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"Crítica e Crise" procura mostrar como Europa caminha do absolutismo à Revolução Francesa
A falência ética do projeto burguês
Renato Janine Ribeiro
especial para a Folha
Seria tão difícil resumir este belo e
denso livro que me limito a um breve
panorama, antes de enveredar por uma
de suas pistas. Koselleck mostra como a
modernidade européia -querendo lidar com o conflito interno, ou seja, a
guerra civil- vai do absolutismo, no começo do século 17, à Revolução Francesa, no final do 18. O problema moderno é
construir um poder que evite a dissolução da sociedade pelo acirramento das
tensões internas.
O absolutismo nasce para encerrar as
guerras de religião, que são conflitos de
opinião, e morre em mãos de outro grande enfrentamento de idéias - que é o
confronto entre os ideais democráticos e
a crença na desigualdade dos homens.
Koselleck mostra como a república das
letras se constitui, endossando o absolutismo, para depois pô-lo em xeque: a crítica, que a distingue, se expande até tornar ilegítimo o regime que ela respeitava.
O que discutirei, nas linhas que se seguem, refere-se a um sujeito ausente do
livro de Koselleck, mas -penso- pressuposto nele e muito ativo em sua ausência. Trata-se da Inglaterra e de sua política. Koselleck, é certo, começa por um filósofo inglês, Thomas Hobbes, mostrando que ele percebeu que, para haver paz
na sociedade, era preciso limitar o alcance político da consciência. As relações
entre política e moral serão a chave do livro, que mostra como esta última adquire fôlego cada vez maior, até colocar a
política em xeque. Mas, se Hobbes aparece, a Inglaterra praticamente não o faz.
Marx certo dia celebrou a Inglaterra
pela excelência de sua economia (a Revolução Industrial), a França, pela de sua
política (a Revolução de 1789 e as seguintes), a Alemanha, pela de sua filosofia (a
dialética hegeliana): o
marxismo viria do encontro dessas três linhagens,
articulando-as. Marx assim sugere que a filosofia
alemã surgiu no vácuo da
ação, para preenchê-lo;
daí que sua célebre última
tese sobre Feuerbach ("os
filósofos até agora interpretaram o mundo de várias maneiras, chegou a hora de transformá-lo") aponte a exaustão do modelo
germânico de não resolver os problemas
na esfera política, mas só no imaginário
filosófico -de fazer filosofia da história
porque não consegue fazer história.
Ação de verdade
Nessa frase, se
Marx critica a Alemanha, valoriza a
França. Nela tudo se resolveu em ação,
em revolução não em sentido figurado
(econômica: "industrial"), mas de verdade. Para a esquerda, 1789 se torna o ícone
de uma transformação esboçada, abortada, mas ainda inspiradora. Podemos
ler as coisas de outro modo e considerar
que a vida contemplativa germânica e a
vida ativa gaulesa são apenas dois lados
da mesma dificuldade em compreender
o que é o político. O contraste seria entre
o continente e os ingleses.
Na segunda metade do século 17, a Inglaterra repele o modelo jurídico proposto por Hobbes (o da racionalização e
codificação do direito) e ratifica a escolha
da "common law". Isso é decisivo. O
continente europeu, junto com o direito
romano, assumia o rei como soberano,
pondo fim às liberdades dos súditos. Os
ingleses, rejeitando o código e mantendo
seu apego aos precedentes, adotam uma
aproximação mais empírica das relações
humanas.
Como teoria, o discurso da soberania
tem maior consistência filosófica. A Inglaterra prefere Locke a Hobbes: escolhe
o pensador mais fraco, ao menos em teoria política. Contudo, como notará Montesquieu ao dizer que por vezes dá certo
na política o que é errado na teoria, dessa
forma ela valorizará a prática e permitirá
uma formação de seus políticos -e cidadãos, convocados a julgar nos tribunais do júri- superior à dos continentais, bons teóricos, mas péssimos na prática da coisa pública.
A qualidade política inglesa, que já Edmund
Burke celebra e, depois
dele, Tocqueville, está
exatamente em sua deficiência como pensadores
ou autores de política.
Esse, o possível complemento inglês à obra de
Koselleck: esta aponta a
constituição de uma categoria de letrados europeus que, originais
ou divulgadores, só acentuam -teorizando- a fratura entre o pensamento e
a ação propriamente política. O mundo
burguês lida bem com o discurso da moral, mas não consegue desenvolver sua
dimensão política. Daí sua força -contestando o antigo regime como imoral.
Daí sua hipocrisia -sendo incapaz de
assumir que fala de moral para tentar
abocanhar o político.
Mas essas críticas de Koselleck valem
para o continente, não para a Inglaterra.
E, se esta é o modelo do capitalismo entre
1750 e 1900, e os Estados Unidos no século 20, então falta alguma coisa nesse livro
tão rico: falta o lar -anglo-saxão- da
modernidade.
A inação
Disso, o que extrair? Duas
conclusões. Primeira: o brilho de Koselleck está em mostrar que o projeto burguês -pelo menos, continental- está
falido (do ponto de vista ético) e triunfante (no plano político) antes mesmo de
Napoleão editar o Código Civil. Na própria empresa que leva à Revolução, já está a marca de seus fracassos, de sua inação futura. Suas inconsistências internas
já prenunciam seu destino.
Segunda: a limitação do projeto de Koselleck está em deixar de lado a Inglaterra. O continente europeu chega atrasado
ao novo mundo capitalista. A discussão,
que volta e meia reponta no Brasil, do
que é estar atrasado em face ao mundo
moderno, começou tratando da Alemanha e da França perante a Inglaterra. A
Inglaterra foi o modelo da modernidade
enquanto capitalista, tendo por curiosa
característica a improvisação, a pouca
consistência, o empirismo: e desse modelo Koselleck não trata.
Nada disso empana esse livro. Apenas
procurei apontar um limite de sua reflexão. O ideal será tentar dar conta das
duas vertentes, a da prática que deu certo, a da teoria que não deu errado, mas ficou atrás da empiria: a Inglaterra e o continente, os anglo-saxões e o mundo. Koselleck certamente fornece um dos mais
densos pontos de partida para fazer isso.
Renato Janine Ribeiro é professor titular de ética e
filosofia política na USP, autor de "A Etiqueta no Antigo Regime", "A Última Razão dos Reis - Ensaios de Filosofia e de Política" (Companhia das Letras) e "Ao Leitor
sem Medo" (Ed. da UFMG).
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