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Ponto de fuga
O núcleo em crise
Jorge Coli
especial para a Folha
Nos diários de Delacroix (1798-1863) há uma passagem em que o pintor reflete sobre os diferentes papéis
que cada um, a todo instante, é obrigado a representar. Nunca somos os
mesmos, e isto traz, no texto, uma
percepção insatisfeita diante da identidade vazia. A reflexão de Delacroix
se combina com um fenômeno de
época: o dandismo, em que é preciso
construir um personagem artificial
para uso dos outros. Em verdade, o
dandismo, inventado por homens, incorpora e subverte uma dimensão feminina. A "essência", a identidade,
seriam masculinas. No campo do feminino estariam o aspecto, a máscara,
a maquiagem: basta ler Baudelaire. Os
filmes de Almodóvar, obcecados pelas metamorfoses de um "self" que
não possui nem forma nem sexo definitivos são um modo muito visível
destes tempos de agora, em que aparências venceram a identidade ou, se
se quiser, são a expressão de uma
identidade sempre movente na não-identidade, no seu próprio paradoxo.
Uma exposição na Grey Art Gallery,
em NY, "Inverted Odisseys", mostra
essas desestabilizações como instrumentos ao mesmo tempo femininos e
do feminino. Reúne filmes e fotos de
Claude Cahun, Maya Deren e Cindy
Sherman, três mulheres, de gerações
sucessivas, em imagens em que se
constroem a si próprias como personagens. Não é um jogo exterior, é um
empenho de vida, em que pessoa e
"persona" são o mesmo. Três mulheres que demonstram a maior verdade
do fictício e o levam ao universal.
Desconforto - As palavras não se
ajustam muito bem ao que é mostrado em "Inverted Odisseys". Há uma
constante pessoal: Claude Cahun,
Cindy Sherman ou Maya Deren são
"unidades". Para o espectador, elas
existem enquanto nome, enquanto
expectativa daquilo que oferecem.
Mas, "de fato", só existem quando
deixam de existir, isto é, quando assumem, nas fotografias, nos filmes, a encarnação de outrem. Sherman pode
aparecer fotografada imitando um
quadro de Botticelli: não é Botticelli e,
é claro, não é Sherman, nem em imagem, muito menos em carne e osso.
Onde estão, na verdade, essas mulheres que se fotografam a si mesmas como outrem? A questão é próxima à de
Delacroix: onde estou, já que sou feito
de máscaras? Surge uma novidade,
porém, menos consciente do que intuitiva: a questão deixou de ter sentido. Porque não há lugar. Há apenas
um campo imaterial investido de representações. Não formas simbólicas
exteriores que remetem a um núcleo
constante para fortalecê-lo. Mas representações, que são representações,
e basta.
Medalha - As obras de Claude Cahun comovem. Possuem uma sinceridade espontânea e poética. Em 1937,
ela, e sua companheira amada, Suzanne Malherbe, deixam Paris, instalando-se na ilha de Jersey, que os nazistas
iriam ocupar. Participaram da resistência. Disfarçavam-se com perucas e
roupas diversas, distribuindo panfletos escritos sob pseudônimos, às vezes aos próprios militares alemães.
Uma das assinaturas era: "Der Soldat
ohne Name" -o soldado sem nome.
Alheio - Ser outro e, sobretudo, ser
sem corpo: o mundo da Internet trouxe a experiência da desencarnação, da
perda do invólucro concreto em carne e ossos, num balanço entre um si
mesmo imaginário e seu duplo, entre
aquele que pensamos ser e aquele que
gostaríamos, ou poderíamos, ser. Os
"chats", os "fóruns virtuais", criam
uma zona intangível de aventuras. Os
"nicknames" são os sésamos. Eles, em
contato com outros parceiros de mesma natureza, vão criar vida, por vezes
de modo muito pulsante. Cruzamento entre real e virtual, em que a realidade perde cada vez mais o seu real,
para revelar, iluminados, os mecanismos de uma fabricação que se escondia.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com
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