|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
LIVROS
Romance de Italo Calvino põe o leitor no centro da cena
A leitura sem fim
RINALDO GAMA
especial para a Folha
Vai sem dizer que a literatura só
se realiza plenamente quando encontra o leitor. No entanto, ao
contrário do que seria razoável
imaginar, raras vezes ele é chamado à frente da cena ficcional. Publicado na Itália em 1979, traduzido no Brasil em 1982 e agora relançado por aqui em nova tradução, "Se um Viajante numa Noite
de Inverno", romance de Italo
Calvino (1923-1985), é talvez o
mais bem-sucedido esforço de valorização do leitor em uma obra
literária.
Isso por uma razão simples.
Nesse "hiper-romance", o leitor é
simplesmente o protagonista. Tudo se resume ao significado dessa
peça fundamental da engrenagem narrativa, espécie de "única
realidade" que restaria ao romance depois de concluído o ato de
escrevê-lo. Assim, não seria despropositado classificar o livro de
Calvino, escritor de língua italiana nascido em Cuba, como uma
obra realista. Um realismo, claro,
baseado no "fingimento" de que
falou Fernando Pessoa.
"Você vai começar a ler o novo
romance de Italo Calvino, "Se um
Viajante numa Noite de Inverno'", anuncia o autor logo na primeira linha. A frase, como ocorre
com toda grande obra, contém o
livro inteiro. O que se lerá dali por
diante será isso: inícios de romances. Borgianamente, Calvino
-que participou do "Ouvroir de
Littérature Potentielle" (Oulipo),
grupo de experimentações lítero-matemáticas fundado por Raymond Queneau e do qual fazia
parte Georges Perec- afirmava
que "todo livro nasce na presença
de outros livros". Por um erro da
editora, o exemplar de "Se um
Viajante numa Noite de Inverno"
do personagem Leitor tem um
defeito a partir da página 32, o
que o leva a se dirigir à livraria para tentar trocá-lo. Lá ele recebe
um novo volume e descobre que
a história nada tem a ver com
aquela cuja leitura havia iniciado. No final,
o Leitor, e o leitor de verdade
também, terá
começado dez
romances
-com referências a Plotino, de um colecionador de
caleidoscópios-que, por
motivos alheios a sua vontade,
não conseguirá terminar de ler.
Num século marcado pela metalinguagem nas artes, o metalinguístico "Se um Viajante numa
Noite de Inverno" consegue o
prodígio de se destacar por pelo
menos dois motivos. Em primeiro lugar, porque confunde o leitor
real com o personagem Leitor,
sem que, por exemplo, o volume
que está nas mãos do primeiro
apresente o tal defeito na página
32 (embora ele esteja, efetivamente, nela). O outro motivo: apesar
da afiada ironia e do irresistível
humor com que Calvino desfila tipos de romances, possibilidades
de crítica e leitura, para não falar
do deboche que reserva a certas
atitudes dos círculos acadêmicos
e editorais, é evidente que "Se um
Viajante numa Noite de Inverno"
revela o seu
gosto pela reflexão literária.
No fundo, ele
funciona como
um ensaio prático.
Nesse sentido, o romance
seria, de certa
forma, a versão
ficcional do
que se convencionou chamar
de estética da recepção. Tal corrente -cuja certidão de nascimento é uma conferência de
Hans Robert Jauss proferida na
Universidade de Constança, Alemanha, no dia 13 de abril de
1967- empenha-se em deslocar
o centro da crítica literária do autor ou do contexto social para o
leitor. Como faz o romance de
Calvino.
Do mesmo modo que não foram Jauss nem Wolfgang Iser e
sua teoria do efeito estético os
teóricos que pela primeira vez
pensaram no leitor -José Paulo
Paes, num texto publicado nesta
Folha em 1989, chamava a atenção para o trabalho precursor de
Kenneth Burke, nos anos 30-, é
óbvio que outros romancistas
além de Calvino destacaram os
seus receptores (lembre-se de
Machado). Entretanto jamais
aquela figura capaz de fazer com
que um livro deixe a condição de
"ser morto" -como uma pedra- para se transformar num
"ser vivo" foi elevada a tamanho
grau de importância, satisfatoriamente, numa obra literária.
No fim de "Se um Viajante numa Noite de Inverno", Calvino escreve que, no passado, o sentido
último de todos os relatos tinha
duas faces: a continuidade da vida
e a inevitabilidade da morte. Sem
pejo de se apresentar como uma
realidade romanesca, "Se um Viajante numa Noite de Inverno"
realiza-se no mundo real, transformando, como se disse antes, os
leitores -o concreto e o fictício- num mesmo indivíduo. Isso acaba permitindo que a continuidade da vida se imponha à inevitabilidade da morte. "Minha
confiança no futuro da literatura
consiste em saber que há coisas
que só ela nos pode dar", escreveu
Calvino em "Seis Propostas para o
Próximo Milênio". Sua obra-prima é a maior prova de que ele estava certo.
A OBRA
Se um Viajante numa Noite de Inverno - Italo Calvino.
Trad. Nilson Moulin. Companhia
das Letras (r. Bandeira Paulista,
702, conjunto 72, CEP 04532-002,
SP, tel. 0/xx/11/866-0801). 275
págs. R$ 25,00.
Rinaldo Gama é professor de jornalismo da
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), coordenador do Instituto Moreira Salles e autor de "O Guardador de Signos"
(Perspectiva/IMS).
Texto Anterior: Autores - Robert Kurz: Totalitarismo econômico Próximo Texto: Ponto de fuga - Jorge Coli: Triste, rígido e cerimonial Índice
|