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MACHADO DE ASSIS
Antologia de 75 contos do autor de "Missa do Galo" traz uma
narrativa que foi considerada perdida e duas outras nunca publicadas integralmente desde o final do século 19
O cálculo da inércia
ADRIANO SCHWARTZ
Editor-adjunto do Mais!
É ao mesmo tempo motivo de alegria e espanto que, 90 anos depois de sua morte, Machado de Assis, o mais importante escritor
brasileiro, ainda tenha contos desconhecidos
e de qualidade inquestionável como "Trina e
Una", publicado nas págs. 5-6 e 5-7 em sua
versão integral pela primeira vez neste século.
O texto é uma das três novidades dos dois
volumes de uma antologia de 75 contos de
Machado, organizada pelo professor e crítico
literário inglês John Gledson, que será lançada no dia 10 do mês que vem pela Companhia
das Letras. As outras duas são "Médico É Remédio" -conto antes considerado perdido- e "A Inglesinha Barcelos" -que, como "Trina e Una", tivera uma pedaço publicado nos anos 50 em uma das antologias preparadas por Raymundo Magalhães Jr.
Todos foram publicados pelo escritor em
"A Estação", uma revista para "senhoras",
no final do século passado, mas, dos três, o
destaque é certamente "Trina e Una". É daqueles textos que, se não trouxessem assinatura, mesmo assim seriam reconhecíveis. Estão lá presentes características fundamentais
da prosa machadiana: o narrador capcioso, a
ironia, o retrato intrincado de uma personagem feminina, a sutil percepção dos mecanismos de integração e desintegração da sociedade da época.
O enredo é simples: o advogado Matias se
esforça para unir a jovem e frívola viúva Clara
-que, é bom notar, já possuía um "modo
oblíquo" de olhar, como Capitu, uma certa
menina que Machado depois criaria- e o
juiz de direito Severiano. Este aceita sem muita demora a idéia, a moça a princípio reluta,
mas termina, "para acabar com a importunação do Matias", cedendo.
O conto começa em cadência lenta, como
constata Gledson (leia entrevista à pág. 5-5),
com Clara, a protagonista, fazendo compras
em uma loja da rua da Quitanda e a advertência do narrador de que nenhuma das palavras
ali utilizadas está em excesso: tudo ali é necessário, tudo é calculado. A lentidão é, no entanto, tematizada e enfatizada obssessivamente ao longo de toda a narrativa, até o desfecho, em manifestações outras da "inércia"
de que o narrador fala no final do conto, uma
espécie de disseminação da letargia:
"Comprou; agora paga. Tira a carteirinha
da bolsa, saca um maçozinho de notas e, vagarosamente, puxa uma, enquanto o caixeiro
faz a conta a lápis"; ou "Clara foi despir-se.
Não se despiu às pressas, para condescender
com a mãe, ou fazer-se perdoar a demora;
mas, vagarosamente"; ou ainda, para citar
outro personagem, o pretendente, "Severiano fugiria logo, sem pensar mais em nada; é o
que ele dizia a si mesmo, sinceramente, mas
dada a diferença que vai do vivo ao pintado,
podemos crer que fugiria lentamente, e pode
ser até que se deixasse ficar".
"Trina e Una" foi publicado em 1884, ou
seja, é posterior a "O Alienista" (1881), "O
Espelho" (1882), "Singular Ocorrência"
(1883) e do mesmo ano de, por exemplo,
"Noite de Almirante", para citar outros contos naturalmente incluídos na antologia.
Aliás, denotando um momento de intensa
fertilidade criativa, os dois anos que mais
contos cederam aos dois volumes foram exatamente 1883 e 1884, significativamente logo
após à evidente transição qualitativa na obra
de Machado, que tem como marco principal
o lançamento do romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas", em 1881.
É como Gledson afirma na introdução que
preparou para o livro: "O poder da prosa de
Machado ganha uma intensidade e uma confiança inéditas (...), como se, de fato, tivesse
dominado uma série de efeitos novos, uma
música nova".
Além dos contos já citados, alguns dos outros de (re)conhecimento obrigatório -todos já tributários desse domínio de uma
"música nova"- que constam da antologia
são "Teoria do Medalhão", "Um Homem
Célebre", "Missa do Galo", "A Igreja do
Diabo", "Causa Secreta", "Uns Braços",
"Entre Santos" e "Trio em Lá Menor".
Como escreveu há mais de 50 anos -e a
observação pouco perdeu de sua atualidade- Lúcia Miguel Pereira, uma das mais importantes estudiosas da obra do autor, Machado "revelou-se um mestre no gênero (o
conto)", porque "não teve exemplos na sua
língua, nem talvez nas estrangeiras, e até agora ainda não encontrou quem o suplante".
A OBRA:
75 Contos - Machado de Assis. Organização de John Gledson. Em
dois volumes reunidos em uma caixa. Companhia das Letras (tel.
011/866-0801). Preço não definido. Lançamento nas livrarias previsto para o dia 10 de dezembro.
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