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LIVROS
Obra demonstra como Nelson Rodrigues foi adotado pelas elites cultas sob os auspícios do Estado Novo
A musa do teatro sério
INÁ CAMARGO COSTA
especial para a Folha
Um estudo sobre Nelson Rodrigues em que o dramaturgo, o jornalista, o reacionário assumido
dos ditos e feitos não é o protagonista, para além de ser uma promissora novidade em nossos estudos sobre o seu teatro, tem grandes chances de aprofundar a nossa
compreensão do que foi a introdução do padrão moderno no teatro brasileiro. Se o livro de Victor
Hugo Adler Pereira, "A Musa
Carrancuda", se limitasse a ser
uma exposição do cenário que
projetou o dramaturgo, já seria de
leitura obrigatória, mas vai muito
além disso.
Desenvolvido num departamento de literatura, o trabalho teria todos os motivos para ser uma análise de obras, acrescentando mais
argumentos que sempre seriam
bem-vindos às animadas polêmicas que envolvem o dramaturgo.
No entanto, ao examinar as condições do surgimento (da escrita à
encenação) de "Vestido de Noiva" e outras peças dos anos 40, o
autor deparou-se com a rede de
relações na qual "o intelectual,
homem público, suas falas e suas
peças tornaram-se significativas e
produziram efeitos decisivos na
história de nossa cultura". Essa
rede era constituída pelos modernistas tardios "que tentavam
construir a arte nacional moderna
amparados direta ou indiretamente pelo Estado Novo e fizeram do
polêmico dramaturgo uma espécie de musa do teatro sério". Seu
tema, então, transformou-se num
problema de extremo interesse e
dele trata a parte principal do livro.
Por outro lado, a pesquisa revelou uma série de entrevistas realizadas por Daniel Caetano em 1946
com a gente de teatro: atores-empresários como Bibi Ferreira, críticos como Pompeu de Sousa e
dramaturgos como Joraci Camargo e o próprio Nelson Rodrigues.
Este material precioso é a outra
parte do livro e constitui revelador
flagrante das preocupações e
apostas do teatro profissional
num momento de transição em
que o imperativo moderno parecia incontornável.
Por imperativo moderno entendia-se "teatro sério", também sinônimo de arte, e em seu nome
combatiam-se as diversas modalidades da comédia que então desfrutavam de grande popularidade.
Objeto de quase unânime abominação era a chanchada e, pelo visto, a campanha contra ela foi tão
eficaz que um de seus praticantes
(Cazarré) quase pede perdão por
isso, prometendo "subir" o nível.
Alda Garrido, representante do
que todos, inclusive o jornalista
Daniel Caetano, consideravam o
fim da linha, nem sequer chegou a
ser entrevistada.
Quanto ao "teatro sério", definido segundo os padrões internacionais, só era praticado por amadores. Estes faziam parte da elite
econômica e intelectual e, ao mesmo tempo que desprezavam os caminhos que levavam o teatro profissional ao grande público, contavam com as relações privilegiadas
nos bastidores do Estado Novo,
sobretudo no Ministério da Cultura e no Serviço Nacional de Teatro, criado por Getúlio, que os levariam aos cofres públicos.
Para estes militantes do alto nível, conforme o nosso autor, cultura continuava sendo, como tradicionalmente tem sido para as
nossas classes dominantes, um
conjunto de informações e práticas importadas às quais só esses
seres superiores têm acesso em
primeira mão, de modo que, numa perspectiva "democrática",
sua tarefa modernizante, a ser assumida também pelo Estado, seria
difundir suas novidades para a
plebe ignara, ou o restante da população.
Para cumprir essa verdadeira
missão (muito parecida com a de
Anchieta, acrescentaríamos), era
relativamente indiferente o caráter ditatorial do governo que os
deveria apoiar, bem como irrelevante o fato de que as subvenções
solicitadas e obtidas por meio de
trocas de favores e outros privilégios correspondessem a seguidos
atentados aos regulamentos das
subvenções. Aliás, esclarece o autor que, ao contrário do que reza
um certo consenso sobre as intervenções do Estado Novo na cultura, o SNT não patrocinava o teatro
de revista e, entre as companhias
de comédia, só obtinham subsídios os casos que envolvessem
amizades pessoais. Não custa lembrar que o SNT fora criado para
"fomentar" o "teatro nacional".
O autor demonstra que estava
em andamento, com o estímulo
estatal à atuação do grupo Os Comediantes, a criação de um segmento "premium" nesse mercado (para usar um termo do jargão
econômico), até porque, segundo
a percepção dos mais atentos, já
havia público (de formação universitária) para um teatro mais
exigente. Como ele se refere ao fato de que o TBC se transformou
em padrão de qualidade por seu
sucesso de público e legitimação
intelectual, podemos acrescentar
que a bem-sucedida profissionalização dessa companhia em São
Paulo é a prova empírica do seu
argumento.
No capítulo dedicado à análise
do discurso de alguns críticos e
empresários da época, encontramos alguns ingredientes que também ajudam a entender mais uma
das razões do prestígio entre nós
do modelo americano, que não
dependeu apenas da inegável qualidade da dramaturgia de um Eugene O'Neill, para ficar só num
exemplo conhecido. Em primeiro
lugar, pela clara defesa dos pressupostos do livre mercado (contra
qualquer interferência do Estado,
que vinha favorecendo a concorrência desleal ao patrocinar trabalhos destinados a uma elite), de
preferência segundo o padrão
americano que àquela altura incluía até a comercialização das
opiniões da crítica especializada e
depois, no caso dos nossos críticos, por um conhecimento de causa politicamente produzido: o Departamento de Estado americano
tratara de levá-los aos EUA para
ver de perto os mecanismos de
funcionamento de seu teatro.
E já que estamos falando em
providências diretamente governamentais, também se encontra
neste livro a informação de que a
companhia de Louis Jouvet permaneceu no Rio de Janeiro a convite do governo brasileiro. De modo que, com os materiais dessa
pesquisa, já podemos trabalhar
com informações históricas: também a introdução do teatro moderno no Brasil foi assunto de política internacional.
Segundo a tese foucaultiana de
que o poder não apenas reprime,
mas também produz campos de
objetos e rituais de verdade, o livro demonstra que a rede que
adotou Nelson Rodrigues como a
sua "musa carrancuda" é ela
mesma expressão do modo como
sempre se comportaram as nossas
elites no plano da cultura: usando
como álibi a ignorância e o analfabetismo (sobre os quais elas não
têm nenhuma responsabilidade),
levantam a bandeira da "melhora" do nível em geral de modo a
justificar o recurso ao dinheiro
público; a operação normalmente
dá certo ao preço da expulsão de
práticas e repertórios que a duras
penas vinham se constituindo;
quando o novo padrão se estabiliza, isto é, envelhece, aparece uma
nova geração com o mesmo discurso e a mesma proposta devidamente atualizados. Este último argumento já é uma inferência, mas
devidamente autorizada pelo livro.
A OBRA
A Musa Carrancuda - Victor
Hugo Adler Pereira. Ed. da Fundação Getúlio Vargas (praia de
Botafogo, 190, 6º andar, CEP
22253-900, RJ, tel.
021/536-9110). 204 págs. R$
27,00.
Iná Camargo Costa é professora no departamento de teoria literária e literatura comparada
da USP e autora, entre outros, de "A Hora do
Teatro Épico no Brasil" (Graal).
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