![]() São Paulo, domingo, 23 de março de 1997. |
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Texto Anterior | Próximo Texto | Índice INÉDITO Nova concepção da morte
Como ia morrer, foi-lhe dado o aviso na carne, como sempre ocorre aos seres vivos; um aviso, um sinal, que não lhe veio de fora, mas do fundo do corpo, onde a morte mora, ou, dizendo melhor, onde ela circula como a eletricidade ou o medo, na medula dos ossos e em cada enzima, que veicula, no processo da vida, esse contrário: a morte (decidida sem que se saiba de que sorte nem por quem nem por quê nem por que côrte de justiça, uma vez que era morte de dentro não de fora, como as que causa externa engendra). Ela veio chegando ao ritmo do pulso, sem pressa nem vagar e sem perder o impulso que empurra a vida para o desenlace, para o ponto onde afinal o sistema dispara, cortando a luz do corpo -e a máquina pára. Muito antes, porém, que ocorra esse colapso, chega o aviso da morte, indecifrado, ``lapsus linguae'', sinal errado ou mal pronunciado no código de sais, ou não compreendido deliberadamente: a gente faz ouvido de mercador à voz que a morte noticia pra não ouvi-la, já que não tem serventia ouvi-la e assim saber que a hora está marcada. Só para entristecer-se ante a noite estrelada? Essa é a morte de dentro, endócrina; a de fora, a exógena, provém do acaso, se elabora na natureza ou então no tráfego ou no crime e implacável chega, e nada nos exime da injusta sentença, a moral impoluta, a bondade, o latim, nossa boa conduta, nada: a pedra que cai ou a bala perdida sem razão nos atinge e acaba com a vida. Diz-se que, dessa morte, a notícia também nos chega, aleatória antecipação, na pronúncia da brisa e dos búzios, além do que se lê na carta e nas linhas da mão. Mas, se vinda de dentro ou fora, não se altera essencialmente o fato: a morte, por si, gera um processo que altera as relações de espaço e tempo e modifica, inverte, em descompasso, o curso natural da vida: uma vertigem arrasta tardes, sóis, desperta da fuligem vozes, risos, manhãs já de há muito apagadas, e as precipita velozmente, misturadas, para dentro de si, como fazem as estrelas ao morrer, cuja massa, ao ser prensada pelas forças de contração da morte, se reduz a um buraco voraz de que nem mesmo a luz escapa, e assim também com as pessoas ocorre. E é por essa razão que, quando um homem morre, alguém que esteja perto e que apure o ouvido, certamente ouvirá, como estranho alarido, o jorrar ao revés da vida que vivera até tornar-se treva o que foi primavera. Rio, 9 de dezembro de 1996
FERREIRA GULLAR
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