São Paulo, domingo, 22 de novembro de 1998

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

LIVROS
Obra demonstra como Nelson Rodrigues foi adotado pelas elites cultas sob os auspícios do Estado Novo
A musa do teatro sério

INÁ CAMARGO COSTA
especial para a Folha

Um estudo sobre Nelson Rodrigues em que o dramaturgo, o jornalista, o reacionário assumido dos ditos e feitos não é o protagonista, para além de ser uma promissora novidade em nossos estudos sobre o seu teatro, tem grandes chances de aprofundar a nossa compreensão do que foi a introdução do padrão moderno no teatro brasileiro. Se o livro de Victor Hugo Adler Pereira, "A Musa Carrancuda", se limitasse a ser uma exposição do cenário que projetou o dramaturgo, já seria de leitura obrigatória, mas vai muito além disso.
Desenvolvido num departamento de literatura, o trabalho teria todos os motivos para ser uma análise de obras, acrescentando mais argumentos que sempre seriam bem-vindos às animadas polêmicas que envolvem o dramaturgo. No entanto, ao examinar as condições do surgimento (da escrita à encenação) de "Vestido de Noiva" e outras peças dos anos 40, o autor deparou-se com a rede de relações na qual "o intelectual, homem público, suas falas e suas peças tornaram-se significativas e produziram efeitos decisivos na história de nossa cultura". Essa rede era constituída pelos modernistas tardios "que tentavam construir a arte nacional moderna amparados direta ou indiretamente pelo Estado Novo e fizeram do polêmico dramaturgo uma espécie de musa do teatro sério". Seu tema, então, transformou-se num problema de extremo interesse e dele trata a parte principal do livro.
Por outro lado, a pesquisa revelou uma série de entrevistas realizadas por Daniel Caetano em 1946 com a gente de teatro: atores-empresários como Bibi Ferreira, críticos como Pompeu de Sousa e dramaturgos como Joraci Camargo e o próprio Nelson Rodrigues. Este material precioso é a outra parte do livro e constitui revelador flagrante das preocupações e apostas do teatro profissional num momento de transição em que o imperativo moderno parecia incontornável.
Por imperativo moderno entendia-se "teatro sério", também sinônimo de arte, e em seu nome combatiam-se as diversas modalidades da comédia que então desfrutavam de grande popularidade. Objeto de quase unânime abominação era a chanchada e, pelo visto, a campanha contra ela foi tão eficaz que um de seus praticantes (Cazarré) quase pede perdão por isso, prometendo "subir" o nível. Alda Garrido, representante do que todos, inclusive o jornalista Daniel Caetano, consideravam o fim da linha, nem sequer chegou a ser entrevistada.
Quanto ao "teatro sério", definido segundo os padrões internacionais, só era praticado por amadores. Estes faziam parte da elite econômica e intelectual e, ao mesmo tempo que desprezavam os caminhos que levavam o teatro profissional ao grande público, contavam com as relações privilegiadas nos bastidores do Estado Novo, sobretudo no Ministério da Cultura e no Serviço Nacional de Teatro, criado por Getúlio, que os levariam aos cofres públicos.
Para estes militantes do alto nível, conforme o nosso autor, cultura continuava sendo, como tradicionalmente tem sido para as nossas classes dominantes, um conjunto de informações e práticas importadas às quais só esses seres superiores têm acesso em primeira mão, de modo que, numa perspectiva "democrática", sua tarefa modernizante, a ser assumida também pelo Estado, seria difundir suas novidades para a plebe ignara, ou o restante da população.
Para cumprir essa verdadeira missão (muito parecida com a de Anchieta, acrescentaríamos), era relativamente indiferente o caráter ditatorial do governo que os deveria apoiar, bem como irrelevante o fato de que as subvenções solicitadas e obtidas por meio de trocas de favores e outros privilégios correspondessem a seguidos atentados aos regulamentos das subvenções. Aliás, esclarece o autor que, ao contrário do que reza um certo consenso sobre as intervenções do Estado Novo na cultura, o SNT não patrocinava o teatro de revista e, entre as companhias de comédia, só obtinham subsídios os casos que envolvessem amizades pessoais. Não custa lembrar que o SNT fora criado para "fomentar" o "teatro nacional".
O autor demonstra que estava em andamento, com o estímulo estatal à atuação do grupo Os Comediantes, a criação de um segmento "premium" nesse mercado (para usar um termo do jargão econômico), até porque, segundo a percepção dos mais atentos, já havia público (de formação universitária) para um teatro mais exigente. Como ele se refere ao fato de que o TBC se transformou em padrão de qualidade por seu sucesso de público e legitimação intelectual, podemos acrescentar que a bem-sucedida profissionalização dessa companhia em São Paulo é a prova empírica do seu argumento.
No capítulo dedicado à análise do discurso de alguns críticos e empresários da época, encontramos alguns ingredientes que também ajudam a entender mais uma das razões do prestígio entre nós do modelo americano, que não dependeu apenas da inegável qualidade da dramaturgia de um Eugene O'Neill, para ficar só num exemplo conhecido. Em primeiro lugar, pela clara defesa dos pressupostos do livre mercado (contra qualquer interferência do Estado, que vinha favorecendo a concorrência desleal ao patrocinar trabalhos destinados a uma elite), de preferência segundo o padrão americano que àquela altura incluía até a comercialização das opiniões da crítica especializada e depois, no caso dos nossos críticos, por um conhecimento de causa politicamente produzido: o Departamento de Estado americano tratara de levá-los aos EUA para ver de perto os mecanismos de funcionamento de seu teatro.
E já que estamos falando em providências diretamente governamentais, também se encontra neste livro a informação de que a companhia de Louis Jouvet permaneceu no Rio de Janeiro a convite do governo brasileiro. De modo que, com os materiais dessa pesquisa, já podemos trabalhar com informações históricas: também a introdução do teatro moderno no Brasil foi assunto de política internacional.
Segundo a tese foucaultiana de que o poder não apenas reprime, mas também produz campos de objetos e rituais de verdade, o livro demonstra que a rede que adotou Nelson Rodrigues como a sua "musa carrancuda" é ela mesma expressão do modo como sempre se comportaram as nossas elites no plano da cultura: usando como álibi a ignorância e o analfabetismo (sobre os quais elas não têm nenhuma responsabilidade), levantam a bandeira da "melhora" do nível em geral de modo a justificar o recurso ao dinheiro público; a operação normalmente dá certo ao preço da expulsão de práticas e repertórios que a duras penas vinham se constituindo; quando o novo padrão se estabiliza, isto é, envelhece, aparece uma nova geração com o mesmo discurso e a mesma proposta devidamente atualizados. Este último argumento já é uma inferência, mas devidamente autorizada pelo livro.

A OBRA

A Musa Carrancuda - Victor Hugo Adler Pereira. Ed. da Fundação Getúlio Vargas (praia de Botafogo, 190, 6º andar, CEP 22253-900, RJ, tel. 021/536-9110). 204 págs. R$ 27,00.


Iná Camargo Costa é professora no departamento de teoria literária e literatura comparada da USP e autora, entre outros, de "A Hora do Teatro Épico no Brasil" (Graal).



Texto Anterior | Próximo Texto | Índice



Copyright Empresa Folha da Manhã S/A. Todos os direitos reservados. É proibida a reprodução do conteúdo desta página em qualquer meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização escrita da Agência Folha.