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O ensaísta rebate os ataques ao posfácio que escreveu para "O Direito à Literatura", livro recém-lançado em Portugal que reúne ensaios do crítico Antonio Candido
Uma alma singela
ABEL BARROS BAPTISTA
ESPECIAL PARA A FOLHA
O Mais! resolveu fazer acompanhar de uma nota a entrevista que concedi [em
16/1] a propósito do livro
de ensaios de Antonio Candido por
mim organizado em Portugal e para
o qual escrevi um posfácio ["O Direto à Literatura e Outros Ensaios", ed.
Angelus Novus]. É normal e correto
que os jornais procurem divulgar
ponto de vista independente. Acontece que a redação do Mais! cometeu
dois erros contra os quais devo protestar.
O primeiro foi ter dado à nota o título "Pesquisadora rebate ataques a
Antonio Candido". Um simples título e resvala-se para o terreno bélico,
sugerindo que, onde falo de análise e
debate, faço ataques. Ataques?! Isso,
para mim inaceitável, não pode ser
acidente. O texto da entrevista não
foi publicado na íntegra, o que é
compreensível; mas entre as passagens suprimidas pela redação estavam significativamente aquelas em
que declarava o meu respeito e admiração pelo trabalho de Antonio
Candido e dava à organização do livro o sentido duma homenagem.
Sou forçado a concluir que a entrevista foi ajustada ao teor da nota, e é
impossível não me sentir eu próprio
atacado de forma desleal.
O segundo erro foi ter incumbido
Walnice Nogueira Galvão de redigir
a nota, a tal "pesquisadora", que se
revela um espírito provinciano e
mesquinho e exibe irremediável incapacidade de ler o que escrevi a respeito de Antonio Candido.
Espírito provinciano, porque nega
importância à edição portuguesa
por comparação com traduções de
Antonio Candido noutras línguas.
Manifestamente não reconhece a
importância de haver cá quem o leia,
quem o discuta, quem o admire e
queira que outros mais o leiam, discutam e admirem; não percebe a
ruptura que isso implica com um estado de coisas de décadas e que nem
o Prêmio Camões alterou; e não sabe
o que é ensinar literatura brasileira
em Portugal, ignorando a enorme
diferença que este livro irá causar.
Deslumbra-a o estrangeiro maior, o
alemão, o americano...
Espírito mesquinho, porque desconsidera um ensaio denso e argumentado, atribuindo-lhe, sem provas nem argumentos, o intuito caviloso dum "ajuste de contas". A acusação é mais estúpida que malévola:
que contas tenho eu a ajustar com
Antonio Candido?! E, posto as tivesse, para as ajustar iria dar-me ao trabalho de organizar um livro, contactar o autor, reler-lhe a obra, escrever
longo ensaio, procurar editora? E esta, por sua vez, sendo pequena e de
escassos recursos, arriscava a edição
e batalhava mais de dois anos junto
do Instituto Português do Livro para
obter o apoio financeiro necessário,
apenas com o propósito de me ajudar no ajuste? Caberia à "pesquisadora" comprovar que não disponho
em Portugal (e até no Brasil) de meio
mais econômico e mais eficaz de
ajustar contas.
Quanto ao meu posfácio, a nota
confrange pela indigência. Não chego a perceber, lendo-a, que ataques a
Antonio Candido me imputa, muito
menos como julga rebatê-los. Poder-se-ia pensar que o fervor de defender a honra supostamente maculada do mestre lhe turvou o discernimento. Chegar a dizê-lo seria apenas
generoso, e é insensato gastar generosidade com aleivosias.
Metade da nota é desprezo por
quem não partilha as mesmas idéias
e faz uso da liberdade de crítica e de
escrita; e desprezo agravado (ou
mesmo explicado) por insinuações
em volta do fato de eu ser português.
Psicanálise de algibeira
A "pesquisadora" diz, por exemplo, que "o debate mais insistente gira em torno daquele famoso trecho
do prefácio da "Formação" em que
nosso crítico observa que a literatura
brasileira é galho de um arbusto por
sua vez secundário no jardim das
musas" (desaparece da perífrase o
adjetivo "secundário" que qualifica
o "galho" na formulação original de
Antonio Candido, não obstante
manter-se a locução "por sua vez"
dele dependente). E vai daí, armada
de psicanálise de algibeira, fazendo
vista grossa do cuidado com que
analiso tanto aquela afirmação como o contexto dela, deduz logo que a
insistência serve para "aquilatar" o
quanto a metáfora do arbusto "pode
ser dolorosa". É baixeza insinuar
que sou apenas um português ressentido; mas decerto cômoda: sempre poupa o trabalho de seguir os
passos do meu argumento, não insistente, mas demorado, e apenas
preocupado com as implicações
dessas metáforas, porque nelas se
surpreende a lógica da teoria da
"formação", e absolutamente nada
com o qualificativo de "segunda ordem" aplicado à literatura portuguesa, que aliás subscrevo.
A outra metade decorre simplesmente do que Camilo chamava "extrema parcimónia das faculdades
mentais". Constitutiva e irremediável. Num ponto essencial, a "pesquisadora" denuncia-se, desprevenida.
Aceita como evidência que a teoria
de Antonio Candido é teleológica e
diz que não se vê como poderia ser
de outro modo "sob pena de anacronismo". Essa alma singela nunca
perceberá que a perspectiva teleológica justamente sanciona o anacronismo que segrega... Se, assim municiada, acredita defender o mestre,
não se pode exigir-lhe que entendesse o que escrevi. Posso apenas esperar que, um dia, algum alemão generoso alcance explicar-lhe o que é
mesmo teleológico.
Uma obra publicada, sobretudo
com a importância e a grandeza da
de Antonio Candido, está no mundo
para ser lida e estudada, analisada e
debatida: e todas as leituras merecem respeito desde que feitas com
seriedade, elevação e conhecimento
de causa. Não será certamente dona
Walnice a provar que ao meu ensaio
falta qualquer desses atributos. Já
mostrou que o não pode fazer.
Abel Barros Baptista é crítico português,
professor de teoria literária e literatura brasileira na Universidade Nova de Lisboa e autor de, entre outros, "A Formação do Nome"
e "Autobibliografias" (Ed. da Unicamp).
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