São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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Topografia literária da violência

ESCRITORES DO "REALISMO URBANO", NA COLÔMBIA, DA GERAÇÃO "CRACK", NO MÉXICO, E DO GRUPO "MCONDO", NO CHILE, REJEITAM BUSCA DA IDENTIDADE NACIONAL, EXPERIMENTAM NOVAS FORMAS NARRATIVAS QUE DÊEM CONTA DE SUAS INQUIETUDES EXISTENCIAIS E DA DEGRADAÇÃO SOCIAL DA AMÉRICA LATINA

Marcos Flamínio Peres
Editor-adjunto do Mais!

Sai Macondo, entra Cidade Imóvel. O povoado imaginário de Gabriel García Márquez, que situou a América Latina no mapa da literatura ocidental e fez de "Cem Anos de Solidão" um romance incontornável, está sendo atropelado pelas inquietudes existenciais e a violência urbana, retratadas por uma nova geração de autores espalhados pelo continente, sobretudo na Colômbia. Epicentro dessa nova prosa contemporânea, as metrópoles coalhadas de desigualdade social, racismo e criminalidade se sobrepõem ao imaginário rural que caracterizou o realismo mágico. Nascidos nos anos 60 e 70, esses novos autores, ainda completamente desconhecidos no Brasil, incorporam diversos elementos da cultura pop -desde a TV e histórias em quadrinhos até o rock- e adotam como modelos literários não tanto García Márquez e Mario Vargas Llosa, mas sobretudo Raymond Carver e Paul Auster. Contudo esses novos autores partilham com seus predecessores "mágicos" tanto a boa projeção internacional na Europa e nos EUA quanto a boa vendagem em casa e no exterior. Um dos expoentes desse novo boom é Efraim Medina Reyes (1970), cujas "Técnicas de Masturbação entre Batman e Robin" estão sendo publicadas no Brasil nesta semana pela editora Planeta. Mosaico de narrativas, o romance tem como cenário a violenta e decadente Cidade Imóvel, alegoria mal disfarçada da litorânea Cartagena, onde nasceu o autor. Trata-se de uma Macondo em negativo: "Nós que vivemos na Colômbia sabemos que as pessoas aqui não voam pelos ares vítimas de um esconjuro, mas, sim, de uma bomba", diz Medina Reyes. E arremata: "A magia colombiana é um produto de García Márqueting. Macondo lhe deu muito dinheiro e atraiu muitos turistas europeus". García Márquez e o artista Fernando Botero são os alvos prediletos de Medina Reyes. De fato, as inquietudes beat-existencialistas do protagonista de "Técnicas de Masturbação" (2002), o escritor fracassado Sergio Bocafloja, não escondem a falta de perspectiva econômica, social e cultural de personagens desnorteadas e "sem oportunidades", vivendo sob um Estado em dissolução e acossado pelo narcoterrorismo. A temática da violência também é comum a outros nomes dessa geração, sobretudo Mario Mendoza e Jorge Franco. Em "Satanás", Mendoza (1964) parte de acontecimento verídico -uma chacina promovida nos anos 80 por um ex-combatente do Vietnã- para delinear uma Bogotá caótica, autodestrutiva e apocalíptica. Menos apelativo do que sugere o título, "Satanás" (2002), como definiu o autor, é "uma força psíquica que ronda os personagens para levá-los a uma viagem ao inferno" -trata-se de uma reflexão sobre o princípio metafísico do Mal, propiciado pelo caos social urbano. Já em "Rosario Tijeras" (1999), que viu esgotada sua primeira edição em apenas dois dias, Franco (1962) toma como pano de fundo as ruas de Medellín, dominadas pelo tráfico de drogas e os ataques das guerrilhas. Romance de uma violência contundente, Franco argumenta, beirando o clichê, que na Colômbia é preciso "derramar sangue no texto", pois a "realidade supera a ficção".

Indistinção entre culturas
O crítico Raymond Williams, que leciona literatura latino-americana na Universidade da Califórnia, identifica, além da temática da violência urbana, duas outras características dessa geração: "A nova presença dos meios de comunicação (em particular a televisão), como algo mais importante que a tradição literária (uma mudança enorme), e uma nova forma de utilizar a cultura popular".
Embora pouco dados a sofisticações teóricas e avessos aos analistas que insistem em discuti-los em conjunto, esses autores partilham, contudo, um certo experimentalismo narrativo -algo que também os opõe, no plano da forma, à prosa copiosa do realismo mágico. Histórias estilhaçadas, em forma de diálogos de TV e roteiros utilizando fartos recursos gráficos, como em "Técnicas de Masturbação". Personagens apenas esboçadas, diálogos curtíssimos e cortes abruptos, como em "Satanás". Já "Rosario Tijeras" se trata, nas palavras do próprio autor, de um romance com "uma vertiginosidade cinematográfica".
Williams também vê nos escritores colombianos recentes um paralelo com seus colegas de outros países latino-americanos, como o grupo McOndo, do chileno Alberto Fuguet, a geração "crack" (referência a ruptura, e não à droga), que inclui nomes como Jorge Volpi e Ignacio Padilla, e mesmo a brasileira "Geração 90" [leia quadro na pág. 8]. Esses grupos têm em comum "uma relação especial com a cultura popular: não fazem distinção entre o que era "alta cultura" e a "cultura popular'", afirma Williams.
É da mesma opinião Francisco Ortega, professor de espanhol e português na Universidade de Wisconsin (EUA), o que justificaria a "grande força do romance policial" para esses autores. Ortega acrescenta que todos eles também são marcados pelo "desencanto -isto é, a noção de que a utopia não é necessariamente algo realizável". Ou realizável apenas como paródia, como propõe Medina Reyes.

Realismo mágico

Macondo
 
fusão de descrição objetiva do cotidiano com elementos míticos e fantásticos
 
releitura da história latino-americana e das identidades nacionais
 
apropriação de fontes populares e nativas
 
forte tendência narrativa
 
Gabriel García Márquez, Mário Vargas Llosa (peruano), Isabel Allende (chilena), Alejo Carpentier (cubano), Miguel Ángel Astúrias (guatemalteco)

Realismo urbano

Cidade Imóvel
 
crítica social
 
temática contemporânea, como a violência nas cidades e o narcotráfico
 
incorporação de elementos da cultura de massa, como música pop, história em quadrinhos, TV e cinema
 
narrativa estilhaçada e com cortes abruptos
 
Efraim Medina Reyes, Mario Mendoza e Jorge Franco (colombianos), Alberto Fuguet (Chile)

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