São Paulo, domingo, 22 de outubro de 2006

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Peripécias do voto

Na falta de um sistema educacional eficiente, é preciso criar com urgência novas formas de informação ao eleitor brasileiro

BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA

É muito comum, sobretudo entre as gerações mais jovens, tomar processos decisórios e construções institucionais, dependentes portanto da ação humana, como dados da natureza.
Os exemplos são muitos, em diferentes áreas: assume-se como natural, no âmbito da economia, que a inflação esteja em níveis aceitáveis, como se sempre fosse assim; assume-se como natural, na área do comportamento, a possibilidade do divórcio, como se sua existência não resultasse de uma longa luta contra um arraigado conservadorismo, cujo bastião maior foi a Igreja Católica.
Em época eleitoral, lembremos as peripécias de alguns princípios, hoje "naturalizados": o voto universal e direto e o do analfabeto, com muitos pontos de contato entre si. Entre a Independência e ano de 1881, o sistema eleitoral em vigor no Brasil era bastante excludente.
O direito de votar dependia de um determinado nível de renda -era, portanto, censitário e excluía uma grande massa de pessoas a quem se negava precisamente essa qualidade, ou seja, os escravos, oscilando entre 20% e 10% da população, ao longo do Império.

Fortes ressalvas
Escrevendo em 1857, o constitucionalista Pimenta Bueno, lembrado pelo sociólogo Bolívar Lamounier em seu livro "Da Independência a Lula -Dois Séculos de Política Brasileira" [ed. Augurium], dizia: "O espírito mais liberal não pode deixar de reconhecer que o voto universal é uma verdadeira utopia. A razão e o interesse público não podem deixar de necessariamente admitir as incapacidades resultantes do sexo, da minoridade, da demência, da falta de luzes e da ausência de habilitações, que convertem o voto em um perigo social".
Pimenta Bueno e outras figuras do Império preocupavam-se, principalmente, com a admissão do voto dos analfabetos, que constituíam em torno de 80% da população.
Por sua vez, até a lei Saraiva, de 1881, a eleição era indireta, votando-se primeiro nos chamados eleitores, a quem cabia eleger os "legítimos representantes do povo". A lei Saraiva alterou esse sistema, ao suprimir o voto indireto e excluir os analfabetos do corpo de eleitores, ressalvados os direitos dos até então alistados.
Dessa forma, introduziu-se o que Ruy Barbosa chamou, com felicidade, de "censo literário".
Embora a lei reduzisse a exigência de renda a proporções mínimas, complicou extraordinariamente a prova desse requisito, e o voto censitário só desapareceu com o advento da República.
A questão do voto do analfabeto é não só um exemplo da "naturalização" de uma medida legislativa, resultante de muitas controvérsias, como do fato de que alguns combates, que se prolongam por décadas e décadas, acabam por perder contundência.
A medida ampliativa suscitou fortes ressalvas, sob o argumento de que legitimava aquilo que se desejava combater, ou seja, a inconsciência política da grande maioria da população.
A medida figurava na lista de reivindicações "subversivas" da esquerda nacionalista, nos anos que precederam o movimento militar de 1964, ao lado da ampliação do voto em favor dos chamados inferiores das Forças Armadas. Por fim, passados os anos da ditadura, foi aprovada em 1985, sem grande tumulto, a lei que admitiu o voto dos analfabetos.

Analfabetos funcionais
Hoje, em meio às muitas controvérsias sobre a reforma política, a questão se tornou secundária. Essa mutação das percepções sociopolíticas tem várias razões. Em primeiro lugar, em tempos passados, era razoável sustentar que, dependente de informações pelo rádio, cujo raio de ação era reduzido, o analfabeto só dispunha de meios muito escassos para se orientar, ficando seu voto na dependência direta dos caciques políticos.
Nos tempos atuais, com a expansão do rádio e da televisão -a última lançando na tela imagens que às vezes são mais expressivas do que as palavras-, o argumento da desinformação total não se sustenta.
Além disso, os analfabetos hoje representam menos de 12% da população, entre os que têm mais de 15 anos, circunstância que, aliada ao caráter facultativo do voto, relativiza sua presença nas urnas, aliás positiva em si mesma.
Mas o problema subjacente ao voto do analfabeto ganhou novos contornos à medida que cerca de 25% ou mais da população brasileira acima de 15 anos -os dados são controversos- é constituída de analfabetos funcionais, isto é, de pessoas que não completaram quatro anos de estudo formal.
Não é possível ficar de braços cruzados à espera de que a educação dê saltos qualitativos expressivos. É preciso ampliar os canais de informação que permitam uma escolha mais consistente do eleitor -seja ela qual for,- não limitada apenas à televisão ou à ordem de comando de certas igrejas.
Parafraseando o provecto Pimenta Bueno, seria uma utopia imaginar uma comunidade interessada, cotidianamente, em política. Nas sociedades complexas de hoje -e não apenas no Brasil- essa é uma utopia irrealizável, quanto mais não fosse porque a tendência geral vai em sentido oposto, isto é, o da descrença.
No nosso caso, a descrença, não por acaso, tem crescido muito, nos últimos tempos, demonstrando a urgência de separar o joio do trigo, de estabelecer distinções entre propostas programáticas, de revelar nexos que permitam ao cidadão entender porque certas medidas, aparentemente distantes dele, têm ressonância em sua vida diária.
Os caminhos para avançar com esse objetivo são tão difíceis quanto necessários, e a seu respeito temos uma única certeza. Eles não passam pelos desvãos das campanhas eleitorais, pelo menos das campanhas que conhecemos.


BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 1930" (Companhia das Letras).


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