônimo.
O suicídio de um jovem advogado que o poeta conhecera, vítima de fracasso pessoal e de um amor infeliz, combinado a uma complicada paixão sua, serviu-lhe como ponto de partida para um romance epistolar, "Os Sofrimentos do Jovem Werther". A publicação, em 1774, da história do moço sensível que a incompreensão e o desamor levam ao suicídio causou furor e fez do autor um homem famoso. Não era apenas o teor da narrativa que atraíra os leitores, mas também seu estilo, pois raramente a forma quase obsoleta do romance epistolar havia sido tão bem manejada. As missivas da personagem pareciam, aos contemporâneos, não o arremedo de um estratagema narrativo, mas cartas de verdade, e cada vez mais desesperadas. Segundo a lenda, "Werther" transformou o suicídio numa moda entre os jovens apaixonados (ou não). Anos mais tarde, em Nápoles, um aristocrata local que não ouvira seu nome lhe perguntaria, ao saber de onde vinha, se ele acaso tinha notícias do autor do famoso romance.
Sua celebridade precoce rendeu-lhe, da parte do duque de Weimar, Karl August, um convite para visitar seu ducado em 1775. A visita se prolongaria, pois o poeta fixaria ali residência e viveria em Weimar, com breves interrupções, até sua morte, em 1832. Nesse pequeno ducado, Goethe ganharia a confiança do monarca, tornando-se seu conselheiro e exercendo inúmeras funções administrativas. Nessa condição, ele familiarizou-se com a corte e com a política, pôde ver os lados mais opulentos e miseráveis da sociedade e conviver com personalidades célebres e poderosas, além de acompanhar de um ponto de vista privilegiado a história européia numa época crucial de transformação.


"A partir de 1800, Goethe converteu-se numa celebridade européia estabelecida, rumo à qual os admiradores peregrinavam"


O preço a pagar, no entanto, foi, na sua primeira década weimariana, a falta de tempo para escrever. Alguns de seus poemas mais conhecidos datam desse período, mas a única obra de mais fôlego a que conseguiu se dedicar foi a versão em prosa do que se tornaria a tragédia em versos "Ifigênia em Táurida". Sobrecarregado de responsabilidades, sufocado pelo ambiente estreito de Weimar e inconformado com a quase interrupção de sua carreira criativa, o poeta, estimulado igualmente por recordações de uma viagem juvenil de seu pai, partiu, praticamente em sigilo, para a Itália em 1786. Sua viagem de dois anos o levaria a Verona, Veneza, Roma, Nápoles e Sicília. Essa passagem pela península foi decisiva.
Aos 26 anos, Goethe era famoso. Dez anos depois, no entanto, ele nada havia acrescentado de importante seja à sua produção (se bem que tivesse principiado obras que concluiria depois, como, por exemplo, a tragédia "Egmont", terminada em 1787), seja ao seu renome. Quando partira rumo ao sul, ele ainda entretinha um desejo de se dedicar preferencialmente às artes plásticas. O impacto da arte italiana obrigou-o a reconhecer quanto de amadorismo havia nessa sua aspiração e o dirigiu definitivamente para a literatura. E o encontro com a civilização mediterrânea relativizou seu ponto de vista alemão, abrindo-lhe perspectivas mais amplas.
Goethe voltou em 1788 a Weimar, renegociou suas relações de trabalho com o duque (um monarca esclarecido que seria no futuro o primeiro dos alemães a conceder uma constituição aos seus domínios) e recomeçou sua carreira, ou melhor, começou uma nova, não mais de jovem talentoso, fundador do romantismo e autor de algumas poucas obras de impacto, mas de escritor prolífico, pensador respeitado, incentivador da educação e da cultura (a Universidade de Jena fica nas terras de seu patrono). Avesso que era ao matrimônio, ele passou, em 1788, para escândalo de seus concidadãos, a viver "em pecado" com Christiane Vulpius, uma moça de baixa extração social (eles se casariam em 1806).
Na segunda, e mais longa, metade da vida, suas lembranças da Itália tornaram-se logo a base para dois de seus grandes ciclos de poemas, "Epigramas Venezianos" (1790) e "Elegias Romanas" (1795), estas constituindo uma das melhores coleções de poesia sobre o amor sentimental e carnal, feliz e consumado de toda a literatura. Entre 1789, ano da Revolução Francesa, e o fim do século 18, ele publicou uma tragédia em versos, "Torquato Tasso", o primeiro fragmento do "Fausto" (idéia na qual trabalhava desde os tempos do "Werther"), "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister" (considerado o fundador e modelo do gênero "romance de formação"), o poema narrativo "Herman e Dorothea" e compôs muitas de suas melhores baladas. Na virada do novo século ele daria a público sua obra mais famosa, a primeira parte do "Fausto" (1801, encenada publicamente pela primeira vez em 1829).
Esse período foi marcado principalmente por sua amizade com o poeta e dramaturgo Friedrich von Schiller (1759-1805). As discussões entre ambos e sua correspondência têm servido desde então para nortear a cultura do país. No caso de Goethe, foi seu amigo que o ajudou a dimensionar suas ambições e energias e a compreender o alcance do que estava fazendo. O que o poeta produziu em seguida, num ritmo vertiginoso e incessante, só pode ser sumariamente enumerado: "As Afinidades Eletivas" (romance, 1809), "Teoria das Cores" (tratado científico, 1810), "Poesia e Verdade" (autobiografia, 1814), "Viagem à Itália" (1817), "Divã Ocidental-Oriental" (poemas, 1819), "Os Anos de Peregrinação de Wilhelm Meister" (1821), "Fausto - Segunda Parte" (1832).
Quando Goethe não inaugurou, pelo menos em sua língua, um gênero, ele o consolidou, dando-lhe uma obra-prima. Suas atividades administrativas como incentivador e empresário cultural foram importantíssimas e não cabe descartar nem mesmo seu trabalho científico. Seu interesse pelas ciências parece ter brotado diretamente de suas responsabilidades administrativas e, se bem que seja exagerado considerá-lo um cientista importante, suas pesquisas em botânica e outras áreas resultaram em descobertas autênticas. Mais relevante ainda é o fato de que ele lançou mão dos conhecimentos obtidos nessa área para ampliar e tornar mais complexa a visão de mundo que sua obra literária apresenta, assim como ele usou a sua intimidade com a vida na corte para descrever a aristocracia em "As Afinidades Eletivas" e sua experiência política para compor as cenas da segunda parte do "Fausto".
A partir da virada do século, Goethe convertera-se numa celebridade européia estabelecida, rumo à qual os admiradores peregrinavam. Suas obras se traduziam para as principais línguas do continente e autores de toda parte vinham visitá-lo. Os românticos ingleses, como Coleridge, Shelley, Byron, o liam com atenção, e a primeira publicação, em 1799, de Walter Scott havia justamente sido uma tradução para o inglês do "Goetz von Berlichingen". Não era diferente na França ou alhures. Nem todos os jovens que o visitaram obtiveram, porém, a atenção que mereciam, e a posteridade recrimina, com toda justiça, a incapacidade que Goethe revelou não estimulando Friedrich Hölderlin (1770-1843) ou Heinrich von Kleist (1777-1811) nem identificando seus méritos.
Apesar do reconhecimento generalizado, ele tampouco era ainda, quando de sua morte e por mais quase meio século, o monumento que se solidificou posteriormente. Até os anos 70 do século passado, o renome de Schiller, um escritor menos complexo e de idéias mais claras e convictamente progressistas, superou o do autor do "Fausto".
A unificação, sob a tutela prussiana, da Alemanha em 1871 tornou necessária a canonização de um bardo nacional que emprestasse sua glória ao novo império, propagando, por sua vez, a deste. Data daí a entronização de Goethe, e esta sobreviveu aos altos e baixos da história alemã seguinte, algo que se reflete num dos piores lugares-comuns deste século: "Como é que o país que gerou Goethe pôde gerar o nazismo?". Mas Goethe não foi gerado pela Alemanha: ele nasceu numa pequena cidade-livre, viveu num minúsculo ducado e, com a ajuda da cultura precedente e contemporânea, foi gerado pelo próprio talento. A Alemanha atual não é mais, felizmente, um país cuja aspiração à grandeza, aspiração traduzível em fronteiras mais espaçosas, precise de um poeta que, mesmo a contragosto, a legitime. Isso é bom para a Alemanha e também para Goethe, pois, quanto mais baixos forem os pedestais em que estiver, tanto maior e melhor será seu público leitor.


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