São Paulo, domingo, 22 de dezembro de 2002

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Uma infinita acumulação

Juan José Saer


No livro "A Mesa", escrito de 1967 a 73, o poeta francês Francis Ponge leva às últimas consequências o seu método de aproximações sucessivas de um único objeto


Duas reflexões vêm à tona ao ler a excelente edição brasileira do longo poema-experimento de Francis Ponge, "A Mesa", publicado em versão bilíngue pela editora Iluminuras, a cargo de Ignacio Antonio Neis e Michel Peterson, acompanhada de uma extensa introdução sobre Ponge e de minuciosas considerações sobre a tradução em geral e deste curioso poeta em particular. A primeira dessas reflexões é que, na América Latina, as edições desse tipo são atualmente raras, para não dizer inexistentes, até no âmbito acadêmico. Assinalar sua necessidade para o melhor entendimento do trabalho poético seria uma obviedade. A segunda é que, 50 anos após a publicação de "O Partido das Coisas", livro que marcou a história da poesia francesa e cuja tradução também consta do catálogo da Iluminuras, e passados quase 15 anos desde a morte de seu autor, a obra de Francis Ponge continua a despertar a mesma apaixonada adesão que suscitou nos seus primeiros tempos. Em dezembro de 1944, Sartre a saudou com um artigo famoso: "O Homem e as Coisas". Depois, os trabalhos críticos sobre sua poesia foram se acumulando, tanto na França quanto no exterior, e esta recente contribuição brasileira (que não é a primeira, diga-se de passagem) vem se somar a uma extensa bibliografia. A exigente originalidade de Ponge estimula a reflexão crítica (escreveram sobre ele, entre outros, Pierre Bourdieu, Jacques Derrida, Michel Butor, Julien Gracq), o que tornou sua poesia objeto de análise das mais variadas disciplinas, por inventar virtualmente tudo a partir de zero, como se o trabalho poético não tivesse existido antes dele. Ponge, porém, sempre declarou que sua poesia está profundamente arraigada na tradição francesa. Para quem a desconhece, talvez caiba esclarecer que a virtual totalidade dessa poesia foi escrita em prosa. Francis Ponge nasceu no sul da França, em Montpellier, em 1899, e morreu em Paris em 1988. Publicou seu primeiro poema, um soneto, em 1916, e já em 1922 começaram a sair em pequenas revistas alguns de seus textos mais inovadores, que dois anos mais tarde levariam um crítico agudo a escrever (Ponge tinha apenas 25 anos e ainda não publicara nenhum livro): "Nele assistimos ao raro fenômeno de uma consciência inteiramente artística. Atentando somente à arte e, talvez, a seus próprios impulsos, Ponge revela em suas composições um temperamento, no meu entender, brilhante...". O paciente trabalho literário de Ponge, porém, teve de esperar 20 anos para começar a ser reconhecido em toda a sua importância e originalidade. Assim como outros poetas de sua geração que não pertenciam ao movimento, Char e Artaud, por exemplo, Ponge frequentou os surrealistas e participou de algumas de suas reuniões, chegando até a publicar um texto no primeiro número de "O Surrealismo a Serviço da Revolução", em 1930, mas é evidente que suas buscas poéticas divergem das tentativas dos surrealistas e, por vezes, se opõem radicalmente a elas. Suas coincidências mais duradouras com os surrealistas foram, sobretudo, políticas, no que tange à necessidade de transformação social, mas foi em torno delas que se criou um novo conflito com André Breton, pois, enquanto este simpatizava com o trotskismo, Ponge, que era militante sindical, aderiu ao Partido Comunista francês em 1937. Participou da Resistência e trabalhou com Aragon na imprensa comunista, mas, em 1946, rompeu definitivamente com o partido. Segundo alguns, mais tarde ele se tornou gaullista, mas é evidente que o seu interesse pela militância política decaiu ou, em todo caso, as reflexões sobre o tema se concentraram em sua obra literária. Seria um equívoco, porém, supor que seus extraordinários poemas em prosa são apenas um pretexto para pôr em circulação um humanismo declamatório e aproximativo. Na poesia de Ponge não há lugar para as declarações, as generalidades nem as idéias abstratas, exceto aquelas que são por vezes expostas para serem rebatidas. Seus textos, que sempre tratam de um objeto por vez ("A Cabra", "O Camarão", "A Jarra", "O Sena", "O Sabonete" etc.), de uma coisa, se apresentam, salvo raríssimas exceções, sob duas formas diferentes: como textos fechados, de extensão variada, mas geralmente breve, de meia, uma ou duas páginas, no máximo, ou de textos abertos, acumulativos, esboços superpostos ao longo de meses ou anos, como é o caso de "A Mesa", que foi publicado pela primeira vez em Montreal em 1981 e que reúne anotações, reflexões, aproximações variadas ao objeto "mesa", escritas durante seis anos, entre 21 de novembro de 1967 e 16 de outubro de 1973.

Método acumulativo
"O Sabonete", de 1967, que, ao lado de "A Fábrica do Campo" (1971), constitui para a crítica o ponto alto da produção pelo método acumulativo, contém um volume considerável de fragmentos que tratam desse objeto até então tão banal, e "O Sena", de 1947, embora se apresente sob a forma de um extenso texto em prosa, é na realidade composto de uma série de esboços fragmentários. Esse método não está a salvo de certas críticas: em um inteligente ensaio de homenagem, o poeta e tradutor suíço Philippe Jaccottet sugere que, às vezes, Ponge "se apaixona um pouco pelos seus rascunhos".
Os poemas breves, por seu turno, quase sempre destilam exatidão, sugestão, vivacidade. São pequenos objetos verbais que, desde os anos 30, em plena hegemonia surrealista, Ponge, todas as noites, de volta do trabalho, depois do jantar, construía com suas próprias palavras, como um conspirador fabrica uma bomba. No espaço estritamente delimitado do poema, a coisa ("A Vela", "A Borboleta", "O Pedaço de Carne", "As Árvores Que Se Desfazem no Interior de uma Esfera de Nevoeiro", "O Cigarro" etc.), graças a um magistral ordenamento verbal, é incorporada, pondo-se em evidência um inesperado sistema de relações. Já em 1929, Ponge escrevera um texto intitulado "Sobre a Modificação das Coisas por meio da Palavra".
Ainda que, por momentos, os textos acumulativos possam confirmar a discreta objeção de Jaccottet, é evidente que não têm nada de caprichoso nem de gratuito. A passagem dos textos fechados à acumulação de esboços, anotações e fragmentos dedicados a um mesmo objeto reflete a inevitável obsessão de todo escritor: se cada objeto, por mais simples e familiar que o consideremos, é infinito, é natural que o texto que tente dar conta dele também tenda a sê-lo.
Além de poemas, Ponge deixou numerosos escritos sobre artes plásticas. Braque, particularmente, e Fautrier, entre muitos outros, lhe serviram de inspiração para vários trabalhos. O procedimento empregado nesses escritos é o mesmo utilizado nos poemas. Um quadro ou uma escultura são objetos privilegiados para seus sentidos, sua inteligência e sua vívida retórica.
As obras lhe sugerem as mais inesperadas associações. Fautrier, por exemplo, que foi seu amigo e que costumava acumular sobre a tela grossas camadas de materiais variados, foi comparado por Ponge ao gato que, cavando com as unhas, cobre seus próprios excrementos de terra, areia e ramos. O silêncio carregado de sentido da obra artística encontra nesse explorador sagaz um exegeta de primeira ordem, que não se contenta em aplicar noções abstratas, mas é capaz de revelar suas mais secretas vibrações. Tratadas em pé de igualdade, as coisas e as obras são motivo de indagação, aptas a serem transformadas em texto pelo poeta inconfundível que um dia escreveu: "O mundo mudo é nossa única pátria".

Juan José Saer é escritor e ensaísta argentino, autor de, entre outros, "O Enteado" (ed. Iluminuras) e "Ninguém Nada Nunca" (Cia. das Letras).
Tradução de Sergio Molina.


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