São Paulo, Domingo, 23 de Janeiro de 2000


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Ponto de fuga

O núcleo em crise

Jorge Coli
especial para a Folha

Nos diários de Delacroix (1798-1863) há uma passagem em que o pintor reflete sobre os diferentes papéis que cada um, a todo instante, é obrigado a representar. Nunca somos os mesmos, e isto traz, no texto, uma percepção insatisfeita diante da identidade vazia. A reflexão de Delacroix se combina com um fenômeno de época: o dandismo, em que é preciso construir um personagem artificial para uso dos outros. Em verdade, o dandismo, inventado por homens, incorpora e subverte uma dimensão feminina. A "essência", a identidade, seriam masculinas. No campo do feminino estariam o aspecto, a máscara, a maquiagem: basta ler Baudelaire. Os filmes de Almodóvar, obcecados pelas metamorfoses de um "self" que não possui nem forma nem sexo definitivos são um modo muito visível destes tempos de agora, em que aparências venceram a identidade ou, se se quiser, são a expressão de uma identidade sempre movente na não-identidade, no seu próprio paradoxo. Uma exposição na Grey Art Gallery, em NY, "Inverted Odisseys", mostra essas desestabilizações como instrumentos ao mesmo tempo femininos e do feminino. Reúne filmes e fotos de Claude Cahun, Maya Deren e Cindy Sherman, três mulheres, de gerações sucessivas, em imagens em que se constroem a si próprias como personagens. Não é um jogo exterior, é um empenho de vida, em que pessoa e "persona" são o mesmo. Três mulheres que demonstram a maior verdade do fictício e o levam ao universal.

Desconforto - As palavras não se ajustam muito bem ao que é mostrado em "Inverted Odisseys". Há uma constante pessoal: Claude Cahun, Cindy Sherman ou Maya Deren são "unidades". Para o espectador, elas existem enquanto nome, enquanto expectativa daquilo que oferecem. Mas, "de fato", só existem quando deixam de existir, isto é, quando assumem, nas fotografias, nos filmes, a encarnação de outrem. Sherman pode aparecer fotografada imitando um quadro de Botticelli: não é Botticelli e, é claro, não é Sherman, nem em imagem, muito menos em carne e osso. Onde estão, na verdade, essas mulheres que se fotografam a si mesmas como outrem? A questão é próxima à de Delacroix: onde estou, já que sou feito de máscaras? Surge uma novidade, porém, menos consciente do que intuitiva: a questão deixou de ter sentido. Porque não há lugar. Há apenas um campo imaterial investido de representações. Não formas simbólicas exteriores que remetem a um núcleo constante para fortalecê-lo. Mas representações, que são representações, e basta.

Medalha - As obras de Claude Cahun comovem. Possuem uma sinceridade espontânea e poética. Em 1937, ela, e sua companheira amada, Suzanne Malherbe, deixam Paris, instalando-se na ilha de Jersey, que os nazistas iriam ocupar. Participaram da resistência. Disfarçavam-se com perucas e roupas diversas, distribuindo panfletos escritos sob pseudônimos, às vezes aos próprios militares alemães. Uma das assinaturas era: "Der Soldat ohne Name" -o soldado sem nome.

Alheio - Ser outro e, sobretudo, ser sem corpo: o mundo da Internet trouxe a experiência da desencarnação, da perda do invólucro concreto em carne e ossos, num balanço entre um si mesmo imaginário e seu duplo, entre aquele que pensamos ser e aquele que gostaríamos, ou poderíamos, ser. Os "chats", os "fóruns virtuais", criam uma zona intangível de aventuras. Os "nicknames" são os sésamos. Eles, em contato com outros parceiros de mesma natureza, vão criar vida, por vezes de modo muito pulsante. Cruzamento entre real e virtual, em que a realidade perde cada vez mais o seu real, para revelar, iluminados, os mecanismos de uma fabricação que se escondia.


Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: coli20@hotmail.com


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