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Forte Niilismo dá o tom em "Trainspotting"
JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA
Editado em 1993 e adaptado para
o cinema em 1996, afinal sai no
Brasil "Trainspotting", primeiro romance do autor escocês Irvine Welsh. A longa espera talvez se
deva às dificuldades de tradução, mas
certamente não é justificativa que se
sustente, dado o barulho que a versão
cinematográfica causou por aqui. Escrito em registro fonético, o livro costura o inglês regular ao tortuoso dialeto "central scots", um dos cinco falados na Escócia (e na Irlanda do Norte)
e reconhecido pelo governo britânico
como idioma independente.
Não bastasse isso, entremeado nas
350 páginas do volume, há um verdadeiro manancial de gírias e expressões
idiomáticas indecifráveis, resultando
num osso duro de roer para qualquer
bambambã do ofício. No entanto o desafio foi superado com galhardia e devoção pelos jovens escritores e tradutores Daniel Galera e Daniel Pellizzari,
que tornaram possível e nada doloroso
ler Welsh em português, além de providenciarem posfácio e glossário para
elucidar aspectos geográficos e históricos escoceses.
"Trainspotting" é um romance episódico, narrado sob diversos pontos
de vista, e um tento considerável é a
conquista de personalidade expressiva
para a voz de cada personagem, que se
tornam facilmente reconhecíveis com
o passar das páginas. Da fala irônica de
Sick Boy (mesclando certo tom empolado com um palavrório chulo de meter medo) às desventuras escatológicas
de Rents, as histórias vão se sucedendo, sem ordem ou seqüência cronológica, e Welsh até mesmo faz uso de um
narrador onisciente em alguns fragmentos.
Essa alternância, além de causar certo estranhamento no evoluir da leitura
(é o caso dessa narração neutra, conduzida na tradução em português castiço), concede uma riqueza de contrastes que traduz à perfeição a sinfonia
vocabular da cidade, recriando literariamente a linguagem oral utilizada
pela classe baixa de Edimburgo.
Na adaptação de Danny Boyle que
consagrou ainda mais o livro de Irvine
Welsh há uma concentração no grupo
de "junkies" composto por Sick Boy,
Rents, Madre Superiora, Spud e os outros. Presos à rotina inescapável do subúrbio de Leith, sem perspectivas de
trabalho ou de distração, os rapazes
pegam pesado no uso de heroína e nos
hectolitros de cerveja consumidos.
E é justamente a essa ausência irrestrita de horizontes e da falta do que fazer que se refere o título do livro, mantido no original. É o que explicam os
tradutores: ""trainspotting" possui no
mínimo dois significados. O mais literal, que poderia ser traduzido como
"conferindo os trens", faz referência a
um passatempo comum entre jovens
britânicos: passar os dias conferindo se
determinados trens passam por uma
estação em um horário específico, de
acordo com suas tabelas. Em termos
mais amplos, o termo "trainspotting" é
usado para qualquer atividade sem
sentido prático que implique uma total perda de tempo".
Welsh não poupa o leitor em nenhuma instância com visões edulcoradas
da realidade, e, além do coloquialismo
conquistado, seu texto parece traduzir
as peripécias patéticas dos habitantes
sob um princípio deformador que beira o expressionismo, lembrando a visualidade distorcida de William Burroughs no seu clássico romance sobre
o vício, "Almoço Nu". Porém nessa
prisão a encarcerar jovens viciados
também estão presentes os velhos, as
crianças e todos os habitantes do subúrbio sem saídas. Dependentes de
drogas ou não, todos dividem o escasso ar da mesma cela. E em cada novo
capítulo vamos assistindo aos planos
mirabolantes de fuga dos personagens: fuga do cotidiano, da miséria, da
repetição infinita dos dias.
Todas as ações deles são esforços desesperados para desaparecer de Edimburgo, de Leith ou mesmo da Escócia.
Nesse sentido, "Trainspotting" é um libelo à fuga dos conjuntos habitacionais subsidiados pelo Estado que aprisionam as classes baixas ao subúrbio.
Mas sem dúvida é um libelo com o travo amargo e certeiro do fracasso.
Joca Reiners Terron é autor de "Hotel Hell"
(ed. Livros do Mal), entre outros livros.
Trainspotting
352 págs., R$ 43,00
de Irvine Welsh. Trad. Galera e Pellizzari. Ed.
Rocco (rua Rodrigo Silva, 26, 4º andar, CEP
20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/ 2584-3536).
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