São Paulo, domingo, 23 de março de 1997.

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WR, quem diria...

MARIA RITA KEHL
especial para a Folha

Nos anos 70, quem não se lembra? Wilhelm Reich chegou ao Brasil. E foi bom que chegasse, sacudindo a poeira das clínicas rogerianas, dos ``I'm ok, you are ok'', dos divãs abafados da psicanálise oficial cinco vezes por semana a preços inacessíveis. Foi bom que chegasse na universidade, onde aprendíamos a ensinar ratinhos skinerianos e a aplicar testes, já que os melhores professores tinham sido presos ou cassados. Nos anos 70 fomos todos reichianos, como fomos de esquerda, como fomos contra a ditadura e a favor da liberdade sexual.
A obra de Reich trouxe um apoio teórico e ideológico para nossas esperanças. Recuperou para a psicanálise sua radicalidade primordial, ao fazer do sexo, concretamente, a força motriz do inconsciente -e do inconsciente sexuado a força que revolucionaria o mundo.
A concretude anatômica de sua concepção sobre o sexual lhe valera a exclusão do círculo freudiano, em 1934, assim como a associação sexo-política (a Sexpol) lhe custara a expulsão do PC alemão. Um herói, um maldito, um visionário, um ``drop-out'', cujo discurso apontava com alegria para nossos corpos e seu poder explosivo -nos anos 70, cada clínica reichiana era como um depósito de armas clandestinas. ``A Função do Orgasmo'', ``Psicologia de Massas do Fascismo'' e ``Análise do Caráter'' (o melhor e mais difícil de seus livros, que quase ninguém leu) teriam sido nossos manuais de técnicas de guerrilha: o corpo contra o poder.
Mas então a abertura começou, lenta e gradual. Caetano Veloso disse que era para o mundo ficar odara (uma chatice que eu nunca lhe perdoarei). A indústria cultural descobriu que o corpo, antes de uma potência revolucionária, tinha um enorme potencial de mercado -a revolução sexual foi para os shoppings, as academias e as novelas de televisão. A bioenergética reichiana, começando pelos trabalhos de Alexander Lowen nos EUA (como sempre), foi perdendo o apelo político e, em seguida, sua conexão com o inconsciente.
O corpo bioenergético virou uma coisa autônoma, um objeto a se manipular e a se adequar à cultura do narcisismo. Alguns profissionais sérios ainda pesquisam uma clínica reichiana consequente, mas são minoria aqui. Reich no Brasil, quem diria, virou musculação, aeróbica, além do bom e velho Carnaval.


Maria Rita Kehl é psicanalista, poeta e ensaísta, autora de ``A Mínima Diferença'' (Imago), entre outros.

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