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+ economia
Desde o colapso do Plano Real, o Estado perdeu o comando
do processo econômico e se tornou refém do capital externo
Brasil flutuante
Paul Singer
especial para a Folha
Todo mundo sabe que o câmbio se
tornou flutuante. Mas não foi só o
câmbio. O país inteiro passou, desde janeiro do ano passado, a flutuar, ao sabor
das vindas e idas dos capitais globais. O
Brasil perdeu o seu norte, o Estado não
comanda mais o processo econômico,
sua política ficou reduzida a atrair os capitais globalizados, a ganhar-lhes a confiança, a preservar sua credibilidade ou,
no caso de tê-la perdido, de recuperá-la.
Tudo o mais perdeu importância, tornou-se secundário.
Essa condição de flutuabilidade geral, o
Brasil a adquiriu desde o Plano Real, mas
ela só se explicitou, tornando-se dominante, obsessiva, exclusiva, a partir do
colapso do real, nos primeiros dias de
1999. O Plano Real, lá nos idos de 1994,
pareceu ter feito um milagre: em poucos
meses estabilizou os preços, sem interromper a expansão da economia que já
vinha do ano anterior. Antes pelo contrário, algo como uma bolha de consumo pôde acontecer ao mesmo tempo em
que os preços dos bens importáveis decresciam. O milagre, como todos lembram, foi o efeito fulminante duma enxurrada de importações de automóveis,
eletrodomésticos, brinquedos, roupas,
comidas e bebidas, cosméticos e tudo o
mais que possa despertar a avidez do
consumidor.
Desde Collor, o mercado interno já vinha sendo aberto às importações, mas o
montante das mesmas era limitado ao
que a disponibilidade de divisas permitia
pagar. A partir de julho de 1994, esse limite foi ao espaço. Entre 1993 e 1997, o
valor das importações aumentou 140%.
Essa foi a causa do milagre perpetrado
pelo Plano Real: pela primeira vez, desde
os 1970, o governo decretou o "liberou
geral e irrestrito" das importações -daí
a freada nos preços dos manufaturados,
seguida com certa defasagem pelos dos
serviços.
E isso só foi possível porque a partir de
então o Brasil foi literalmente inundado
por capitais externos. Em 1993, tinham
entrado (em termos líquidos, já descontada a amortização de débitos anteriores) US$ 10,1 bilhões; no ano seguinte entraram 14,3 bilhões; em 95, 29,4 bilhões;
em 96, 32,1 bilhões. O Brasil começou a
flutuar a partir dessa época, mas ninguém percebeu porque o movimento
parecia ser apenas para cima. É verdade
que em março/ abril de 1995 houve um
começo de fuga de capitais, rapidamente
sustado e revertido mediante elevação da
taxa de juros. O crédito foi arrochado, o
que fez a bolha de consumo estourar,
mas os capitais voltaram e só os entendidos perceberam que o Brasil inteiro estava flutuando sobre as ondas da maré enchente ou vazante do capital globalizado.
Nos dois anos e meio seguintes, a política de juros altos, de privatização do setor produtivo estatal e de desnacionalização de grandes bancos conseguiu garantir entradas maciças de capitais externos, apesar dos rombos nas contas externas e do crescimento acelerado das dívidas pública e externa. Para todos os efeitos, o Brasil estava "estabilizado", pois a
inflação diminuía de ano para ano e o
que mais se poderia querer? Os órgãos de
comunicação de massas, com as honrosas exceções de sempre, apresentavam a
enxurrada de empréstimos externos,
aplicações em portfólio (principalmente
nas Bolsas de Valores) e inversões externas diretas como prova da confiança dos
investidores globais no país.
Na realidade, a política de atração do
capital externo estava cavando a própria
sepultura: quanto mais dólares entravam no país, mais os brasileiros gastavam com produtos importados que antes eram feitos no país e com juros destinados a remunerar o capital que já entrou e a atrair cada vez mais novos capitais. A cada ano o Brasil devia mais e o
que conseguia vender ao resto do mundo era pouquíssimo em relação ao valor
do que comprávamos dele, somado às
remessas de juros, lucros, dividendos e
amortizações.
O teto da bolha
Entre 1995 e 1997, o
Brasil exportou 147,2 bilhões de dólares,
importou 164,3 bilhões e remeteu ao exterior a título de amortizações 54 bilhões,
de juros, 28,4 bilhões e, de lucros e dividendos, 10,6 bilhões. Se adicionarmos
10,4 bilhões de saldos negativos de viagens internacionais, verifica-se que o
Brasil nesses três anos pagou ao resto do
mundo 267,7 bilhões de dólares e recebeu dele 147,2 bilhões. Para cada dólar
que o resto do mundo gastou no Brasil,
os brasileiros gastaram US$ 1,82 no resto
do mundo. Não surpreende que nesse
curto período a dívida externa tenha subido de US$ 159 bilhões para US$ 200 bilhões (todos os dados da "Conjuntura
Econômica", dez./ 1999).
Tornava-se cada vez mais evidente que
o Brasil estava pagando seus débitos mediante a tomada de novos empréstimos
ou a venda de empresas e concessões de
serviços públicos. Do ponto de vista do
aumento consequente de pagamentos
futuros ao resto do mundo, não há muita
diferença entre empréstimos, que são
vendas de ativos financeiros, e a venda de
ativos ditos reais. O rombo no balanço
de pagamentos em conta corrente só poderia crescer. Em algum momento a incessante flutuação do Brasil para cima teria que bater em algum teto, como qualquer outra bolha especulativa.
O momento da verdade veio em outubro de 1997, quando o fluxo de capitais
globalizados ao Sudeste da Ásia e ao Brasil deu meia-volta e se transformou em
fuga, denominada pela imprensa financeira de "fuga para a qualidade".
Mais uma vez, o governo brasileiro aumentou desmedidamente a taxa de juros, oferecendo aos capitais em retirada
um prêmio de risco verdadeiramente
opíparo. E, de contrapeso, prometeu
corrigir o déficit das contas públicas mediante a adoção de 51 medidas. O truque
funcionou pela segunda vez e os capitais
fluíram de volta.
Só que dessa vez o êxito da política de
atração do capital externo foi de curta
duração. Em setembro de 1998, a fuga de
capitais recomeçou. De acordo com a
mídia, foi tudo culpa da moratória russa,
mas essa versão carece de fundamento.
Crises em outros "mercados subemergentes" podem ter servido de estopim
para o estouro da manada no Brasil, mas
a persistência da fuga dos capitais apesar
da elevação da taxa de juros, de novos
pacotes fiscais e até mesmo duma carta
de intenções aprovada pelo FMI (em novembro) só pode ser explicada pela extrema fragilidade financeira causada pela referida política.
O que aconteceu nos meses finais de
1998 e em janeiro de 1999 não foi fortuito
nem se deveu a erros de política econômica, como a sobrevalorização do real
certamente foi. Se a sobrevalorização tivesse sido corrigida antes, os saldos na
balança comercial e em viagens internacionais teriam se tornado positivos, o
que aliviaria a fragilidade financeira, mas
não a resolveria. Entender isso é essencial. Esses saldos atrairiam mais capitais
externos ao Brasil exatamente porque
um desequilíbrio menos desastroso nas
contas externas aumenta a credibilidade
do país aos olhos dos aplicadores globais
(estamos chamando de aplicadores "globais" tanto os que residem no país como
os que residem no resto do mundo, pois
suas condutas tendem a se pautar pelos
mesmos critérios).
O Brasil tornou-se flutuante porque liberou a transferência de capitais para
dentro e para fora do país, tornando-a
unicamente dependente da cupidez e do
medo dos que os administram. Desde o
governo Collor, remessas de valores para
dentro e para fora do Brasil não estão sujeitas a controles macroeconômicos, ou
seja, o Banco Central não exerce nenhuma autoridade direta para impedir que o
país se superendivide com o resto do
mundo. O Banco Central se limita a manipular os juros e o câmbio para tentar
atrair ao Brasil uma quantidade suficiente de capitais para fechar as contas no
exercício, sem nenhum compromisso
com outras metas, como por exemplo o
crescimento do produto e do emprego.
No ano que acabou, a flutuabilidade do
Brasil ficou visível para quem quis ver.
Nossa economia passou por quatro fases
de baixa, de alta, de baixa e novamente
de alta em apenas 12 meses, tudo graças
às saídas e entradas de capitais globalizados. No primeiro trimestre predominou
a fuga de capitais, que provocou desvalorização exagerada do real, cujo valor caiu
abaixo de meio dólar. O que desencadeou uma onda de péssimos augúrios:
inflação alta, recessão forte, muito desemprego.
A partir de meados de março, os capitais globalizados começaram a voltar e
tudo voltou a florir: o real se valorizou, o
que reduziu as temidas pressões inflacionárias e permitiu ao Banco Central diminuir repetidamente a taxa oficial de juros; a Bolsa subiu, o otimismo voltou e a
recessão suavizou. Mas a alta não foi longa, e no terceiro trimestre os capitais globalizados voltaram a bater em retirada.
Mais uma vez, o dólar bateu nos dois
reais, a Bolsa caiu, a pressão inflacionária
se acentuou e a recuperação da atividade
econômica cessou. Finalmente, de novembro em diante a movimentação dos
capitais mudou mais uma vez de rumo: a
Bolsa subiu, o dólar caiu, o mesmo acontecendo com a inflação e até com o desemprego.
Dependência externa
O Brasil entrou numa fase de sua história em que a
sua economia só vai bem se houver entrada abundante de capitais externos. Se
estes se retiram, a moeda nacional tende
a se desvalorizar, o que pressiona a inflação para cima, induzindo o Banco Central a elevar a taxa de juros e o governo a
cortar seus gastos. Tudo isso é feito para
impressionar os gerentes do capital globalizado, convencê-los de que o elevado
prêmio de risco oferecido a quem aplicar
no Brasil é para valer, isto é, que o governo da União e o Banco Central sacrificarão os interesses dos trabalhadores e dos
empresários não-globais (que vendem
apenas no mercado interno e não têm
sócios no exterior) para produzir saldos
nas contas públicas e nas contas externas
suficientes para honrar os compromissos com os aplicadores.
A pergunta-chave parece ser a seguinte: é possível impressionar e convencer o
tempo todo? Os gerentes do capital globalizado -operadores de bancos, fundos de pensão, fundos de investimento,
companhias de seguros etc.- estão sendo objeto de jogos de sedução semelhantes por parte de grande número de governos, tanto de países desenvolvidos
como em desenvolvimento, emergentes,
subemergentes, em todo caso flutuantes.
É verdade que eles dispõem de vastas somas para aplicar e tendem a espalhá-las
por diversos países. Além de acompanhar a vida política desses países e suas
estatísticas econômicas, o que os gerentes do capital globalizado mais fazem é
ouvir opiniões de peritos, consultores e
de outros gerentes. Os mais espertos e
competentes adivinham o que os outros
vão fazer e os antecipam. Deste modo,
ganham dinheiro ou deixam de perdê-lo.
A resposta parece ser que o capital globalizado mantém-se plenamente volátil,
fluindo para onde o risco e o prêmio ou o
medo e a cupidez parecem propícios e
fugindo de onde as perspectivas lhe parecem desfavoráveis. Qualquer que seja
o palpite, ele sempre dá certo porque, para onde fluem os capitais, as perspectivas
se tornam boas e cada vez melhores e, de
onde eles fogem, as perspectivas de fato
ficam ruins e cada vez piores. De modo
que os governos e bancos centrais de países flutuantes como o Brasil não parecem ter capacidade de controlar e nem
mesmo influir sobre os capitais globalizados. Estes vão e vêm em rebanho, enquanto governos nacionais como o nosso deliberadamente colocarem o destino
econômico de seus países em suas mãos
(ou patas).
Paul Singer é economista, professor titular da Faculdade de Economia e Administração da USP e pesquisador do Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento). Foi secretário municipal do Planejamento de
São Paulo (gestão Luiza Erundina).
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