São Paulo, Domingo, 23 de Janeiro de 2000


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"Crítica e Crise" procura mostrar como Europa caminha do absolutismo à Revolução Francesa
A falência ética do projeto burguês

Renato Janine Ribeiro
especial para a Folha

Seria tão difícil resumir este belo e denso livro que me limito a um breve panorama, antes de enveredar por uma de suas pistas. Koselleck mostra como a modernidade européia -querendo lidar com o conflito interno, ou seja, a guerra civil- vai do absolutismo, no começo do século 17, à Revolução Francesa, no final do 18. O problema moderno é construir um poder que evite a dissolução da sociedade pelo acirramento das tensões internas. O absolutismo nasce para encerrar as guerras de religião, que são conflitos de opinião, e morre em mãos de outro grande enfrentamento de idéias - que é o confronto entre os ideais democráticos e a crença na desigualdade dos homens. Koselleck mostra como a república das letras se constitui, endossando o absolutismo, para depois pô-lo em xeque: a crítica, que a distingue, se expande até tornar ilegítimo o regime que ela respeitava. O que discutirei, nas linhas que se seguem, refere-se a um sujeito ausente do livro de Koselleck, mas -penso- pressuposto nele e muito ativo em sua ausência. Trata-se da Inglaterra e de sua política. Koselleck, é certo, começa por um filósofo inglês, Thomas Hobbes, mostrando que ele percebeu que, para haver paz na sociedade, era preciso limitar o alcance político da consciência. As relações entre política e moral serão a chave do livro, que mostra como esta última adquire fôlego cada vez maior, até colocar a política em xeque. Mas, se Hobbes aparece, a Inglaterra praticamente não o faz. Marx certo dia celebrou a Inglaterra pela excelência de sua economia (a Revolução Industrial), a França, pela de sua política (a Revolução de 1789 e as seguintes), a Alemanha, pela de sua filosofia (a dialética hegeliana): o marxismo viria do encontro dessas três linhagens, articulando-as. Marx assim sugere que a filosofia alemã surgiu no vácuo da ação, para preenchê-lo; daí que sua célebre última tese sobre Feuerbach ("os filósofos até agora interpretaram o mundo de várias maneiras, chegou a hora de transformá-lo") aponte a exaustão do modelo germânico de não resolver os problemas na esfera política, mas só no imaginário filosófico -de fazer filosofia da história porque não consegue fazer história.

Ação de verdade
Nessa frase, se Marx critica a Alemanha, valoriza a França. Nela tudo se resolveu em ação, em revolução não em sentido figurado (econômica: "industrial"), mas de verdade. Para a esquerda, 1789 se torna o ícone de uma transformação esboçada, abortada, mas ainda inspiradora. Podemos ler as coisas de outro modo e considerar que a vida contemplativa germânica e a vida ativa gaulesa são apenas dois lados da mesma dificuldade em compreender o que é o político. O contraste seria entre o continente e os ingleses. Na segunda metade do século 17, a Inglaterra repele o modelo jurídico proposto por Hobbes (o da racionalização e codificação do direito) e ratifica a escolha da "common law". Isso é decisivo. O continente europeu, junto com o direito romano, assumia o rei como soberano, pondo fim às liberdades dos súditos. Os ingleses, rejeitando o código e mantendo seu apego aos precedentes, adotam uma aproximação mais empírica das relações humanas. Como teoria, o discurso da soberania tem maior consistência filosófica. A Inglaterra prefere Locke a Hobbes: escolhe o pensador mais fraco, ao menos em teoria política. Contudo, como notará Montesquieu ao dizer que por vezes dá certo na política o que é errado na teoria, dessa forma ela valorizará a prática e permitirá uma formação de seus políticos -e cidadãos, convocados a julgar nos tribunais do júri- superior à dos continentais, bons teóricos, mas péssimos na prática da coisa pública. A qualidade política inglesa, que já Edmund Burke celebra e, depois dele, Tocqueville, está exatamente em sua deficiência como pensadores ou autores de política. Esse, o possível complemento inglês à obra de Koselleck: esta aponta a constituição de uma categoria de letrados europeus que, originais ou divulgadores, só acentuam -teorizando- a fratura entre o pensamento e a ação propriamente política. O mundo burguês lida bem com o discurso da moral, mas não consegue desenvolver sua dimensão política. Daí sua força -contestando o antigo regime como imoral. Daí sua hipocrisia -sendo incapaz de assumir que fala de moral para tentar abocanhar o político. Mas essas críticas de Koselleck valem para o continente, não para a Inglaterra. E, se esta é o modelo do capitalismo entre 1750 e 1900, e os Estados Unidos no século 20, então falta alguma coisa nesse livro tão rico: falta o lar -anglo-saxão- da modernidade.

A inação
Disso, o que extrair? Duas conclusões. Primeira: o brilho de Koselleck está em mostrar que o projeto burguês -pelo menos, continental- está falido (do ponto de vista ético) e triunfante (no plano político) antes mesmo de Napoleão editar o Código Civil. Na própria empresa que leva à Revolução, já está a marca de seus fracassos, de sua inação futura. Suas inconsistências internas já prenunciam seu destino.
Segunda: a limitação do projeto de Koselleck está em deixar de lado a Inglaterra. O continente europeu chega atrasado ao novo mundo capitalista. A discussão, que volta e meia reponta no Brasil, do que é estar atrasado em face ao mundo moderno, começou tratando da Alemanha e da França perante a Inglaterra. A Inglaterra foi o modelo da modernidade enquanto capitalista, tendo por curiosa característica a improvisação, a pouca consistência, o empirismo: e desse modelo Koselleck não trata.
Nada disso empana esse livro. Apenas procurei apontar um limite de sua reflexão. O ideal será tentar dar conta das duas vertentes, a da prática que deu certo, a da teoria que não deu errado, mas ficou atrás da empiria: a Inglaterra e o continente, os anglo-saxões e o mundo. Koselleck certamente fornece um dos mais densos pontos de partida para fazer isso.


Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e filosofia política na USP, autor de "A Etiqueta no Antigo Regime", "A Última Razão dos Reis - Ensaios de Filosofia e de Política" (Companhia das Letras) e "Ao Leitor sem Medo" (Ed. da UFMG).


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