São Paulo, Domingo, 23 de Janeiro de 2000


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Desde o colapso do Plano Real, o Estado perdeu o comando do processo econômico e se tornou refém do capital externo
Brasil flutuante

Paul Singer
especial para a Folha

Todo mundo sabe que o câmbio se tornou flutuante. Mas não foi só o câmbio. O país inteiro passou, desde janeiro do ano passado, a flutuar, ao sabor das vindas e idas dos capitais globais. O Brasil perdeu o seu norte, o Estado não comanda mais o processo econômico, sua política ficou reduzida a atrair os capitais globalizados, a ganhar-lhes a confiança, a preservar sua credibilidade ou, no caso de tê-la perdido, de recuperá-la. Tudo o mais perdeu importância, tornou-se secundário. Essa condição de flutuabilidade geral, o Brasil a adquiriu desde o Plano Real, mas ela só se explicitou, tornando-se dominante, obsessiva, exclusiva, a partir do colapso do real, nos primeiros dias de 1999. O Plano Real, lá nos idos de 1994, pareceu ter feito um milagre: em poucos meses estabilizou os preços, sem interromper a expansão da economia que já vinha do ano anterior. Antes pelo contrário, algo como uma bolha de consumo pôde acontecer ao mesmo tempo em que os preços dos bens importáveis decresciam. O milagre, como todos lembram, foi o efeito fulminante duma enxurrada de importações de automóveis, eletrodomésticos, brinquedos, roupas, comidas e bebidas, cosméticos e tudo o mais que possa despertar a avidez do consumidor. Desde Collor, o mercado interno já vinha sendo aberto às importações, mas o montante das mesmas era limitado ao que a disponibilidade de divisas permitia pagar. A partir de julho de 1994, esse limite foi ao espaço. Entre 1993 e 1997, o valor das importações aumentou 140%. Essa foi a causa do milagre perpetrado pelo Plano Real: pela primeira vez, desde os 1970, o governo decretou o "liberou geral e irrestrito" das importações -daí a freada nos preços dos manufaturados, seguida com certa defasagem pelos dos serviços. E isso só foi possível porque a partir de então o Brasil foi literalmente inundado por capitais externos. Em 1993, tinham entrado (em termos líquidos, já descontada a amortização de débitos anteriores) US$ 10,1 bilhões; no ano seguinte entraram 14,3 bilhões; em 95, 29,4 bilhões; em 96, 32,1 bilhões. O Brasil começou a flutuar a partir dessa época, mas ninguém percebeu porque o movimento parecia ser apenas para cima. É verdade que em março/ abril de 1995 houve um começo de fuga de capitais, rapidamente sustado e revertido mediante elevação da taxa de juros. O crédito foi arrochado, o que fez a bolha de consumo estourar, mas os capitais voltaram e só os entendidos perceberam que o Brasil inteiro estava flutuando sobre as ondas da maré enchente ou vazante do capital globalizado. Nos dois anos e meio seguintes, a política de juros altos, de privatização do setor produtivo estatal e de desnacionalização de grandes bancos conseguiu garantir entradas maciças de capitais externos, apesar dos rombos nas contas externas e do crescimento acelerado das dívidas pública e externa. Para todos os efeitos, o Brasil estava "estabilizado", pois a inflação diminuía de ano para ano e o que mais se poderia querer? Os órgãos de comunicação de massas, com as honrosas exceções de sempre, apresentavam a enxurrada de empréstimos externos, aplicações em portfólio (principalmente nas Bolsas de Valores) e inversões externas diretas como prova da confiança dos investidores globais no país. Na realidade, a política de atração do capital externo estava cavando a própria sepultura: quanto mais dólares entravam no país, mais os brasileiros gastavam com produtos importados que antes eram feitos no país e com juros destinados a remunerar o capital que já entrou e a atrair cada vez mais novos capitais. A cada ano o Brasil devia mais e o que conseguia vender ao resto do mundo era pouquíssimo em relação ao valor do que comprávamos dele, somado às remessas de juros, lucros, dividendos e amortizações.

O teto da bolha
Entre 1995 e 1997, o Brasil exportou 147,2 bilhões de dólares, importou 164,3 bilhões e remeteu ao exterior a título de amortizações 54 bilhões, de juros, 28,4 bilhões e, de lucros e dividendos, 10,6 bilhões. Se adicionarmos 10,4 bilhões de saldos negativos de viagens internacionais, verifica-se que o Brasil nesses três anos pagou ao resto do mundo 267,7 bilhões de dólares e recebeu dele 147,2 bilhões. Para cada dólar que o resto do mundo gastou no Brasil, os brasileiros gastaram US$ 1,82 no resto do mundo. Não surpreende que nesse curto período a dívida externa tenha subido de US$ 159 bilhões para US$ 200 bilhões (todos os dados da "Conjuntura Econômica", dez./ 1999).
Tornava-se cada vez mais evidente que o Brasil estava pagando seus débitos mediante a tomada de novos empréstimos ou a venda de empresas e concessões de serviços públicos. Do ponto de vista do aumento consequente de pagamentos futuros ao resto do mundo, não há muita diferença entre empréstimos, que são vendas de ativos financeiros, e a venda de ativos ditos reais. O rombo no balanço de pagamentos em conta corrente só poderia crescer. Em algum momento a incessante flutuação do Brasil para cima teria que bater em algum teto, como qualquer outra bolha especulativa.
O momento da verdade veio em outubro de 1997, quando o fluxo de capitais globalizados ao Sudeste da Ásia e ao Brasil deu meia-volta e se transformou em fuga, denominada pela imprensa financeira de "fuga para a qualidade". Mais uma vez, o governo brasileiro aumentou desmedidamente a taxa de juros, oferecendo aos capitais em retirada um prêmio de risco verdadeiramente opíparo. E, de contrapeso, prometeu corrigir o déficit das contas públicas mediante a adoção de 51 medidas. O truque funcionou pela segunda vez e os capitais fluíram de volta. Só que dessa vez o êxito da política de atração do capital externo foi de curta duração. Em setembro de 1998, a fuga de capitais recomeçou. De acordo com a mídia, foi tudo culpa da moratória russa, mas essa versão carece de fundamento. Crises em outros "mercados subemergentes" podem ter servido de estopim para o estouro da manada no Brasil, mas a persistência da fuga dos capitais apesar da elevação da taxa de juros, de novos pacotes fiscais e até mesmo duma carta de intenções aprovada pelo FMI (em novembro) só pode ser explicada pela extrema fragilidade financeira causada pela referida política. O que aconteceu nos meses finais de 1998 e em janeiro de 1999 não foi fortuito nem se deveu a erros de política econômica, como a sobrevalorização do real certamente foi. Se a sobrevalorização tivesse sido corrigida antes, os saldos na balança comercial e em viagens internacionais teriam se tornado positivos, o que aliviaria a fragilidade financeira, mas não a resolveria. Entender isso é essencial. Esses saldos atrairiam mais capitais externos ao Brasil exatamente porque um desequilíbrio menos desastroso nas contas externas aumenta a credibilidade do país aos olhos dos aplicadores globais (estamos chamando de aplicadores "globais" tanto os que residem no país como os que residem no resto do mundo, pois suas condutas tendem a se pautar pelos mesmos critérios). O Brasil tornou-se flutuante porque liberou a transferência de capitais para dentro e para fora do país, tornando-a unicamente dependente da cupidez e do medo dos que os administram. Desde o governo Collor, remessas de valores para dentro e para fora do Brasil não estão sujeitas a controles macroeconômicos, ou seja, o Banco Central não exerce nenhuma autoridade direta para impedir que o país se superendivide com o resto do mundo. O Banco Central se limita a manipular os juros e o câmbio para tentar atrair ao Brasil uma quantidade suficiente de capitais para fechar as contas no exercício, sem nenhum compromisso com outras metas, como por exemplo o crescimento do produto e do emprego. No ano que acabou, a flutuabilidade do Brasil ficou visível para quem quis ver. Nossa economia passou por quatro fases de baixa, de alta, de baixa e novamente de alta em apenas 12 meses, tudo graças às saídas e entradas de capitais globalizados. No primeiro trimestre predominou a fuga de capitais, que provocou desvalorização exagerada do real, cujo valor caiu abaixo de meio dólar. O que desencadeou uma onda de péssimos augúrios: inflação alta, recessão forte, muito desemprego. A partir de meados de março, os capitais globalizados começaram a voltar e tudo voltou a florir: o real se valorizou, o que reduziu as temidas pressões inflacionárias e permitiu ao Banco Central diminuir repetidamente a taxa oficial de juros; a Bolsa subiu, o otimismo voltou e a recessão suavizou. Mas a alta não foi longa, e no terceiro trimestre os capitais globalizados voltaram a bater em retirada. Mais uma vez, o dólar bateu nos dois reais, a Bolsa caiu, a pressão inflacionária se acentuou e a recuperação da atividade econômica cessou. Finalmente, de novembro em diante a movimentação dos capitais mudou mais uma vez de rumo: a Bolsa subiu, o dólar caiu, o mesmo acontecendo com a inflação e até com o desemprego.

Dependência externa
O Brasil entrou numa fase de sua história em que a sua economia só vai bem se houver entrada abundante de capitais externos. Se estes se retiram, a moeda nacional tende a se desvalorizar, o que pressiona a inflação para cima, induzindo o Banco Central a elevar a taxa de juros e o governo a cortar seus gastos. Tudo isso é feito para impressionar os gerentes do capital globalizado, convencê-los de que o elevado prêmio de risco oferecido a quem aplicar no Brasil é para valer, isto é, que o governo da União e o Banco Central sacrificarão os interesses dos trabalhadores e dos empresários não-globais (que vendem apenas no mercado interno e não têm sócios no exterior) para produzir saldos nas contas públicas e nas contas externas suficientes para honrar os compromissos com os aplicadores.
A pergunta-chave parece ser a seguinte: é possível impressionar e convencer o tempo todo? Os gerentes do capital globalizado -operadores de bancos, fundos de pensão, fundos de investimento, companhias de seguros etc.- estão sendo objeto de jogos de sedução semelhantes por parte de grande número de governos, tanto de países desenvolvidos como em desenvolvimento, emergentes, subemergentes, em todo caso flutuantes. É verdade que eles dispõem de vastas somas para aplicar e tendem a espalhá-las por diversos países. Além de acompanhar a vida política desses países e suas estatísticas econômicas, o que os gerentes do capital globalizado mais fazem é ouvir opiniões de peritos, consultores e de outros gerentes. Os mais espertos e competentes adivinham o que os outros vão fazer e os antecipam. Deste modo, ganham dinheiro ou deixam de perdê-lo.
A resposta parece ser que o capital globalizado mantém-se plenamente volátil, fluindo para onde o risco e o prêmio ou o medo e a cupidez parecem propícios e fugindo de onde as perspectivas lhe parecem desfavoráveis. Qualquer que seja o palpite, ele sempre dá certo porque, para onde fluem os capitais, as perspectivas se tornam boas e cada vez melhores e, de onde eles fogem, as perspectivas de fato ficam ruins e cada vez piores. De modo que os governos e bancos centrais de países flutuantes como o Brasil não parecem ter capacidade de controlar e nem mesmo influir sobre os capitais globalizados. Estes vão e vêm em rebanho, enquanto governos nacionais como o nosso deliberadamente colocarem o destino econômico de seus países em suas mãos (ou patas).


Paul Singer é economista, professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Foi secretário municipal do Planejamento de São Paulo (gestão Luiza Erundina).


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