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Ponto de fuga
Fiel e luminoso
Com o recuo de três ou quatro passos, o horizonte se
aprofunda. Os acordes largos de azul, rosa, verde vibram, então, calmos e harmoniosos. Quando o olho se
aproxima, são múltiplas pequenas manchas que descobre, formando árvores e casas entremeadas pela cerração, ou morros sem conta, perdendo-se ao longe. Há
transições dosadas com cuidado, configurando progressivas intensidades do céu azul, ou as passagens do
vermelho para o laranja, do laranja para o lilás, nos pores-do-sol.
Gonzaga Duque, em seu "A Arte Brasileira", de 1888
(Mercado de Letras), insistiu no caráter minucioso próprio aos quadros de Facchinetti, tratando o pintor de
"miniaturista". Levado pela idéia de rigor e exatidão,
que acredita determinantes nessas telas e que, de resto,
era confirmada pelas declarações do próprio artista,
Gonzaga Duque conclui limitando o próprio entusiasmo. Mas sua sensibilidade soube ir além da convicção e
assinalou também a síntese mais larga, capaz de integrar detalhes. Assim, evoca uma paisagem da baía de
Guanabara, tomada do Alto da Boa Vista: "O panorama
é vastíssimo. A vista sente-se bem diante daqueles esmeraldinos campos, diante daquele céu infinito em que
o sol das onze horas brilha com toda a sua luz tonificadora. Vê-se de longe, numa sucessão gradativa, as matas, as pequeninas casas das fazendas, os montes, a alvíssima fumaça dos roçados que se extinguem, o mar
sereno e a curva acidentada das montanhas. A luz inunda essa natureza, uma grande luz que faísca das pedras,
vivifica os campos e os ervados, suaviza os horizontes
através de uma neblina azulada, tênue, doce, erradia".
Entretom - Gonzaga Duque tem uma exigência de espírito romântico diante das paisagens de Facchinetti: "Pequena ou quase nenhuma parte da comoção sentida pelo artista a obra possui". De fato, não são quadros sentimentais. Mas são obras que vão muito além do documento iconográfico.
É verdade que o estudioso tem nelas uma excelente
fonte de informações visuais sobre as fazendas e sobre o
Rio de Janeiro do passado. Facchinetti "lança mão de
lentes de aumento", como diz Gonzaga Duque, para obter uma nitidez impossível ao olhar desarmado e emprega um "sistema".
Apesar de suas paisagens se originarem em anotações
visuais diante do motivo, nas quais ele incluía a observação da luz captada num horário preciso que vem inscrito, com cuidado, no verso de certas telas, o caráter
definitivo do trabalho se dava em ateliê, por um processo construtivo para além da observação. Daí as múltiplas réplicas, quadros copiados um sobre o outro, nos
quais as variantes são invenções "mentais", e não sugeridas pelo visível mais imediato. Tais modos de fazer
poderiam engendrar a repetição cansativa de formas.
Ora, de tela para tela, a qualidade não se perde e o interesse renasce, já que o "sistema" permite a infiltração de
nuanças novas, capazes de renovar a poesia. É inegável:
pinturas sem comoção, talvez, mas nunca sem uma respiração poética muito própria.
Festa - Pelo seu grande sucesso, pelos temas locais, por
seu papel como professor, Facchinetti (1824-1900), nascido na Itália, é um artista de primeira importância nas
artes brasileiras do século 19. O Centro Cultural do Banco do Brasil, no Rio de Janeiro, dedica-lhe uma exposição substancial, a primeira, diz o catálogo, a lhe ser integralmente consagrada. As escolhas são muito felizes, a
disposição é discreta e inteligente, sugerindo comparações estimulantes entre as diversas obras.
Opaco - A cultura no Brasil do século 19 como que criou
um véu de mitos que se interpôs diante de uma percepção mais verdadeira das coisas. O esplendor do indianismo, por exemplo, ocultou, em muito, realidades incômodas e presentes. Os pintores brasileiros investiram
na história heróica e na invenção literária. Talvez seja
sintomático: os grandes paisagistas, os que deixaram
imagens deste país naqueles tempos, Debret, Taunay,
Rugendas, Vinet, Bauch, Grimm, Facchinetti, foram,
muitos, estrangeiros, já que os nacionais se perdiam no
imaginário.
Jorge Coli é historiador da arte.
E-mail: jorgecoli@uol.com.br
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