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BRASIL 500 D.C.
Em dezembro, Macau passará a ser território administrado pela China
O fim do Império Português
HERMANO VIANNA
especial para a Folha
Entre todas as grandes comemorações previstas para os próximos meses, da chegada do ano
2000 aos 500 anos do Brasil, uma
outra festa, que também poderia
ter um significado profundo para
o nosso imaginário, está sendo esquecida. Macau, em 20 de dezembro de 1999, vai passar a ser um
território administrado pelos chineses. É ao mesmo tempo o alegre
e melancólico fim de um Império
Português do qual já fizemos parte e cujos sonhos e pesadelos marcaram decisivamente, queiramos
ou não, nossa maneira de estar no
mundo.
Deveríamos
aproveitar essa
ocasião para organizar grandes excursões educativas, de preferência
gratuitas (!), que
levassem o maior
número possível
de brasileiros, pobres ou ricos, de
todos os tons de
pele, para conhecer uma Macau
ainda controlada
por portugueses. É
a última oportunidade para ter algumas experiências
que iluminariam
aspectos essenciais
da nossa identidade luso-qualquer-coisa, a começar
pela estranhíssima
sensação de se sentir como que em
casa num lugar tão
radicalmente diferente.
Pois são as diferenças que logo
chamam a atenção
do brasileiro que
pisa Macau pela
primeira vez. Não
as diferenças mais
óbvias e gritantes,
advindas do fato
de estarmos em
pleno Oriente, mas aquelas que
mostram como séculos de colonialismo português produziram
realidades absolutamente contrastantes, na América e na Ásia.
O Brasil, como todo estudante
do primeiro grau já ouviu falar,
tem uma área de 8.547.403,5 km 2.
Macau possui apenas 18,7 km 2. Isto é, caberiam cerca de 450 mil
Macaus no Brasil. Tamanho, nesse caso, não é documento. A área
reduzidíssima da colônia asiática
(que nunca chegou a ser "exatamente" uma colônia, mas esse é
outro problema) não se traduziu
em maior controle cultural, por
exemplo. Apesar da vastidão do
território brasileiro, a colonização
portuguesa foi extremamente eficiente na imposição de uma única
língua mesmo em seus mais longínquos recantos e para seus mais
resistentes grupos étnicos de imigrantes. Em Macau, cuja totalidade de sua área pode ser percorrida
a pé em poucas horas, apenas 3%
a 4% da população fala português.
Além disso, se acreditarmos no
mito que nos ensina que o melhor
da aventura colonial portuguesa
foi a mestiçagem (tanto de "raças" quanto de culturas), veremos
que nesse assunto a disparidade
entre o Brasil e Macau é certamente perturbadora. O mundo
português e o mundo chinês parecem ter vivido todos esses séculos em coabitação, mais ou menos
pacífica, mas não em verdadeiro
intercâmbio que pudesse gerar
uma mistura luso-chino-tropicalista realmente disseminada.
Até a palavra "macaense" não
tem a mesma abrangência que o
nosso "brasileiro". No seu uso cotidiano, macaense não designa todas as pessoas que nascem em
Macau, mas sim os mestiços, filhos geralmente de portugueses
com asiáticas. Esses mestiços não
chegam a somar 15 mil pessoas,
uma parcela muito pequena diante de uma população total de cerca de meio milhão de habitantes.
Parece então que Macau é um
fracasso dos ideais culturais simultaneamente catequizadores e
pró-mestiçagem do Império lusitano. Parece que Portugal parou
na porta da China, não entendeu
nada e agora vai embora sem deixar vestígios. Porém quem visita
Macau entende rapidamente que
não é bem esse o caso. Tudo ali se
apresenta como uma prova de
que o colonialismo português não
teve uma face monolítica e soube
adaptar-se espertamente às realidades específicas que foi encontrando mundo afora.
A familiaridade que o brasileiro
sente em Macau não vem apenas
de seus passeios sobre pedras portuguesas e da utilização de sua língua "nativa" em nomes de lojas e
placas de ruas. Os macaenses,
apesar de minoritários, souberam, ao longo desses séculos todos, exercer uma sutil tarefa de
mediação transcultural que não
tem paralelo em Hong Kong (situada a uma hora de barco de Macau), território que até recentemente tinha administração britânica.
Os macaenses, com sua habilidade mediadora, se tornaram peças-chaves da "transição" para a
administração dos chineses e podem continuar a exercer uma
grande influência
sempre sutil, quase
sempre invisível
-na vida econômica e política da
nova "região administrativa especial" controlada
por Pequim. Para
isso já estão aparentemente bem
preparados. Há
dois anos, conheci
um macaense que
possuía três celulares, um de Macau,
um de Hong Kong
e outro da China.
Todos eles não paravam de tocar.
Se esse novo desafio mediador tiver bons resultados, a cultura macaense permanecerá viva e talvez
florescente em
Macau. Seria uma
pena se ela desaparecesse. A culinária macaense (que
pode ser apreciada
no restaurante
"Porto Interior"),
com seus pratos
híbridos luso-chino-indiano-malaio-africano-e-mesmo-brasileiros, é fabulosa; a
língua crioula local -mistura secular de português, chinês e malaio, conhecida como papiá- é
encantadora; e o modo de vida inventado pelos macaenses (descritos na literatura de Henrique de
Senna Fernandes) é um dos capítulos mais interessantes, apesar
de pouco conhecido, do encontro
entre o Ocidente e o Oriente.
Pelo menos temos um consolo:
mesmo que os macaenses desapareçam inteiramente em Macau,
sua peculiar cultura permanecerá
sendo cultivada na diáspora. Há
décadas vem sendo criada uma
complexa rede de Casas de Macau, que reúne imigrantes em cidades portuguesas, australianas,
norte-americanas e inclusive brasileiras. Há uma bem ativa Casa
de Macau em São Paulo.
Mas ninguém sabe ao certo o
que vai acontecer com Macau depois de 20 de dezembro. A Macau
portuguesa, que nunca chegou a
ser exatamente portuguesa, poderá se tornar apenas uma lembrança de macaenses e de viajantes,
como eu, que um dia se sentiram
lusitanamente em casa andando
pelas ruas de seus bairros mais tipicamente orientais. Nunca vou
me esquecer da noite em que entrei no clube "A Tribo", situado
num conjunto habitacional chinês, especializado em música pop
filipina, propriedade de um empresário do Sri Lanka e frequentado por macaenses e africanos de
língua portuguesa que adoravam
"dançar quizomba".
Também vai ficar para sempre
em minha memória um passeio
pelo Jardim de Lou Lim Ieoc, o
mais lindo e o mais chinês da cidade, talvez do mundo, onde imitei o poeta português Eugênio de
Andrade: "Deste Jardim o que levo comigo/ é um ramo de bambu
para servir/ de espelho para o resto dos meus dias". Espelho que
teima em refletir minha imagem
como que imersa num sonho psicodélico de Gilberto Freyre: aquele que sugeria ser o Brasil uma
"China Tropical". Sonho que, como tudo o que escreveu o autor de
"Casa-Grande e Senzala", nos deixa em posição vantajosa: bem se
sabe que a China é o futuro do
mundo (a língua mais falada no
planeta, por 885 milhões de pessoas, é o mandarim; o inglês vem
em segundo lugar, lá embaixo:
322 milhões de falantes). Macau,
com todos seus ramos de bambu,
será sempre não apenas um espelho revelador de nossos mais íntimos e confusos anseios identitários, mas também nossa melhor
porta de entrada para estes tempos chineses que hão de vir.
Hermano Vianna é antropólogo, autor de
"O Mundo Funk Carioca" e "O Mistério do
Samba" (Jorge Zahar). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
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