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O ensaísta publica na Alemanha "O Livro Negro do Capitalismo", um tratado
de 816 páginas em que pretende deslegitimar os fundamentos do capitalismo
A crítica radical de Robert Kurz
José Galisi
especial para a Folha
Em "O Colapso da Modernização",
de 1991, o ensaísta alemão Kurz apontava para a necessidade de uma reavaliação do conceito tradicional de capitalismo como apropriação privada da
mais-valia. Pois, para ele, não é essa a
noção que define o capitalismo como
sistema, mas sim a hegemonia do
princípio do equivalente-universal
em sua forma pura e monetária, como matriz de todo trabalho abstrato.
Quase dez anos depois, em seu novo trabalho, "O Livro Negro do Capitalismo - Um Epitáfio à Economia de
Mercado" (Ed. Eichborn, 68 marcos),
um gigantesco tratado de 816 páginas,
Kurz inverte o sinal da argumentação,
projetando seu ponto de fuga na genética do capitalismo.
Se cada vez mais a "normalidade"
do mercado significa a exclusão necessária da maioria, se a miséria se
alastra nos centros da metrópoles
centrais e se a única resposta da política parece ser o mingau requentado da
Terceira Via numa forma de estatismo moderado sem imaginação, Robert Kurz acredita que seja preciso
deslegitimar o capitalismo em sua
própria matriz, e isso por meio de
uma crítica "radical e antiautoritária". Só assim, como ele afirma no
prefácio do livro, seremos "mais uma
vez capazes da utopia".
Kurz, que escreve mensalmente na
seção "Autores" do Mais!, concedeu a
entrevista a seguir por telefone, de sua
casa, em Nurembergue (Alemanha).
Quais são as mudanças formais entre "O Colapso da
Modernização" (lançado no Brasil pela ed. Paz e Terra) e
"O Livro Negro do Capitalismo - Um Epitáfio à Economia
de Mercado"?
O que mudou para mim foi a perspectiva histórica.
Por um lado, sinto-me confirmado empiricamente
pela dimensão atingida pela crise e a catástrofe absoluta deste estágio terminal do capitalismo; por outro,
contudo, reconheço a paralisia de um horizonte cultural pós-moderno, na forma de um mundo aparente e virtual do ciberespaço, que é a prova mais concreta deste estágio do capitalismo financeiro, o qual,
acredito, não irá durar muito. Já afirmara isso em "O
Colapso da Modernização" e continuo ainda mais
firme em minha posição: essa fronteira absoluta que
atingimos é insuportável e não pode mais ser ultrapassada.
Mas o que realmente mudou para mim nestes últimos anos é, de fato, a perspectiva retrospectiva e a
necessidade de desconstruir e acompanhar o capitalismo diacronicamente, negando-lhe, já em seu movimento constitutivo, sua própria legitimidade. Isto
significa, entre outras coisas, procurar naquela linha de reflexão desenvolvida no livro negro do capital, "A
Dialética do Esclarecimento", o ponto
de fuga que nos distancia ainda mais
daquela matriz mesma do Esclarecimento, na qual se forja esta legitimação lógica e identitária. E isto para
mim é um projeto muito pessoal, sobretudo diante desta revolução conservadora de direita que estamos vivendo. Trata-se de deslegitimar o capitalismo com uma crítica radical e
antiautoritária, uma crítica do Esclarecimento de um ponto de vista de esquerda.
O sr. afirma no livro que a situação do homem comum, no que diz respeito à exploração, não mudou quase nada em relação
ao momento em que nasce o pensamento
liberal de mercado, no século 18. Poderia
explicitar melhor esse argumento?
Quando lemos testemunhos e textos
daquele período, sobretudo os que falam do tratamento do Estado monárquico em relação aos miseráveis, aos
novos empobrecidos que vinham do
campo, aos imigrantes e ilegais do período -assim como hoje também há
milhões de pessoas em trânsito pelo
mundo, vemos então claramente que
não mudou muita coisa.
Na verdade, o sistema até retrocedeu no que diz respeito à administração de uma nova e explosiva forma de
miséria de milhões de seres humanos
nesta fase de alta intensidade tecnológica da auto-reprodução do capital:
por um lado, essa auto-reprodução
promove a interligação mundial dos
mercados, numa forma como não se
podia imaginar naquela época.
Mesmo assim, a maneira como os homens são tratados hoje ainda é muito semelhante. Fazemos hoje,
voluntariamente, coisas que antes os homens se recusavam a fazer -ou, pelo menos, de que reclamavam, tendo de ser chicoteados para realizá-las. Fazemos as mesmas coisas independentemente da época
do ano, da hora do dia, numa coação internalizada
dentro do tempo contínuo, vazio e linear, já inscrito
em nós, numa submissão voluntária ao ditado temporal desse trabalho abstrato.
O último livro publicado pela revista "Krisis", da qual o
sr. é um dos editores, é um trabalho coletivo chamado
"Manifesto contra o Trabalho". Quais são as propostas
concretas dessas teses?
Trata-se de fato de uma plataforma e de uma provocação analítica: por que as enormes forças produtivas desencadeadas pelo capitalismo não conseguem ser traduzidas de uma maneira racional,
no sentido mais elementar do termo? Pois as enormes possibilidades disponíveis deveriam criar uma
vida melhor para a maioria da humanidade e as
condições técnicas fantásticas de criação do bem-estar para a maioria da humanidade já estão dadas
há muito. Esse é o problema central: a mediação
social, a rentabilidade de mercado determinam
exatamente o reverso: a negatividade da miséria,
do empobrecimento das massas, da autodestruição.
Dessa maneira, esse "ataque contra o trabalho"
enquanto categoria visa à abstração do trabalho,
àquela indiferença do conteúdo, que Marx denominava de trabalho abstrato. Aquilo que seria uma
categoria supra-histórica ontológica ganhou uma
roupa durante o protestantismo nos últimos três
séculos e dessa forma seria necessário, de maneira
provocativa, atacá-la em sua pseudo-racionalidade, pois não se trata mais há muito de uma atividade racional, senão da apropriação da energia humana para um fim fechado em si mesmo. Esse é o
problema essencial.
Essa crítica não se faz do ponto de vista hedonista, desse hedonismo burguês, mas da superação do
trabalho abstrato e do hedonismo abstrato, como
são dados hoje, que não deixam de ser a continuação do trabalho por outros meios. Várias medidas
paliativas foram tentadas, mas elas nunca funcionaram, como se sabe muito bem.
Os sindicatos tiveram sucesso nessa política de
redução da jornada de trabalho no fim dos anos 70
e até meados dos 80, pelo menos do ponto de vista
de ganho de posição no mercado mundial, que
trouxe sucesso à ex-Alemanha Ocidental, mas essas conquistas localizadas, individuais, apagaram-se logo depois nos acordos tarifários, não apenas
nos antigos "Bundesländer" da ex-Alemanha
Oriental, mas também nos Estados da República
Federal; e nem poderia ser de outra forma, ou seja,
essa individualização dos interesses torna-se sinônimo de falta de solidariedade dos sindicatos e dos
empregadores.
O problema é de fato que esse mecanismo dominante da racionalidade de redução de custos só
funciona quando externaliza seus custos: externalização ao custo da natureza, do futuro e do conjunto da sociedade, dos empobrecidos que devem ser
alimentados socialmente. Da mesma maneira, isso
vale para a questão da redução da jornada de trabalho. Penso que esses custo de robotização não se
traduzem num melhor nível para os trabalhadores.
Eles apenas se traduzem, por um lado, em desemprego estrutural e, por outro, no acirramento e na
piora das condições de trabalho para os ocupados
remanescentes. Essa é a lógica que experimentamos no cotidiano, e não outra coisa.
As privatizações no Brasil liquidaram praticamente todo o chamado "patrimônio nacional", tal como a força
de trabalho organizada no Brasil ainda entende esse
termo. O sr. não acha também que essa política do FMI
de crédito fácil é um convite e um caminho mais rápido
ao "crash" no país?
Não colocaria mais a questão do ponto de vista de
uma economia nacional independente, embora
entenda perfeitamente o que você queira dizer com
o "patrimônio nacional" que essa força de trabalho
procura ainda resguardar. Apenas que esse ponto
de vista da assim chamada economia nacional se
tornou ilusório. As economias somente se definem
hoje por essa participação no sistema mundial, e,
se quisermos criticar os efeitos reversos do sistema
sobre essa parte, temos necessariamente de colocar
em xeque o próprio princípio da mediação em que
ele se alicerça e se reproduz.
Essa crítica não é mais possível a partir do socialismo de caserna, que é passado, mas no sentido da
forma fundamental desta mediação. Do ponto de
vista da crítica, precisamos passar para o patamar
da transnacionalidade, a partir do qual esse problema muda de natureza, pois nele encontramos as
perspectivas simultâneas de todos os homens que
dele participam. Essa crítica tem de ser formulada
inicialmente nessa escala central para então retroagir sobre as partes. Da maneira como a política sindical nacional ainda é conduzida, não existe nenhuma chance de sequer arranhar-se a estrutura
do sistema.
Mas a "classe trabalhadora" ainda é nacional, territorial, enquanto o capital se movimenta sem fronteiras...
Esse é o ponto central e o diferencial do caso brasileiro em relação a países como a Alemanha. Esse
deveria ser, de fato, também o ponto de vista comum da crítica radical tanto aqui como no Brasil.
Proponho nada mais e nada menos do que a completa anulação dessa dívida que não passa de dinheiro podre, especulativo, um dinheiro fictício,
que poderia ser simplesmente abolido de uma hora
para outra sem mudar em nada a realidade. A anulação nominal dessa dívida não teria nenhum efeito prático. Essa anulação é independente desse patamar da reflexão.
Seria a única forma de crítica imanente ao sistema. É o que proponho como um passo além da
economia monetária, e a completa anulação da dívida seria a consequência prática dessa crítica, que
se oporia à ciranda de capitais especulativos. Dessa
maneira, é completamente indiferente se a receita
das privatizações vai para o exterior ou não, pois as
privatizações não resolvem nenhum problema.
Em parte, a receita estatal é saneada, mas é como se
se vendesse também o próprio prato em que se come.
Essas receitas são apenas uma injeção provisória
de recursos e não se traduzem em nenhum aumento de produtividade, muito pelo contrário: muitas
firmas compram as outras para monopolizar setores e aumentar sua capacidade de negociação no
jogo global. A privatização é apenas uma forma
provisória em que o espaço de jogo é estreitado
ainda mais, e a capacidade produtiva dessas empresas, travestida e congelada na concentração das
forças globais ainda disponíveis.
José Galisi Filho é mestre em teoria literária pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e doutorando em germanística na Universidade de Hannover (Alemanha).
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