São Paulo, domingo, 22 de novembro de 1998

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MACHADO DE ASSIS
Antologia de 75 contos do autor de "Missa do Galo" traz uma narrativa que foi considerada perdida e duas outras nunca publicadas integralmente desde o final do século 19
O cálculo da inércia

ADRIANO SCHWARTZ
Editor-adjunto do Mais!

É ao mesmo tempo motivo de alegria e espanto que, 90 anos depois de sua morte, Machado de Assis, o mais importante escritor brasileiro, ainda tenha contos desconhecidos e de qualidade inquestionável como "Trina e Una", publicado nas págs. 5-6 e 5-7 em sua versão integral pela primeira vez neste século.
O texto é uma das três novidades dos dois volumes de uma antologia de 75 contos de Machado, organizada pelo professor e crítico literário inglês John Gledson, que será lançada no dia 10 do mês que vem pela Companhia das Letras. As outras duas são "Médico É Remédio" -conto antes considerado perdido- e "A Inglesinha Barcelos" -que, como "Trina e Una", tivera uma pedaço publicado nos anos 50 em uma das antologias preparadas por Raymundo Magalhães Jr.
Todos foram publicados pelo escritor em "A Estação", uma revista para "senhoras", no final do século passado, mas, dos três, o destaque é certamente "Trina e Una". É daqueles textos que, se não trouxessem assinatura, mesmo assim seriam reconhecíveis. Estão lá presentes características fundamentais da prosa machadiana: o narrador capcioso, a ironia, o retrato intrincado de uma personagem feminina, a sutil percepção dos mecanismos de integração e desintegração da sociedade da época.
O enredo é simples: o advogado Matias se esforça para unir a jovem e frívola viúva Clara -que, é bom notar, já possuía um "modo oblíquo" de olhar, como Capitu, uma certa menina que Machado depois criaria- e o juiz de direito Severiano. Este aceita sem muita demora a idéia, a moça a princípio reluta, mas termina, "para acabar com a importunação do Matias", cedendo.
O conto começa em cadência lenta, como constata Gledson (leia entrevista à pág. 5-5), com Clara, a protagonista, fazendo compras em uma loja da rua da Quitanda e a advertência do narrador de que nenhuma das palavras ali utilizadas está em excesso: tudo ali é necessário, tudo é calculado. A lentidão é, no entanto, tematizada e enfatizada obssessivamente ao longo de toda a narrativa, até o desfecho, em manifestações outras da "inércia" de que o narrador fala no final do conto, uma espécie de disseminação da letargia:
"Comprou; agora paga. Tira a carteirinha da bolsa, saca um maçozinho de notas e, vagarosamente, puxa uma, enquanto o caixeiro faz a conta a lápis"; ou "Clara foi despir-se. Não se despiu às pressas, para condescender com a mãe, ou fazer-se perdoar a demora; mas, vagarosamente"; ou ainda, para citar outro personagem, o pretendente, "Severiano fugiria logo, sem pensar mais em nada; é o que ele dizia a si mesmo, sinceramente, mas dada a diferença que vai do vivo ao pintado, podemos crer que fugiria lentamente, e pode ser até que se deixasse ficar".
"Trina e Una" foi publicado em 1884, ou seja, é posterior a "O Alienista" (1881), "O Espelho" (1882), "Singular Ocorrência" (1883) e do mesmo ano de, por exemplo, "Noite de Almirante", para citar outros contos naturalmente incluídos na antologia. Aliás, denotando um momento de intensa fertilidade criativa, os dois anos que mais contos cederam aos dois volumes foram exatamente 1883 e 1884, significativamente logo após à evidente transição qualitativa na obra de Machado, que tem como marco principal o lançamento do romance "Memórias Póstumas de Brás Cubas", em 1881.
É como Gledson afirma na introdução que preparou para o livro: "O poder da prosa de Machado ganha uma intensidade e uma confiança inéditas (...), como se, de fato, tivesse dominado uma série de efeitos novos, uma música nova".
Além dos contos já citados, alguns dos outros de (re)conhecimento obrigatório -todos já tributários desse domínio de uma "música nova"- que constam da antologia são "Teoria do Medalhão", "Um Homem Célebre", "Missa do Galo", "A Igreja do Diabo", "Causa Secreta", "Uns Braços", "Entre Santos" e "Trio em Lá Menor".
Como escreveu há mais de 50 anos -e a observação pouco perdeu de sua atualidade- Lúcia Miguel Pereira, uma das mais importantes estudiosas da obra do autor, Machado "revelou-se um mestre no gênero (o conto)", porque "não teve exemplos na sua língua, nem talvez nas estrangeiras, e até agora ainda não encontrou quem o suplante".

A OBRA:
75 Contos - Machado de Assis. Organização de John Gledson. Em dois volumes reunidos em uma caixa. Companhia das Letras (tel. 011/866-0801). Preço não definido. Lançamento nas livrarias previsto para o dia 10 de dezembro.



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