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AUTORES
Não existe hoje força subjetiva ou coletiva que possa inovar a ação política depois da catástrofe da velha sociedade
Mundo sem herói
ANTONIO NEGRI
especial para a Folha
Como nunca antes, hoje é forte a
consciência de que o neoliberalismo alcançou um limite no qual se
afirmam o caos social, a impossibilidade administrativa da economia e a infelicidade das multidões.
Como nunca antes, no entanto, há
hoje falta de perspectivas alternativas realmente viáveis. Isso não se
deve apenas à falta de imaginação
dos teóricos da economia e da política nem à repressão seletiva que
o poder exercita na circulação das
idéias.
Tampouco esta situação se deve
apenas ao egoísmo dos ricos e dos
dominadores: afinal, eles próprios
estão sendo arrastados (certamente com menos dor do que os pobres) pela crise que vai se afirmando e, sobretudo, não podem deixar de ver com certa preocupação
a derrocada (ou ao menos o enfraquecimento) daquele horizonte de
certezas ideais e materiais sobre as
quais repousa a autoridade, a não
ser que se queira reduzi-la a mero
exercício da violência. No entanto,
repito, faltam alternativas políticas realmente viáveis. Por quê?
Em primeiro lugar, porque o
ideal de um desenvolvimento capitalista capaz de incrementar a
produtividade das sociedades e, a
um só tempo, melhorar a distribuição da riqueza -por meio de
uma direção centralizada da economia e de uma gestão totalitária
da sociedade- mostrou ser uma
experiência nada melhor do que a
denominada "liberdade dos mercados". Neste fim de século, talvez já tenhamos digerido a crise do
"socialismo real", assim como
estamos saboreando a catástrofe
do "liberalismo real".
Em segundo lugar porque, prisioneiros daquela alternativa impossível que o século nos ensinou
(mas que morre com ele), os protagonistas do mundo da cultura e
da produção (da "intelligentsia"
às classes produtivas), em suma,
os atores do mundo da vida, já não
sabem reconhecer as forças subjetivas capazes de transformar a situação, ou mesmo, mais simplesmente, de agir na crise. Quero dizer: hoje, todos nós, quando temos consciência da crise, não sabemos identificar e, por conseguinte, tampouco construir o herói da inovação que poderá nos
subtrair à catástrofe.
O desenvolvimento histórico
não se dá no fundamento das
idéias, mas, sobretudo, no fundamento das forças materiais; não
surge das ilusões, mas dos desejos
dos sujeitos fortes. Noutros tempos, o empresário e a sua classe, os
operários e a classe operária foram
-e reconheceram-se como- forças subjetivas capazes de arrancar
o desenvolvimento histórico da
crise para levá-lo em direção à
inovação: quem, hoje, é capaz disso?
Essas considerações surgem ao
serem reexaminadas as teorias da
organização industrial no pós-fordismo, ou seja, nesses últimos 25
anos de história industrial em que,
sob a pressão conjunta das lutas da
classe operária e do desenvolvimento das indústria eletrônica e
de informação, operou-se a transformação radical do modo no
qual, com a produção das mercadorias, a reprodução da vida também se transformou.
Torno a ler Chandler e a sua crítica ao fordismo; Williamson e a
interpretação da crise do fordismo
como base de uma nova apreciação dos custos de transação; e depois, de um lado, Sabel, Priore e
Margelin e as suas teorias da disseminação empresarial, do outro,
Ohno e Nomaka e a construção
gradual do modelo japonês; e depois Porter, Solow, Drucker,
Hammer, Bill Gates, ou seja, a resposta americana ao modelo japonês...
Chego, desse modo, a identificar
as novas condições da produção: o
conhecimento implícito que deve
prefigurar a produção; os capitais
humano e cognoscitivo que se tornam cada vez mais importantes,
até substituir, tendencialmente, o
capital fixo; a implementação dos
fluxos de valor por meio de uma
cooperação, cada vez mais intensa, dos operadores. Acrescento, a
essas leituras, as dos criadores da
divisão distrital das escolas italianas: eles descreveram o novo relacionamento da indústria com os
territórios e observaram a circulação produtiva das tecnologias da
informação através do social.
Além disso, a respeito deste tema, em relação à contribuição da
escola que se refere a Sassen-Koob
e aos novos urbanistas: eis outro
superávit de conhecimento a respeito dos novos ajustes produtivos, da nova cooperação social
que os percorre e das novas forças
produtivas que ali se configuram...
Pois bem. Ao terminar essas leituras, que para mim representam
um novo mundo da produção e
reconfiguram a sociedade diante
de meus olhos, isto é, quando a
nova "forma" da ação produtiva
social é desdobrada, por completo, diante dos meus olhos, não
consigo, ainda assim, enxergar como esta nova forma da acumulação poderia se relacionar com o
projeto de um novo futuro político, ou seja, de um modelo de sociedade que possa nos subtrair à
antítese paralisadora de socialismo e liberalismo reais.
Não consigo identificar nem o
empresário político nem o novo
partido dos trabalhadores do conhecimento que possam extrair da
catástrofe da velha sociedade a semente de uma nova sociedade que
está em formação e que já se representa na produção.
Mas, contestam-me: com que
objetivo se pôr diante dessas questões? Certamente há a crise do modelo liberal, assim como se registra a impossibilidade do modelo
do planejamento central, mas a
questão é complexa e lenta: vamos
então nos dar por satisfeitos por
termos consciência do problema e
por dirigirmos nossa ação diária
para o fim da transformação, mas
com prudência, sem a construção
de novas ideologias...
Não há objeção mais estúpida.
Não há repetição mais insensata
do que a de uma sabedoria que
corresponde a tempos em que o
desenrolar-se da história tinha
muito pouco a ver com o da inteligência coletiva. Não há registro
mais cínico da crise em que estamos mergulhados, que toca, quer
o reconheçamos ou não, a multidão. A urgência da questão está ligada à imensidão dos efeitos que,
hoje, a crise provoca: a globalização não é somente uma condição,
mas um destino.
E então: onde está uma força
subjetiva, coletiva, que hoje poderia se tornar herói da inovação política, ou melhor, biopolítica (pois
a política já não pode ser separada
da vida), diante da crise que nos
aflige?
Não vou nem sequer questionar
os valores a partir dos quais essa
vontade de inovação deveria se organizar. Não me interessam. Estou
brincando de nietzschiano (na
mais vulgar das acepções que podem ser atribuídas, amiúde injustamente, ao pensamento daquele
louco alemão).
Interessa-me a inteligência crítica que, na novidade da força de
produção do mundo, descobre as
reais hipóteses de reorganização
política da vida: que revolve a nova organização do trabalho à procura da chave de um novo horizonte de cooperação social.
Seja lá como for, dificilmente
deste esforço de investigação e de
reconstrução aparecerá um novo
Leviatã... porque este novo mundo
produtivo é um mundo de inteligências cooperantes, de conhecimento disseminado e criativo;
"General Intellect", dizem alguns
exegetas da pós-modernidade.
Antonio Negri é cientista social italiano, autor
de "A Anomalia Selvagem" (Ed. 34), entre outros; ele escreve mensalmente na
Folha, na seção "Autores".
Tradução de Roberta Barni.
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