São Paulo, domingo, 23 de maio de 2004

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Um eficiente trabalho de copidesque

"Longe da Água", de Michel Laub, e "Os Lados do Círculo", de Amilcar Bettega Barbosa, buscam linguagem neutra, mas seus enredos carecem de peripécias

Paulo Franchetti
especial para a Folha

Longe da Água", de Michel Laub, e "Os Lados do Círculo", de Amilcar Bettega Barbosa, têm em comum o objetivo de escrever uma narrativa interessante numa linguagem despida. Numa linguagem próxima daquela que Mário de Andrade, em 1939, ao resenhar uma antologia de contos brasileiros publicada em francês, lamentava não existir no Brasil. Lembrei-me da resenha de Mário de Andrade porque durante a leitura me pareceu sensível o esforço de conseguir um registro lingüístico neutro, que canalizasse a atenção para as nuanças psicológicas do narrador, no caso de "Longe da Água", ou para a montagem do enredo na forma de uns quebra-cabeças, no caso de "Os Lados do Círculo". Naquele artigo, o modernista argumentava que, enquanto na França um principiante podia pouco se distinguir de um veterano, no Brasil todos os grandes escritores tinham de criar uma expressão lingüística peculiar. O problema detectado por Mário de Andrade ainda permanece vivo. E uma das suas conseqüências é que o lugar-comum ganha peso, acaba por tornar-se, como nesses livros, ao mesmo tempo objetivo e obstáculo. Uma personagem de "Os Lados do Círculo" confessava escrever para "ter um pouco daquilo que é fundamental e que está além dos clichês românticos, mesmo sendo numa inevitavelmente repleta de clichês artificial (e tão verdadeira) página de história minha". Uma outra apresentava a questão que, quanto a mim, permanece indecidível após a leitura de ambos os livros: "Os clichês estão aí para quem quiser usar, ou para quem não consegue evitá-los".

Cortázar personagem
Quanto à estrutura geral, "Os Lados do Círculo" é tenso e inventivo. As dez histórias, divididas em dois blocos, vêm precedidas de um texto no qual se nomeiam e apresentam rapidamente todas as personagens principais. A seqüência, cujo desenho se apresenta no primeiro e no último textos, não é apreensível imediatamente. O conjunto se explicita como puzzle, e tanto a metáfora quanto o procedimento trazem a indicação de origem: o próprio Cortázar é personagem numa história. A sofisticação do conjunto e a experimentação na forma de dispor alguns diálogos não dissolvem, entretanto, a previsibilidade da construção imagética e a profusão dos qualificativos: "Sentiu verdadeiro horror ao perceber o movimento vertiginoso das baratas flagradas pela claridade, correndo desordenadamente para um lado e outro sobre o piso frio da cerâmica. Havia, naquele deslocamento de manchas vivas e marrons, um caos que dava dinâmica àquela peça fria e distante, sempre fechada e resguardada...". Também no enredo de cada história, o lugar-comum comparece com o seu duplo sinal. De tal forma que, mesmo quando a sua utilização parece irônica, é sempre possível lê-la como fatalidade. Outro problema ligado ao ponto central desse discurso, sempre às voltas com a tentativa de incorporar e superar o lugar-comum da linguagem e da estruturação narrativa, é um efeito de indefinição quanto ao registro realista ou alegórico. Em princípio, cada uma das histórias parece configurar-se como notação realista. Contribui para essa impressão o fato de sucederem-se vários pontos de vista narrativos, como a garantir a coerência do ponto de vista de cada parte. Num dos textos, inclusive, o narrador se identifica como Amilcar, e é indagado sobre estar escrevendo uma história sobre um grupo de pessoas que deixava objetos estranhos, dispostos de forma enigmática, na beira do Guaíba. O grupo e a prática referidos pela interlocutora do "autor" comparecem no primeiro texto do volume.

Enredo previsível
Nessa mesma peça do puzzle, a interlocutora se refere a um artista que inventa histórias a partir de fotos de pessoas que segue na rua e nunca conheceu. O mecanismo da construção do livro, nesse ponto, se explicita. Mas justamente por conta desse esforço de "trompe l'oeil", de ilusão e reivindicação de leitura realista, mais problemáticas parecem a uniformidade estilística ao longo das várias partes e a previsibilidade do enredo da maior parte das histórias (ou o seu avesso: os vários momentos de resolução inverossímil). No que diz respeito ao uso de linguagem, bem como ao registro realista, "Longe da Água" parece mais harmônico, mais bem resolvido, por conta da narrativa plana, em primeira pessoa, de cariz memorialista. O que não quer dizer que o efeito dessa harmonia de fins e meios seja mais positivo para a leitura, pois a notação psicológica, que é o cerne do livro, tanto pode ser descrita como sutil quanto ser tomada como tímida.


A previsibilidade é um atributo de peso, seja da frase, seja da estrutura geral dos capítulos


Voluntariamente sem relevos, o texto escorre de uma ponta a outra sem saltos nem sustos. Aqui também a previsibilidade é um atributo de peso, seja da frase, seja da estrutura geral dos capítulos. De tal forma que o final, que poderia ser um ponto de surpresa ou novidade, acaba por parecer apenas um jeito de encerrar um discurso que, naquele tom e forma, poderia continuar para sempre. O que atrai, na leitura de "Longe da Água", não é nem a história nem a linguagem. Por princípio, o registro confessional em primeira pessoa, elusivo, dispara a desconfiança do leitor. Aquilo que não é dito, que é apenas discretamente insinuado, ou que aparece "contra a vontade" do narrador, passa a ocupar, nesse tipo de discurso, o centro da atenção.

Tensão mínima
Mas, nesse caso, o que sucede é que a releitura não permite identificar um ponto de interesse psicológico que a justifique. Como a narrativa não tem surpresa nem a linguagem, novidade, a leitura mais generosa é a de que o ponto de interesse desse livro talvez seja justamente não ter um ponto forte de interesse, apresentar-se como relato voluntariamente plano, sustido por uma tensão narrativa mínima.
Embora muito diferentes quanto à conformação geral, lidos em conjunto os dois livros revelam um traço de família. Ambos parecem almejar a uma linguagem padrão, neutra como se resultasse de um eficiente trabalho de copidesque, na qual se possa vazar uma narrativa regulada pela coerência psicológica e pelo ponto de vista realista. Mas, ao eleger uma tal linguagem, a responsabilidade do interesse reflui todo sobre a ação ou para os eventuais comentários à ação e à construção da narrativa. E esse é o problema desses dois livros: em ambos a narração decorre de modo pouco reflexivo e o enredo se apresenta desprovido de nós e peripécias.
Resta assim, como interesse, a constatação do investimento numa linguagem padrão e neutra de prosa literária. E a contraposição de ambos, por esse modo, à vulgarização dos "estilistas", que é como Mário denominava os que buscavam uma nova "maneira". No campo de forças da literatura brasileira contemporânea, é algo a ser levado em conta, junto com a rápida construção de idioletos e rótulos cuja principal razão parece ser criar fatias e necessidades de mercado.

Paulo Franchetti é professor de literatura na Universidade Estadual de Campinas e autor de, entre outros, "Nostalgia, Exílio e Melancolia - Leituras de Camilo Pessanha" (Edusp).

Os Lados do Círculo
176 págs., R$ 32,00
de Amilcar Bettega Barbosa. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, cj. 32, CEP 04532-002, SP, tel. 0/ xx/11/3707-3500).

Longe da Água
120 págs., R$ 28,00
de Michel Laub. Companhia das Letras.



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