São Paulo, Domingo, 22 de Agosto de 1999
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PONTO DE FUGA

Triste, rígido e cerimonial

JORGE COLI
especial para a Folha,

em Nova York
György Ligeti foge de qualquer frieza mental em suas obras. Carrega pulsões românticas, num fascínio por células simples e expressivas. É, por isto, um herdeiro tanto de Chopin quanto de Bartók. No final de sua vida, percebeu afinidades com o minimalismo. Compôs um "Auto-Retrato com Reich e Riley (com Chopin ao Fundo)". São afinidades circunscritas, porém: ao contrário desses novos americanos, sua intrincada densidade européia, musical e histórica não desliza apenas em superfície. A segunda das 11 "Musica Ricercata", que compôs entre 1951-3, "Mesto, Rigido e Cerimoniale", enrola-se, no piano, em torno de apenas quatro notas que se seguem na escala cromática: fá sustenido, sol, sol sustenido e, na oitava acima, um lá, luminoso e lancinante, que se repete, implacável. É esse o tema sonoro principal de "Eyes Wide Shut". Kubrick escolheu músicas para seus filmes de modo tão justo que elas adquiriram uma simbiose definitiva com as imagens. O início de "Assim Falava Zaratustra" ou o "Danúbio Azul", Beethoven ou Rossini, parecem não mais poder se separar de "2001" ou de "Laranja Mecânica". Do mesmo modo, a obra de Ligeti define o grande clima, eloquente e nobre, desse filme. Estão ali assimilados ainda uma valsa de Shostakovich, soando estranha e perigosa; os "Nuages Gris", de Liszt, secreto apogeu da música pianística do século passado, fruto de uma velhice meditativa e precursora; "Strangers in the Night"; Oscar Peterson; Chris Isaak e as oníricas composições de Jocelyn Pook.

Road movie - Se o público dos concertos e óperas, nos Estados Unidos, comporta-se de modo irritante, fazendo barulho, incomodando os vizinhos, os motoristas americanos, ao contrário, são certamente os mais civilizados do mundo. A conduta é calma, respeitosa, mantendo os limites de velocidade e largas distâncias entre um carro e outro. Percorrer mil quilômetros nos EUA significa menos cansaço e estresse do que enfrentar, digamos, os cem, pela Bandeirantes, que unem São Paulo a Campinas. Uma viagem de uns 15 dias, indo de Nova York a San Francisco, apresenta apenas uma dificuldade: a escolha do trajeto, já que todos são bons. Da histórica "Route 66", não resta tanto. Ela sobrevive apenas em alguns trechos residuais, engolida pela rede rodoviária mais moderna. Mas, na verdade, os caminhos não importam. Em todo lugar, além da natureza grandiosa, a paisagem humana reconstitui, no real, os ambientes tantas vezes sonhados e sentidos diante das telas dos cinemas.

Bobagem - "Eyes Wide Shut" não faz exceção dentre os filmes de Kubrick. Como os outros, ele conduz à perplexidade. Certos jornalistas que se querem mais espertos -gênero "comigo não, violão"- decidiram atacá-lo, porque seu erotismo decepciona, porque mostra uma Nova York inverossímil, ou porque se preocupa com as infidelidades de um casal rico e bonito. Na verdade, o filme situa-se entre o ato sexual puramente físico e simples e a desvairada complexidade imaginária que o envolve. Longe do realismo, da análise psicológica e de uma esperada sacanagem, ele plana a léguas de distância dessa crítica rasteira.

Efeito - Há 100 ou 80 anos, milionários americanos concorriam entre si, com fúria, colecionando objetos de arte. Graças a isso, hoje, nos EUA, cada cidade, média ou grande, possui pelo menos um museu com obras essenciais. A coleção de expressionistas alemães em St. Louis, o "S. João Batista", do Caravaggio, em Kansas City, ou o retrato de Antonin Proust, por Manet, em Toledo, Ohio, por si só, compensam a visita.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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