São Paulo, domingo, 22 de novembro de 1998

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AUTORES
Não existe hoje força subjetiva ou coletiva que possa inovar a ação política depois da catástrofe da velha sociedade
Mundo sem herói

ANTONIO NEGRI
especial para a Folha

Como nunca antes, hoje é forte a consciência de que o neoliberalismo alcançou um limite no qual se afirmam o caos social, a impossibilidade administrativa da economia e a infelicidade das multidões. Como nunca antes, no entanto, há hoje falta de perspectivas alternativas realmente viáveis. Isso não se deve apenas à falta de imaginação dos teóricos da economia e da política nem à repressão seletiva que o poder exercita na circulação das idéias.
Tampouco esta situação se deve apenas ao egoísmo dos ricos e dos dominadores: afinal, eles próprios estão sendo arrastados (certamente com menos dor do que os pobres) pela crise que vai se afirmando e, sobretudo, não podem deixar de ver com certa preocupação a derrocada (ou ao menos o enfraquecimento) daquele horizonte de certezas ideais e materiais sobre as quais repousa a autoridade, a não ser que se queira reduzi-la a mero exercício da violência. No entanto, repito, faltam alternativas políticas realmente viáveis. Por quê?
Em primeiro lugar, porque o ideal de um desenvolvimento capitalista capaz de incrementar a produtividade das sociedades e, a um só tempo, melhorar a distribuição da riqueza -por meio de uma direção centralizada da economia e de uma gestão totalitária da sociedade- mostrou ser uma experiência nada melhor do que a denominada "liberdade dos mercados". Neste fim de século, talvez já tenhamos digerido a crise do "socialismo real", assim como estamos saboreando a catástrofe do "liberalismo real".
Em segundo lugar porque, prisioneiros daquela alternativa impossível que o século nos ensinou (mas que morre com ele), os protagonistas do mundo da cultura e da produção (da "intelligentsia" às classes produtivas), em suma, os atores do mundo da vida, já não sabem reconhecer as forças subjetivas capazes de transformar a situação, ou mesmo, mais simplesmente, de agir na crise. Quero dizer: hoje, todos nós, quando temos consciência da crise, não sabemos identificar e, por conseguinte, tampouco construir o herói da inovação que poderá nos subtrair à catástrofe.
O desenvolvimento histórico não se dá no fundamento das idéias, mas, sobretudo, no fundamento das forças materiais; não surge das ilusões, mas dos desejos dos sujeitos fortes. Noutros tempos, o empresário e a sua classe, os operários e a classe operária foram -e reconheceram-se como- forças subjetivas capazes de arrancar o desenvolvimento histórico da crise para levá-lo em direção à inovação: quem, hoje, é capaz disso?
Essas considerações surgem ao serem reexaminadas as teorias da organização industrial no pós-fordismo, ou seja, nesses últimos 25 anos de história industrial em que, sob a pressão conjunta das lutas da classe operária e do desenvolvimento das indústria eletrônica e de informação, operou-se a transformação radical do modo no qual, com a produção das mercadorias, a reprodução da vida também se transformou.
Torno a ler Chandler e a sua crítica ao fordismo; Williamson e a interpretação da crise do fordismo como base de uma nova apreciação dos custos de transação; e depois, de um lado, Sabel, Priore e Margelin e as suas teorias da disseminação empresarial, do outro, Ohno e Nomaka e a construção gradual do modelo japonês; e depois Porter, Solow, Drucker, Hammer, Bill Gates, ou seja, a resposta americana ao modelo japonês...
Chego, desse modo, a identificar as novas condições da produção: o conhecimento implícito que deve prefigurar a produção; os capitais humano e cognoscitivo que se tornam cada vez mais importantes, até substituir, tendencialmente, o capital fixo; a implementação dos fluxos de valor por meio de uma cooperação, cada vez mais intensa, dos operadores. Acrescento, a essas leituras, as dos criadores da divisão distrital das escolas italianas: eles descreveram o novo relacionamento da indústria com os territórios e observaram a circulação produtiva das tecnologias da informação através do social.
Além disso, a respeito deste tema, em relação à contribuição da escola que se refere a Sassen-Koob e aos novos urbanistas: eis outro superávit de conhecimento a respeito dos novos ajustes produtivos, da nova cooperação social que os percorre e das novas forças produtivas que ali se configuram...
Pois bem. Ao terminar essas leituras, que para mim representam um novo mundo da produção e reconfiguram a sociedade diante de meus olhos, isto é, quando a nova "forma" da ação produtiva social é desdobrada, por completo, diante dos meus olhos, não consigo, ainda assim, enxergar como esta nova forma da acumulação poderia se relacionar com o projeto de um novo futuro político, ou seja, de um modelo de sociedade que possa nos subtrair à antítese paralisadora de socialismo e liberalismo reais.
Não consigo identificar nem o empresário político nem o novo partido dos trabalhadores do conhecimento que possam extrair da catástrofe da velha sociedade a semente de uma nova sociedade que está em formação e que já se representa na produção.
Mas, contestam-me: com que objetivo se pôr diante dessas questões? Certamente há a crise do modelo liberal, assim como se registra a impossibilidade do modelo do planejamento central, mas a questão é complexa e lenta: vamos então nos dar por satisfeitos por termos consciência do problema e por dirigirmos nossa ação diária para o fim da transformação, mas com prudência, sem a construção de novas ideologias...
Não há objeção mais estúpida. Não há repetição mais insensata do que a de uma sabedoria que corresponde a tempos em que o desenrolar-se da história tinha muito pouco a ver com o da inteligência coletiva. Não há registro mais cínico da crise em que estamos mergulhados, que toca, quer o reconheçamos ou não, a multidão. A urgência da questão está ligada à imensidão dos efeitos que, hoje, a crise provoca: a globalização não é somente uma condição, mas um destino.
E então: onde está uma força subjetiva, coletiva, que hoje poderia se tornar herói da inovação política, ou melhor, biopolítica (pois a política já não pode ser separada da vida), diante da crise que nos aflige?
Não vou nem sequer questionar os valores a partir dos quais essa vontade de inovação deveria se organizar. Não me interessam. Estou brincando de nietzschiano (na mais vulgar das acepções que podem ser atribuídas, amiúde injustamente, ao pensamento daquele louco alemão).
Interessa-me a inteligência crítica que, na novidade da força de produção do mundo, descobre as reais hipóteses de reorganização política da vida: que revolve a nova organização do trabalho à procura da chave de um novo horizonte de cooperação social.
Seja lá como for, dificilmente deste esforço de investigação e de reconstrução aparecerá um novo Leviatã... porque este novo mundo produtivo é um mundo de inteligências cooperantes, de conhecimento disseminado e criativo; "General Intellect", dizem alguns exegetas da pós-modernidade.


Antonio Negri é cientista social italiano, autor de "A Anomalia Selvagem" (Ed. 34), entre outros; ele escreve mensalmente na Folha, na seção "Autores".
Tradução de Roberta Barni.




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