São Paulo, domingo, 23 de março de 1997.

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice

O que falta ao cinema brasileiro



Ensaios do diretor Julio Bressane trazem marca dos cruzamentos intelectuais
CARLOS ADRIANO
especial para a Folha

Há quem ache que cinema e pensamento são termos incompatíveis. Mas há também quem ache que o filme (meio complexo e composto) é ideal como veículo de idéias. Não é à toa que os realizadores mais inventivos e radicais do cinema sempre se preocuparam em constituir, além do corpo fílmico, um corpo crítico, passando do papel à película (e vice-versa) seu pensamento sensível. Desta estirpe e estampa são Eisenstein, Vertov, Epstein, Bresson, Brakhage, Godard.
Como se não bastasse a evidência projetada na tela de que pode existir vida inteligente num pedaço de celulóide -eis a verdadeira "impressão de realidade" do cinema-, o momento em que diretores viram escritores de cinema pode funcionar, para os arraigados no preconceito de que idéias só valem quando impressas em letras (o suporte canônico do livro como veículo único do saber), como uma introdução ao reconhecimento de que em certos filmes ocorre a "logopéia", dança do intelecto entre os fotogramas na tela.
Na ressaca da recente crise que se abateu sobre o cinema brasileiro, diretores trocaram a câmera pela caneta (por razões e intenções variadas). Dois casos apenas: de um lado, o livro de crônicas de Arnaldo Jabor, com sua pedagogia ambígua (fecundos contrapontos contraditórios) de arroubo e indignação alegórica diante da realidade nacional; por outro, o livro (delírio voyeurista?) de Paulo César Saraceni, empenhado em se gabar (e fartar) de suas estripulias sexuais, entremeadas de omissões históricas e erros crassos, com foco falho, de estilo ralo.
"Alguns", de Julio Bressane, é reflexão teórica de uma práxis ("onde o dizer é fazer", diria Vieira), metalinguagem digressiva e conceitual sobre o fazer e perceber cinema. Coletânea de 12 ensaios (em sua maioria publicados no Mais! e no extinto "Folhetim", ambos da Folha) e dois poemas, é ainda um diário de bordo de seu processo criativo, o modo de pensar e articular temas que ele já transformou em filme ("Brás Cubas", "Sermões") e objetos de próximos projetos (São Jerônimo).
Bressane usa aqui procedimentos de seus filmes instigantes e desconcertantes, que redefinem a experiência da enunciação dos signos e da apreensão do espectador por meio da parataxe de rupturas sintáticas: justaposição de elementos desconexos e disjuntivos, referências refratárias, contrastes e disparates, sinestesias e correspondências entre coisas aparentemente incongruentes.
Combinando erudição e irreverência, o livro mostra um leitor culto e curioso, atento a inesperadas descobertas. Como em seus filmes, os textos apontam para a formação de um singular "paideuma" (de inspiração poundiana), na qual convivem em conversas autores diversos e básicos para a arte, como estímulo e impulso para outros lances da criação. Nesse corte incisivo na carne da cultura, reside um esforço de caráter epistemológico.
O espírito interdisciplinar e intersemiótico com que Bressane faz e vê cinema ecoa em sua escritura literária, mas de modo mais didático. O mote do cinema como "organismo intelectual demasiadamente sensível, que faz fronteira com todas as artes, ciências e a vida" sinaliza o interesse plural de "Alguns" (artigos de música, literatura, filosofia, cinema). A chave do "parece, mas não é" aparece quando Bressane lê num poema de Drummond uma pintura de Tarsila, num filme de Hitchcock um poema de Mallarmé, numa canção de Mário Reis uma caricatura de J. Carlos; quando lê trechos dos "Sermões" como trechos de Welles, Kubrick, Lang; quando faz a decupagem do signo Jerônimo e do signo Vieira por meio do paradigma das fertilizações cruzadas de fontes díspares.
Há ainda textos com alguns de seus "obsessonhos" cinematográficos recorrentes, como a arqueologia da alma cultural nacional na produção popular (Vassourinha, Benedito Lacerda, José Lewgoy) e nas inscrições rupestres (Edgard Braga, Bernardo da Silva Ramos, o poema "Rio" no filme "Tabu"), além do mito inesgotável do "Dest-Limite" (Mario Peixoto - Edgar Brazil). Assim como a formulação de Gance ("o cinema é a música da luz") atravessa todo o livro, a e-vocação do filme como organização mental sensível e sutil é incidência constante, encontrando porto de contornos efetivos no belo "Cinema Deleuze".
Os ensaios de Bressane pertencem à linhagem da "prosa porosa" de Augusto de Campos, não tanto pela forma evidente (o recorte de frases no espaço, segundo rigor de poeta), mas pelo procedimento da montagem de idéias, ideograma. "Alguns" traz um pensar aforístico, fora de esquadro, que atualiza o clichê de uma prosa cinematográfica numa outra clave, valendo-se de uma gramática sincopada, coagulada de paranomásias, neologias e metáforas, associando literatura e cinema (tomando elipses como "fades", reticências como véus, pontos de interrogação como close-ups; vislumbrando "travellings", cortes, angulações na sintaxe verbal).
Pensar o cinema seria um começo para se fazer (bem) o cinema. Faria bem a essa forma complexa de expressão do conhecimento e da sensibilidade (como viam as utopias generosas até os anos 60), hoje degenerada pelo vulgar espetáculo de entretenimento (a fácil vala da moeda comum do mercado). No cinema brasileiro, como na vida cotidiana, pensamentos sensíveis fazem mais falta ainda. Alguns já bastaria.


Carlos Adriano é diretor de cinema; com Bernardo Vorobow, organizou o livro "Julio Bressane: CinePoética".

Texto Anterior | Próximo Texto | Índice


Copyright 1997 Empresa Folha da Manhã