São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2005

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Forte Niilismo dá o tom em "Trainspotting"

JOCA REINERS TERRON
ESPECIAL PARA A FOLHA

Editado em 1993 e adaptado para o cinema em 1996, afinal sai no Brasil "Trainspotting", primeiro romance do autor escocês Irvine Welsh. A longa espera talvez se deva às dificuldades de tradução, mas certamente não é justificativa que se sustente, dado o barulho que a versão cinematográfica causou por aqui. Escrito em registro fonético, o livro costura o inglês regular ao tortuoso dialeto "central scots", um dos cinco falados na Escócia (e na Irlanda do Norte) e reconhecido pelo governo britânico como idioma independente.
Não bastasse isso, entremeado nas 350 páginas do volume, há um verdadeiro manancial de gírias e expressões idiomáticas indecifráveis, resultando num osso duro de roer para qualquer bambambã do ofício. No entanto o desafio foi superado com galhardia e devoção pelos jovens escritores e tradutores Daniel Galera e Daniel Pellizzari, que tornaram possível e nada doloroso ler Welsh em português, além de providenciarem posfácio e glossário para elucidar aspectos geográficos e históricos escoceses.
"Trainspotting" é um romance episódico, narrado sob diversos pontos de vista, e um tento considerável é a conquista de personalidade expressiva para a voz de cada personagem, que se tornam facilmente reconhecíveis com o passar das páginas. Da fala irônica de Sick Boy (mesclando certo tom empolado com um palavrório chulo de meter medo) às desventuras escatológicas de Rents, as histórias vão se sucedendo, sem ordem ou seqüência cronológica, e Welsh até mesmo faz uso de um narrador onisciente em alguns fragmentos.
Essa alternância, além de causar certo estranhamento no evoluir da leitura (é o caso dessa narração neutra, conduzida na tradução em português castiço), concede uma riqueza de contrastes que traduz à perfeição a sinfonia vocabular da cidade, recriando literariamente a linguagem oral utilizada pela classe baixa de Edimburgo.
Na adaptação de Danny Boyle que consagrou ainda mais o livro de Irvine Welsh há uma concentração no grupo de "junkies" composto por Sick Boy, Rents, Madre Superiora, Spud e os outros. Presos à rotina inescapável do subúrbio de Leith, sem perspectivas de trabalho ou de distração, os rapazes pegam pesado no uso de heroína e nos hectolitros de cerveja consumidos.
E é justamente a essa ausência irrestrita de horizontes e da falta do que fazer que se refere o título do livro, mantido no original. É o que explicam os tradutores: ""trainspotting" possui no mínimo dois significados. O mais literal, que poderia ser traduzido como "conferindo os trens", faz referência a um passatempo comum entre jovens britânicos: passar os dias conferindo se determinados trens passam por uma estação em um horário específico, de acordo com suas tabelas. Em termos mais amplos, o termo "trainspotting" é usado para qualquer atividade sem sentido prático que implique uma total perda de tempo".
Welsh não poupa o leitor em nenhuma instância com visões edulcoradas da realidade, e, além do coloquialismo conquistado, seu texto parece traduzir as peripécias patéticas dos habitantes sob um princípio deformador que beira o expressionismo, lembrando a visualidade distorcida de William Burroughs no seu clássico romance sobre o vício, "Almoço Nu". Porém nessa prisão a encarcerar jovens viciados também estão presentes os velhos, as crianças e todos os habitantes do subúrbio sem saídas. Dependentes de drogas ou não, todos dividem o escasso ar da mesma cela. E em cada novo capítulo vamos assistindo aos planos mirabolantes de fuga dos personagens: fuga do cotidiano, da miséria, da repetição infinita dos dias.
Todas as ações deles são esforços desesperados para desaparecer de Edimburgo, de Leith ou mesmo da Escócia. Nesse sentido, "Trainspotting" é um libelo à fuga dos conjuntos habitacionais subsidiados pelo Estado que aprisionam as classes baixas ao subúrbio. Mas sem dúvida é um libelo com o travo amargo e certeiro do fracasso.


Joca Reiners Terron é autor de "Hotel Hell" (ed. Livros do Mal), entre outros livros.

Trainspotting
352 págs., R$ 43,00
de Irvine Welsh. Trad. Galera e Pellizzari. Ed. Rocco (rua Rodrigo Silva, 26, 4º andar, CEP 20011-040, RJ, tel. 0/xx/21/ 2584-3536).


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