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Peripécias do voto
Na falta de um sistema educacional eficiente, é preciso criar com urgência novas formas de informação ao eleitor brasileiro
BORIS FAUSTO
COLUNISTA DA FOLHA
É muito comum, sobretudo entre as gerações
mais jovens, tomar
processos decisórios e
construções institucionais, dependentes portanto
da ação humana, como dados
da natureza.
Os exemplos são muitos, em
diferentes áreas: assume-se como natural, no âmbito da economia, que a inflação esteja em
níveis aceitáveis, como se sempre fosse assim; assume-se como natural, na área do comportamento, a possibilidade do divórcio, como se sua existência
não resultasse de uma longa luta contra um arraigado conservadorismo, cujo bastião maior
foi a Igreja Católica.
Em época eleitoral, lembremos as peripécias de alguns
princípios, hoje "naturalizados": o voto universal e direto e
o do analfabeto, com muitos
pontos de contato entre si. Entre a Independência e ano de
1881, o sistema eleitoral em vigor no Brasil era bastante excludente.
O direito de votar dependia
de um determinado nível de
renda -era, portanto, censitário e excluía uma grande massa
de pessoas a quem se negava
precisamente essa qualidade,
ou seja, os escravos, oscilando
entre 20% e 10% da população,
ao longo do Império.
Fortes ressalvas
Escrevendo em 1857, o constitucionalista Pimenta Bueno,
lembrado pelo sociólogo Bolívar Lamounier em seu livro
"Da Independência a Lula
-Dois Séculos de Política Brasileira" [ed. Augurium], dizia: "O
espírito mais liberal não pode
deixar de reconhecer que o voto universal é uma verdadeira
utopia. A razão e o interesse público não podem deixar de necessariamente admitir as incapacidades resultantes do sexo,
da minoridade, da demência,
da falta de luzes e da ausência
de habilitações, que convertem
o voto em um perigo social".
Pimenta Bueno e outras figuras do Império preocupavam-se, principalmente, com a admissão do voto dos analfabetos,
que constituíam em torno de
80% da população.
Por sua vez, até a lei Saraiva,
de 1881, a eleição era indireta,
votando-se primeiro nos chamados eleitores, a quem cabia
eleger os "legítimos representantes do povo". A lei Saraiva
alterou esse sistema, ao suprimir o voto indireto e excluir os
analfabetos do corpo de eleitores, ressalvados os direitos dos
até então alistados.
Dessa forma, introduziu-se o
que Ruy Barbosa chamou, com
felicidade, de "censo literário".
Embora a lei reduzisse a exigência de renda a proporções
mínimas, complicou extraordinariamente a prova desse requisito, e o voto censitário só
desapareceu com o advento da
República.
A questão do voto do analfabeto é não só um exemplo da
"naturalização" de uma medida
legislativa, resultante de muitas controvérsias, como do fato
de que alguns combates, que se
prolongam por décadas e décadas, acabam por perder contundência.
A medida ampliativa suscitou fortes ressalvas, sob o argumento de que legitimava aquilo
que se desejava combater, ou
seja, a inconsciência política da
grande maioria da população.
A medida figurava na lista de
reivindicações "subversivas"
da esquerda nacionalista, nos
anos que precederam o movimento militar de 1964, ao lado
da ampliação do voto em favor
dos chamados inferiores das
Forças Armadas. Por fim, passados os anos da ditadura, foi
aprovada em 1985, sem grande
tumulto, a lei que admitiu o voto dos analfabetos.
Analfabetos funcionais
Hoje, em meio às muitas controvérsias sobre a reforma política, a questão se tornou secundária. Essa mutação das percepções sociopolíticas tem várias razões. Em primeiro lugar,
em tempos passados, era razoável sustentar que, dependente
de informações pelo rádio, cujo
raio de ação era reduzido, o
analfabeto só dispunha de
meios muito escassos para se
orientar, ficando seu voto na
dependência direta dos caciques políticos.
Nos tempos atuais, com a expansão do rádio e da televisão
-a última lançando na tela
imagens que às vezes são mais
expressivas do que as palavras-, o argumento da desinformação total não se sustenta.
Além disso, os analfabetos
hoje representam menos de
12% da população, entre os que
têm mais de 15 anos, circunstância que, aliada ao caráter facultativo do voto, relativiza sua
presença nas urnas, aliás positiva em si mesma.
Mas o problema subjacente
ao voto do analfabeto ganhou
novos contornos à medida que
cerca de 25% ou mais da população brasileira acima de 15
anos -os dados são controversos- é constituída de analfabetos funcionais, isto é, de pessoas que não completaram quatro anos de estudo formal.
Não é possível ficar de braços
cruzados à espera de que a educação dê saltos qualitativos expressivos. É preciso ampliar os
canais de informação que permitam uma escolha mais consistente do eleitor -seja ela
qual for,- não limitada apenas
à televisão ou à ordem de comando de certas igrejas.
Parafraseando o provecto Pimenta Bueno, seria uma utopia
imaginar uma comunidade interessada, cotidianamente, em
política. Nas sociedades complexas de hoje -e não apenas
no Brasil- essa é uma utopia
irrealizável, quanto mais não
fosse porque a tendência geral
vai em sentido oposto, isto é, o
da descrença.
No nosso caso, a descrença,
não por acaso, tem crescido
muito, nos últimos tempos, demonstrando a urgência de separar o joio do trigo, de estabelecer distinções entre propostas programáticas, de revelar
nexos que permitam ao cidadão entender porque certas
medidas, aparentemente distantes dele, têm ressonância
em sua vida diária.
Os caminhos para avançar
com esse objetivo são tão difíceis quanto necessários, e a seu
respeito temos uma única certeza. Eles não passam pelos
desvãos das campanhas eleitorais, pelo menos das campanhas que conhecemos.
BORIS FAUSTO é historiador e preside o conselho acadêmico do Gacint (Grupo de Conjuntura
Internacional), da USP. É autor de "A Revolução
de 1930" (Companhia das Letras).
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