São Paulo, domingo, 22 de novembro de 1998

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As inacreditáveis aventuras de Da Ponte

MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas

O abade Lorenzo da Ponte (1749-1838) é hoje conhecido graças aos libretos que escreveu para três grandes óperas de Mozart: "Don Giovanni", "As Bodas de Fígaro" e "Così Fan Tutte". Nestas "Memórias", contudo, sua colaboração com o compositor é tratada apenas de passagem, não ocupando mais do que 3 das 400 e tantas páginas do livro.
Podemos lamentar a ausência de um retrato mais detalhado de Mozart, ou de comentários específicos sobre as obras que renderam a fama póstuma a seu libretista. Mas é que a vida de Da Ponte foi movimentadíssima. Nasceu em Ceneda, pequena cidade na órbita de Veneza. Apesar da origem judaica, tornou-se seminarista. O título de abade, comum no século 18, não se refere necessariamente a quem vive num mosteiro, mas também a quem abandonou a carreira eclesiástica. Foi o caso de Da Ponte.
Ele vai para Veneza. "Estando na plenitude da mocidade, de temperamento vivo e, conforme diziam, de boa aparência, deixei-me levar pelos costumes, pela oportunidade e pelo exemplo na direção dos prazeres, esquecendo quase por completo a literatura e o estudo." Começam as suas aventuras.
Um gondoleiro encontra-o num café. Leva-o até um canal próximo. Uma mulher mascarada está à sua espera. Da Ponte julga estar encontrando a bela veneziana por quem estava apaixonado. Não. Era uma nobre napolitana precisando de ajuda. O pai queria casá-la com um velho horroroso. A madrasta ameaçava prendê-la num convento. Da Ponte apaixona-se pela pobre moça. Mas não deixa de estar apaixonado pela veneziana. Hesita. É ameaçado de morte. A fugitiva napolitana é sequestrada pela Inquisição.
Logo o próprio Da Ponte será perseguido. A seus alunos de latim e de italiano propõe como tema de redação uma questão tida como perigosa, bem ao gosto do século das Luzes: "Se o homem alcança a felicidade vivendo em sociedade ou se pode reputar-se mais feliz em estado natural". Termina indo a julgamento e sendo condenado.
Os eventos se sucedem com tanta rapidez que estas "Memórias" se tornam fáceis de ler e difíceis de resumir. Dívidas de jogo, amantes, golpes de sorte, cabalas dos invejosos, acidentes de carruagem, fugas, banquetes e noites ao relento se alternam vertiginosamente e são narrados com imperturbável bom humor.
É possível que tanta turbulência esteja a revelar, no fundo, não o destino pessoal de Da Ponte, mas uma instabilidade de condição social que torna sua autobiografia bastante semelhante à de outros escritores do século. Voltaire e Rousseau, em que pesem todas as suas diferenças de temperamento e de estilo, têm muito em comum com Da Ponte na sua luta pela proteção dos poderosos, nas incontáveis traições de que são vítimas, nas inimizades que contraem. Inveja, intriga, favoritismos, dependência material e independência de espírito são os fatores que determinam a vida desses literatos numa época de transição da sociedade de corte para o mundo da esfera pública burguesa.
É exemplar, nesse aspecto, a trajetória de Da Ponte. Vive um período de relativa tranquilidade como poeta da corte de José 2º, em Viena. É então que escreve os libretos para as óperas de Mozart; afirma que foi graças a sua intervenção junto ao imperador que "As Bodas de Fígaro", texto baseado numa peça "subversiva" de Beaumarchais, pôde ser encenado.
Com a morte do imperador, entretanto, Da Ponte perde qualquer regalia. Cogita -em plena Revolução Francesa- buscar proteção na corte de Luís 16. Por sorte, segue o conselho de ninguém menos do que Giacomo Casanova, de quem era amigo e credor, e ruma para Londres.
Lá não encontra mais protetores nobres: o mundo do teatro e da ópera já se estrutura segundo o modelo burguês, com venda de assinaturas para espetáculos e esquemas de financiamento privado. A vida do abade não se torna mais fácil com isto. Agiotas, promissórias, calotes e, por fim, ameaças de prisão -enquanto prosseguem as brigas entre cantoras, compositores, diretores teatrais- infernizam nosso herói, que a cada página protesta incansavelmente sua inocência, sua credulidade, sua boa-fé.
Terminamos desconfiando um pouco dele. Vitimado pelas mais terríveis vilanias, Da Ponte foge para os Estados Unidos. Já estava com quase 60 anos. Não se espere do autor nenhum retrato da sociedade americana nas primeiras décadas do século 19. Da Ponte estava tão tomado pelas próprias dificuldades de dinheiro, tinha tantas acusações a fazer contra seus inimigos que não dispõe do ócio necessário para esse tipo de observação.
Dedica-se ao comércio de víveres; fracassa. Como livreiro, vai à falência e se recupera algumas vezes. Torna-se também professor de italiano, gabando-se de ter introduzido na América do Norte os principais nomes da literatura de seu país. No fim da vida, foi nomeado professor da Universidade de Columbia e tem a alegria de ver a primeira apresentação de seu "Don Giovanni" em Nova York.
Mas é como se, nesse período americano, Da Ponte já estivesse sobrevivendo a si mesmo. O mundo era outro; o aventureiro de Veneza, o cortesão brilhante de Viena não mais existiam. Da Ponte já tinha passado para a história. Às voltas com hipotecas e credores, não parece ter tempo para aperceber-se disso. Sua imensa vitalidade, que confere tanto colorido à primeira metade do livro, submerge (e com ela o interesse do leitor) diante de tantos problemas financeiros.
Não faz mal. A graça, o ímpeto, as aventuras inacreditáveis de Da Ponte são o que fica na nossa lembrança, depois de fechado o livro. Não estamos mais diante daquele que foi "apenas" o libretista de Mozart, mas de um homem fascinante, a representar de corpo inteiro a comédia e o drama de seu tempo.

A OBRA

Memórias - Lorenzo da Ponte. Tradução de Vera Horn. Ed. Lacerda (r. Dona Mariana, 205, casa 1, CEP 22280-020, RJ, tel. 021/537-8275). 432 págs. R$ 36,00.



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