São Paulo, domingo, 23 de janeiro de 2005

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O ensaísta rebate os ataques ao posfácio que escreveu para "O Direito à Literatura", livro recém-lançado em Portugal que reúne ensaios do crítico Antonio Candido

Uma alma singela

ABEL BARROS BAPTISTA
ESPECIAL PARA A FOLHA

O Mais! resolveu fazer acompanhar de uma nota a entrevista que concedi [em 16/1] a propósito do livro de ensaios de Antonio Candido por mim organizado em Portugal e para o qual escrevi um posfácio ["O Direto à Literatura e Outros Ensaios", ed. Angelus Novus]. É normal e correto que os jornais procurem divulgar ponto de vista independente. Acontece que a redação do Mais! cometeu dois erros contra os quais devo protestar.
O primeiro foi ter dado à nota o título "Pesquisadora rebate ataques a Antonio Candido". Um simples título e resvala-se para o terreno bélico, sugerindo que, onde falo de análise e debate, faço ataques. Ataques?! Isso, para mim inaceitável, não pode ser acidente. O texto da entrevista não foi publicado na íntegra, o que é compreensível; mas entre as passagens suprimidas pela redação estavam significativamente aquelas em que declarava o meu respeito e admiração pelo trabalho de Antonio Candido e dava à organização do livro o sentido duma homenagem. Sou forçado a concluir que a entrevista foi ajustada ao teor da nota, e é impossível não me sentir eu próprio atacado de forma desleal.
O segundo erro foi ter incumbido Walnice Nogueira Galvão de redigir a nota, a tal "pesquisadora", que se revela um espírito provinciano e mesquinho e exibe irremediável incapacidade de ler o que escrevi a respeito de Antonio Candido.
Espírito provinciano, porque nega importância à edição portuguesa por comparação com traduções de Antonio Candido noutras línguas. Manifestamente não reconhece a importância de haver cá quem o leia, quem o discuta, quem o admire e queira que outros mais o leiam, discutam e admirem; não percebe a ruptura que isso implica com um estado de coisas de décadas e que nem o Prêmio Camões alterou; e não sabe o que é ensinar literatura brasileira em Portugal, ignorando a enorme diferença que este livro irá causar. Deslumbra-a o estrangeiro maior, o alemão, o americano...
Espírito mesquinho, porque desconsidera um ensaio denso e argumentado, atribuindo-lhe, sem provas nem argumentos, o intuito caviloso dum "ajuste de contas". A acusação é mais estúpida que malévola: que contas tenho eu a ajustar com Antonio Candido?! E, posto as tivesse, para as ajustar iria dar-me ao trabalho de organizar um livro, contactar o autor, reler-lhe a obra, escrever longo ensaio, procurar editora? E esta, por sua vez, sendo pequena e de escassos recursos, arriscava a edição e batalhava mais de dois anos junto do Instituto Português do Livro para obter o apoio financeiro necessário, apenas com o propósito de me ajudar no ajuste? Caberia à "pesquisadora" comprovar que não disponho em Portugal (e até no Brasil) de meio mais econômico e mais eficaz de ajustar contas.
Quanto ao meu posfácio, a nota confrange pela indigência. Não chego a perceber, lendo-a, que ataques a Antonio Candido me imputa, muito menos como julga rebatê-los. Poder-se-ia pensar que o fervor de defender a honra supostamente maculada do mestre lhe turvou o discernimento. Chegar a dizê-lo seria apenas generoso, e é insensato gastar generosidade com aleivosias.
Metade da nota é desprezo por quem não partilha as mesmas idéias e faz uso da liberdade de crítica e de escrita; e desprezo agravado (ou mesmo explicado) por insinuações em volta do fato de eu ser português.

Psicanálise de algibeira
A "pesquisadora" diz, por exemplo, que "o debate mais insistente gira em torno daquele famoso trecho do prefácio da "Formação" em que nosso crítico observa que a literatura brasileira é galho de um arbusto por sua vez secundário no jardim das musas" (desaparece da perífrase o adjetivo "secundário" que qualifica o "galho" na formulação original de Antonio Candido, não obstante manter-se a locução "por sua vez" dele dependente). E vai daí, armada de psicanálise de algibeira, fazendo vista grossa do cuidado com que analiso tanto aquela afirmação como o contexto dela, deduz logo que a insistência serve para "aquilatar" o quanto a metáfora do arbusto "pode ser dolorosa". É baixeza insinuar que sou apenas um português ressentido; mas decerto cômoda: sempre poupa o trabalho de seguir os passos do meu argumento, não insistente, mas demorado, e apenas preocupado com as implicações dessas metáforas, porque nelas se surpreende a lógica da teoria da "formação", e absolutamente nada com o qualificativo de "segunda ordem" aplicado à literatura portuguesa, que aliás subscrevo.
A outra metade decorre simplesmente do que Camilo chamava "extrema parcimónia das faculdades mentais". Constitutiva e irremediável. Num ponto essencial, a "pesquisadora" denuncia-se, desprevenida.
Aceita como evidência que a teoria de Antonio Candido é teleológica e diz que não se vê como poderia ser de outro modo "sob pena de anacronismo". Essa alma singela nunca perceberá que a perspectiva teleológica justamente sanciona o anacronismo que segrega... Se, assim municiada, acredita defender o mestre, não se pode exigir-lhe que entendesse o que escrevi. Posso apenas esperar que, um dia, algum alemão generoso alcance explicar-lhe o que é mesmo teleológico.
Uma obra publicada, sobretudo com a importância e a grandeza da de Antonio Candido, está no mundo para ser lida e estudada, analisada e debatida: e todas as leituras merecem respeito desde que feitas com seriedade, elevação e conhecimento de causa. Não será certamente dona Walnice a provar que ao meu ensaio falta qualquer desses atributos. Já mostrou que o não pode fazer.


Abel Barros Baptista é crítico português, professor de teoria literária e literatura brasileira na Universidade Nova de Lisboa e autor de, entre outros, "A Formação do Nome" e "Autobibliografias" (Ed. da Unicamp).

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