|
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
As inacreditáveis aventuras de Da Ponte
MARCELO COELHO
da Equipe de Articulistas
O abade Lorenzo da Ponte
(1749-1838) é hoje conhecido graças aos libretos que escreveu para
três grandes óperas de Mozart:
"Don Giovanni", "As Bodas de
Fígaro" e "Così Fan Tutte". Nestas "Memórias", contudo, sua
colaboração com o compositor é
tratada apenas de passagem, não
ocupando mais do que 3 das 400 e
tantas páginas do livro.
Podemos lamentar a ausência de
um retrato mais detalhado de Mozart, ou de comentários específicos sobre as obras que renderam a
fama póstuma a seu libretista. Mas
é que a vida de Da Ponte foi movimentadíssima. Nasceu em Ceneda, pequena cidade na órbita de
Veneza. Apesar da origem judaica,
tornou-se seminarista. O título de
abade, comum no século 18, não
se refere necessariamente a quem
vive num mosteiro, mas também a
quem abandonou a carreira eclesiástica. Foi o caso de Da Ponte.
Ele vai para Veneza. "Estando
na plenitude da mocidade, de temperamento vivo e, conforme diziam, de boa aparência, deixei-me
levar pelos costumes, pela oportunidade e pelo exemplo na direção
dos prazeres, esquecendo quase
por completo a literatura e o estudo." Começam as suas aventuras.
Um gondoleiro encontra-o num
café. Leva-o até um canal próximo. Uma mulher mascarada está à
sua espera. Da Ponte julga estar
encontrando a bela veneziana por
quem estava apaixonado. Não. Era
uma nobre napolitana precisando
de ajuda. O pai queria casá-la com
um velho horroroso. A madrasta
ameaçava prendê-la num convento. Da Ponte apaixona-se pela pobre moça. Mas não deixa de estar
apaixonado pela veneziana. Hesita. É ameaçado de morte. A fugitiva napolitana é sequestrada pela
Inquisição.
Logo o próprio Da Ponte será
perseguido. A seus alunos de latim
e de italiano propõe como tema de
redação uma questão tida como
perigosa, bem ao gosto do século
das Luzes: "Se o homem alcança a
felicidade vivendo em sociedade
ou se pode reputar-se mais feliz
em estado natural". Termina indo
a julgamento e sendo condenado.
Os eventos se sucedem com tanta rapidez que estas "Memórias"
se tornam fáceis de ler e difíceis de
resumir. Dívidas de jogo, amantes, golpes de sorte, cabalas dos invejosos, acidentes de carruagem,
fugas, banquetes e noites ao relento se alternam vertiginosamente e
são narrados com imperturbável
bom humor.
É possível que tanta turbulência
esteja a revelar, no fundo, não o
destino pessoal de Da Ponte, mas
uma instabilidade de condição social que torna sua autobiografia
bastante semelhante à de outros
escritores do século. Voltaire e
Rousseau, em que pesem todas as
suas diferenças de temperamento
e de estilo, têm muito em comum
com Da Ponte na sua luta pela
proteção dos poderosos, nas incontáveis traições de que são vítimas, nas inimizades que contraem. Inveja, intriga, favoritismos, dependência material e independência de espírito são os fatores que determinam a vida desses
literatos numa época de transição
da sociedade de corte para o mundo da esfera pública burguesa.
É exemplar, nesse aspecto, a trajetória de Da Ponte. Vive um período de relativa tranquilidade como poeta da corte de José 2º, em
Viena. É então que escreve os libretos para as óperas de Mozart;
afirma que foi graças a sua intervenção junto ao imperador que
"As Bodas de Fígaro", texto baseado numa peça "subversiva"
de Beaumarchais, pôde ser encenado.
Com a morte do imperador, entretanto, Da Ponte perde qualquer
regalia. Cogita -em plena Revolução Francesa- buscar proteção
na corte de Luís 16. Por sorte, segue o conselho de ninguém menos
do que Giacomo Casanova, de
quem era amigo e credor, e ruma
para Londres.
Lá não encontra mais protetores
nobres: o mundo do teatro e da
ópera já se estrutura segundo o
modelo burguês, com venda de assinaturas para espetáculos e esquemas de financiamento privado. A vida do abade não se torna
mais fácil com isto. Agiotas, promissórias, calotes e, por fim,
ameaças de prisão -enquanto
prosseguem as brigas entre cantoras, compositores, diretores teatrais- infernizam nosso herói,
que a cada página protesta incansavelmente sua inocência, sua credulidade, sua boa-fé.
Terminamos desconfiando um
pouco dele. Vitimado pelas mais
terríveis vilanias, Da Ponte foge
para os Estados Unidos. Já estava
com quase 60 anos. Não se espere
do autor nenhum retrato da sociedade americana nas primeiras décadas do século 19. Da Ponte estava tão tomado pelas próprias dificuldades de dinheiro, tinha tantas
acusações a fazer contra seus inimigos que não dispõe do ócio necessário para esse tipo de observação.
Dedica-se ao comércio de víveres; fracassa. Como livreiro, vai à
falência e se recupera algumas vezes. Torna-se também professor
de italiano, gabando-se de ter introduzido na América do Norte os
principais nomes da literatura de
seu país. No fim da vida, foi nomeado professor da Universidade
de Columbia e tem a alegria de ver
a primeira apresentação de seu
"Don Giovanni" em Nova York.
Mas é como se, nesse período
americano, Da Ponte já estivesse
sobrevivendo a si mesmo. O mundo era outro; o aventureiro de Veneza, o cortesão brilhante de Viena não mais existiam. Da Ponte já
tinha passado para a história. Às
voltas com hipotecas e credores,
não parece ter tempo para aperceber-se disso. Sua imensa vitalidade, que confere tanto colorido à
primeira metade do livro, submerge (e com ela o interesse do
leitor) diante de tantos problemas
financeiros.
Não faz mal. A graça, o ímpeto,
as aventuras inacreditáveis de Da
Ponte são o que fica na nossa lembrança, depois de fechado o livro.
Não estamos mais diante daquele
que foi "apenas" o libretista de
Mozart, mas de um homem fascinante, a representar de corpo inteiro a comédia e o drama de seu
tempo.
A OBRA
Memórias - Lorenzo da Ponte.
Tradução de Vera Horn. Ed. Lacerda (r. Dona Mariana, 205, casa
1, CEP 22280-020, RJ, tel.
021/537-8275). 432 págs. R$
36,00.
Texto Anterior | Próximo Texto | Índice
|