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+ brasil 500 d.C.
Afirmar que os holandeses implantaram o
sistema açucareiro no Brasil do século 16 é uma
interpretação equivocada da história
Uma questão de nuança
Evaldo Cabral de Mello
Em declarações à revista "Uapê",
do Rio de Janeiro, tive recentemente a ocasião de fazer um ou
dois reparos à obra de Celso Furtado, "Formação Econômica do Brasil".
Como as entrevistas não se prestam ao
debate de nuanças, e como para o leitor
brasileiro a questão de que nos vamos
ocupar é uma questão de nuanças, permito-me voltar ao assunto com vagar.
Segundo Celso Furtado, "a contribuição
dos flamengos -particularmente dos
holandeses- para a grande expansão do
mercado do açúcar na segunda metade
do século 16 constitui um fator fundamental do êxito da colonização do Brasil.
Especializados no comércio intra-europeu, grande parte do qual financiavam,
os holandeses eram nessa época o único
povo que dispunha de suficiente organização comercial para criar um mercado
de grandes dimensões para um produto
praticamente novo, como era o açúcar".
Destarte, o mercado internacional do
açúcar e a implantação do sistema açucareiro no Nordeste teriam sido criação de
capitais holandeses.
Tal afirmação resulta de um equívoco e
de um anacronismo. O equívoco consiste em confundir o papel de Antuérpia ao
longo do século 16 com o que será desempenhado por Amsterdã ao longo do
17. O anacronismo reside em retroceder
para o século 16 o que só veio a ocorrer
no seguinte, isto é, a participação de capitais da República das Províncias Unidas dos Países Baixos na comercialização
do produto, os quais eram, na realidade,
capitais de flamengos e brabantinos e de
cristãos-novos de origem portuguesa,
ambos grupos refugiados em Amsterdã
a partir do derradeiro decênio do século
16.
Para começar, existe, um problema de
palavras e essas são vitais nesse contexto.
Celso Furtado utilizou a palavra "flamengos", que designa os naturais de
Flandres, região da atual Bélgica, para
designar também os "holandeses", então
os naturais da Holanda, que originalmente não correspondia ao conjunto
dos Países Baixos, como ocorre atualmente, mas apenas à principal província
dos Países Baixos do norte. A identificação ainda podia ser válida para a primeira metade do século 16, mas não o era para a segunda, devido à revolta dos Países
Baixos do norte, a Holanda atual, contra
a Espanha. Ora, foi nessa segunda metade, não na primeira, que o sistema açucareiro do Nordeste verdadeiramente deslanchou.
É verdade que, até o século 17, portugueses e espanhóis tinham o costume de
designar também como "flamengos" todos os naturais dos Países Baixos do norte, mas é óbvio que, se queremos destrinçar o tema da fundação da agroindústria
açucareira no Brasil, a primeira providência consiste em distingui-los cuidadosamente, de vez que eles eram súditos
de diferentes entidades estatais, os holandeses, das Províncias Unidas dos Países Baixos; os flamengos, dos chamados
Países Baixos espanhóis ou "províncias
obedientes".
O negócio-mãe
Feita a distinção, caberia lembrar que, no século 16, a especialização dos holandeses no comércio
intra-europeu era bem inferior ao que
supôs Celso Furtado. Ao longo de Quinhentos, a Holanda e sua principal cidade comercial, Amsterdã, dominavam basicamente o que eles mesmos chamavam
o "moeder negotie", o negócio-mãe, vale
dizer, o comércio do Báltico com a Europa do norte, inclusive o litoral da península ibérica. A essa Europa atlântica, os
holandeses traziam o trigo e as madeiras
do Báltico e o pescado do mar do Norte,
adquirindo em troca o vinho, o sal e, ademais em Lisboa, as especiarias do Oriente. No tocante a seu consumo de açúcar,
eles se aprovisionavam também em Lisboa ou em Antuérpia.
Na realidade, para a expansão do mercado do açúcar na segunda metade do
século 16 não contribuíram os holandeses; e por uma razão bem simples, a de
que não se haviam engajado nessa atividade. Quem sobretudo contribuiu para
essa expansão nesse período foram os
flamengos, melhor seria dizer, o grande
comércio de Antuérpia, principal centro
mercantil dos Países Baixos espanhóis,
que, grosso modo, correspondem ao que
é hoje a Bélgica. Como há muito assinalou J.G. van Dillen, em Quinhentos, enquanto Antuérpia funcionava como o
entreposto europeu de especiarias e de
açúcar, Amsterdã operava como o entreposto de cereais e de madeira oriundos
do Báltico e do mar do Norte.
Graças ao historiador Eddy Stols, são
bem conhecidas as relações comerciais
entre os flamengos, a península ibérica e
a América hispano-portuguesa. Capitais
flamengos, não holandeses, haviam participado em fins do século 15, começos
do 16, da instalação do sistema açucareiro da Ilha da Madeira, em concorrência,
aliás, com capitais florentinos. No Brasil
de Quinhentos, pode-se também detectar, e já Stols o fez, a presença desses flamengos, a começar do célebre engenho
dos Erasmos, em São Vicente, e, na segunda metade da centúria, nas capitanias açucareiras do Nordeste. Nada, porém, que possa ser considerado atuação
dominante.
Em Madri temia-se que esses flamengos, malgrado serem súditos de Sua Majestade Católica, servissem de quintas-colunas aos holandeses, que, como rebeldes, eram objetos de periódicos embargos em portos ibéricos e que, em todo
o caso, estavam proibidos de viajarem às
colônias. Como indicou Stols, os holandeses contaram efetivamente com certa
cumplicidade flamenga na costa do Brasil, no período 1590-1620, no tocante ao
corso e ao contrabando de pau-brasil nas
capitanias de baixo, mas no Nordeste a
coisa era diferente, devido à presença de
maior poder militar hispano-português
na Bahia e em Pernambuco.
Mesmo a referência aos flamengos
contém apenas uma parte da verdade.
Durante a primeira metade de Quinhentos, Antuérpia, principal entreposto flamengo, não Amsterdã, principal entreposto holandês, tornou-se o grande mercado do açúcar na Europa, não só devido
ao interesse dos flamengos por essa atividade, mas também à participação dos
cristãos-novos portugueses, muitos dos
quais se haviam domiciliado ali e em outras cidades do norte da Europa, como
Hamburgo, Colônia, Rouen ou Bordeaux, para fugir à perseguição do Santo
Ofício. Sendo Antuérpia o centro do comércio português das especiarias, passara naturalmente a desempenhar o mesmo papel no tocante ao açúcar.
Já em "Os Judeus e o Capitalismo Moderno", Sombart assinalou a atuação
desses sefarditas exilados na instalação
da indústria açucareira no Brasil. Por nacionalismo mal-entendido, o historiador
português João Lúcio de Azevedo se insurgiu contra Sombart, pretendendo que
entre nós tudo se devera, numa fórmula
simplista, "aos donatários e às instigações do governo de Lisboa", sem esclarecer, porém, de onde viriam os capitais
para fazer medrar tais iniciativas. Introduzir uma cultura é bem diferente de fazê-la prosperar, sobretudo a cultura da
cana-de-açúcar, que implicava equipamento industrial e requeria, portanto,
vultosos investimentos para a época, como indica a experiência de Duarte Coelho, que, ao falecer em 1554, deixou apenas cinco fábricas na sua donatária de
Pernambuco.
Desde a publicação, há quase cem
anos, da obra de Sombart, a pesquisa histórica só tem confirmado o que ele sugerira sobre a ação dos judeus, digamos
com exatidão, dos cristãos-novos portugueses, na expansão do açúcar brasileiros. Modificando, portanto, os termos
em que Celso Furtado colocou o problema, pareceria mais correto escrever que
"a contribuição dos flamengos e dos cristãos-novos portugueses para a grande
expansão do mercado do açúcar na segunda metade do século 16 constitui um
fator fundamental do êxito da colonização do Brasil".
Mas em que ficam os holandeses nisso
tudo? No papel de beneficiários, mas já
no século 17, do sistema mercantil montado em Antuérpia, graças ao círculo virtuoso que se fez sentir na economia neerlandesa desde os derradeiros anos do século 16. A arrancada que produzirá o Século de Ouro, Rembrandt e companhia,
inclusive o que já se chamou "a primeira
economia moderna", data dos anos 90
de Quinhentos. Foi só a partir de então
que o comércio holandês tornou-se verdadeiramente intra-europeu.
A essa altura, porém, já tivera lugar o
surto do açúcar brasileiro -que começara nos anos 70, por conseguinte sem a
participação de capitais holandeses, embora certamente de capitais flamengos e
sefarditas.
É sabido que Amsterdã herdou a fortuna histórica de Antuérpia. Esta, que aderira por alguns anos à revolta dos Países
Baixos do norte contra a Espanha, foi reconquistada em 1585 pelo Exército espanhol, o que causou uma imigração maciça de capitais flamengos e sefarditas para
Amsterdã. Não se trata, portanto, de
coincidência se data também dos mesmos anos 90 a fundação da primeira sinagoga de Amsterdã, graças inclusive
aos esforços de um cristão-novo, Jaime
Lopes, que enriquecera em Pernambuco
como senhor de engenho e comerciante
de açúcar.
Afinal de contas, quando os holandeses começaram efetivamente a participar
do comércio do açúcar brasileiro? É revelador que Engel Sluiter, que, como Celso
Furtado, tendeu a colocar flamengos e
holandeses no mesmo saco, só veio a encontrar em 1587 o primeiro sinal da presença de embarcação holandesa, uma
urca de Vlissingen (Zelândia), carregando açúcar no litoral brasileiro, embora
fretada por mercador alemão. O mesmo
Sluiter declarou haver detectado mais de
cem casos de navios holandeses no comércio de transporte do Brasil no período 1587-1599, sem discriminá-los.
Mas a publicação, por J.A. Gonsalves
de Mello, dos livros das saídas das urcas
do porto do Recife (1595-1605), veio indicar que, das 34 urcas que neste período
levantaram âncora do Recife, nenhuma
se originava de porto neerlandês, como,
aliás, era de esperar em decorrência do
embargo da Coroa espanhola contra
seus ex-súditos da República das Províncias Unidas dos Países Baixos. Todas
procediam de Hamburgo e excepcionalmente de Antuérpia ou Lübeck. De regresso à Europa, elas seguiram na maioria para Antuérpia, só em alguns casos
para portos holandeses como Amsterdã.
Quanto aos carregadores e consignatórios, quase todos são nomes portugueses
ou sefarditas, e minoritariamente flamengos ou holandeses, distinção difícil
de fazer devido à comunidade linguística
entre ambos. Por conseguinte, essas embarcações, mesmo na hipótese de haverem sido holandesas (mas a urca não
constituía tipo de embarcação exclusivamente holandês, sendo empregado em
toda a Europa do norte) teriam sido fretadas por não-holandeses, prática comum na época devido a que a Holanda
oferecia os fretes mais baixos da Europa.
Os carregamentos de açúcar, portanto,
não pertenciam nem se destinavam a
mercadores holandeses. Diga-se, aliás,
em favor de Sluiter, que ele não foi o único a cair na armadilha. Braudel, por
exemplo, acreditou que a maciça presença de navios holandeses no Mediterrâneo a partir de finais de Quinhentos significara o domínio pela Holanda do comércio de cereais para a Itália, quando os
documentos vieram mostrar que os comerciantes de Gênova, de Veneza e da
Toscana continuaram a controlar este
setor, limitando-se a fretar embarcações
neerlandesas.
Foi somente no decurso da trégua hispano-holandesa dos 12 anos (1609-1621)
que, como se vê de uma representação de
homens de negócio holandeses de 1622,
citada por C.R. Boxer, os holandeses entraram no negócio do transporte de açúcar do Brasil, de que alegavam dominar,
naqueles anos, entre metade e dois terços
do seu volume, graças à cumplicidade de
testas-de-ferro portugueses. Mas o documento não faz o essencial, vale dizer, não
distingue entre dominar o transporte e
dominar o comércio dos produtos transportados. Este último continuava provavelmente sob o controle de flamengos e
cristãos-novos de Antuérpia domiciliados agora na Holanda, sabidamente liberal no tocante à concessão da naturalidade e da autorização de residência em seu
território. Caberia assinalar ademais que
a afirmação citada por Boxer diz respeito
ao período em que a expansão açucareira no Brasil já dava mostras de esgotamento.
A ausência holandesa
Os estudos
mais recentes de história econômica
neerlandesa permitem concluir pela ausência holandesa no comércio de açúcar
brasileiro ao longo de Quinhentos. Jonathan I. Israel, que aprofundou mais que
ninguém o estudo da história do comércio internacional dos Países Baixos nesse
período, só refere a participação batava
naquela atividade em conexão com a
ocupação holandesa no Nordeste a partir de 1630. Segundo ele, "durante os últimos anos 80 (do século 16), o entreposto
holandês não participava praticamente
do comércio internacional do açúcar e tinha poucas perspectivas de fazê-lo". E,
quando começou a fazê-lo, foi sob a égide dos flamengos e dos cristãos-novos.
O mesmo historiador acentua que os
contratos de frete registrados pelos judeus portugueses perante os notários de
Amsterdã no período de 1595 a 1620 revelam que sua especialização era o açúcar, o pau-brasil e diamantes da Índia
importados via Porto e Lisboa; e também
que se tratava de "uma adição às atividades comerciais de Amsterdã, sem que
competisse com quaisquer interesses
(ali) preexistentes". Stols é mais enfático
ao asseverar que "até a instalação de João
Maurício (de Nassau) no Recife como
governador e a restauração portuguesa,
os holandeses não puderam controlar
parcela importante da produção brasileira de açúcar".
Por outro lado, não é crível que, se como pretendeu Celso Furtado, os holandeses controlavam o mercado do açúcar
desde o século 16, eles não se tivessem interessado desde então pelo refino do
produto. Ora, a refinação do açúcar foi
introduzida na Holanda em fins do século 16, pelos mesmos capitais flamengos e
cristãos-novos portugueses procedentes
de Antuérpia, os quais em 1595 possuíam 3 ou 4 refinarias em Amsterdã. Só
a partir de 1609, com a assinatura da trégua hispano-holandesa, essa atividade
expandiu-se, passando o número de fábricas para 25 em 1620 e para 50 em 1662,
quando continuavam majoritariamente
a ser propriedade de flamengos e de sefarditas lusos.
É sintomático que nem o velho Van Dillen nem Jan de Vries e Ad van der Woude na sua recente história da economia
neerlandesa refiram-se à alegada presença holandesa no comércio de açúcar antes da conquista do Nordeste pela Companhia das Índias Ocidentais. Esta sabidamente não foi idealizada por holandeses, mas por um exilado flamengo, Willem Usselincx, que havia vivido nos
Açores. Já no século 19, G.M. Asher havia
chamado a atenção para o fato de que a
criação da Companhia fora a iniciativa
desses refugiados calvinistas dos Países
Baixos espanhóis, asserção que viria a ser
apoiada por Boxer. Se em 1621 ela se beneficiara do apoio do Conselho Municipal de Amsterdã, isso devera-se ao acidente de estar então dominada por um
grupo de contra-remonstrantes correligionários daqueles refugiados.
Tão logo o Conselho voltou ao controle
da oligarquia urbana de tendência arminiana, ele mostrou-se duradouramente
hostil à Companhia, não só por antagonismo religioso e nacional (é conhecida a
rivalidade na Holanda seiscentista entre
holandeses e imigrantes flamengos e
brabantinos), mas pela preocupação de
evitar que as atividades da Companhia
prejudicassem os grandes interesses do
comércio holandês em Portugal, especialmente no tocante ao sal de Setúbal,
reputado mais apropriado que nenhum
outro à indústria da pesca. Como indicaram as pesquisas de W.J. van Hoboken, o
patriciado mercantil de Amsterdã teve
papel fundamental na destruição da
Companhia.
Evaldo Cabral de Mello é historiador e diplomata
aposentado. É autor, entre outros, de "Rubro Veio" e
"O Negócio do Brasil - Portugal, os Países Baixos e o
Nordeste, 1641-1669" (Topbooks). Ele escreve mensalmente na seção "Brasil 500 d.C.", da Folha.
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