São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999
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O Ocidente brasileiro

Reuters
Funcionária limpa réplica gigante de teclado de computador em feira na Alemanha


especial para a Folha, em Munique

Leia a seguir a entrevista de Ulrich Beck à Folha, realizada no Instituto de Sociologia da Universidade de Munique.

Folha - O que o sr. entende por "brasilização" do Ocidente? Por que não dizer "mexicanização" ou "argentinização" do Ocidente?
Ulrich Beck -
Por brasilização do Ocidente penso em primeiro lugar numa imagem-chave de uma mudança: de que o Primeiro Mundo, e sobretudo a Europa, não mais determina automaticamente os fins da modernização, mas que, simultânea e paralelamente, países do Segundo Mundo ou países como o Brasil determinariam agora os fins do novo processo de mundialização. Isso se aplica a muitos campos, como o da sociedade do trabalho, conforme a tese que desenvolvi no centro do meu último livro, mas se revela ainda em muitos outros setores. Naquele campo, observamos na Europa e nos EUA uma nova dominância dos setores informais e da economia informal, fenômeno com que o pesado Estado ocidental regulador tem enormes dificuldades de se relacionar. A flexibilização e a pluralização do trabalho contradizem frontalmente a imagem do regime de plena ocupação do trabalho, e, nesse processo, está embutida uma revolução latente para a qual não temos ainda nenhuma resposta apropriada.
Minha proposta, à qual vinculo o conceito de brasilização, é que devemos nos despedir finalmente da enorme arrogância e auto-estima ocidentais e olhar com atenção para o que está acontecendo em outros países. Nesse caso, poderíamos perguntar, como você aponta com razão, por que eu teria escolhido exatamente o Brasil e não o México ou a Argentina. Poderíamos também apontar a Índia ou países de outros continentes para analisar esse mesmo processo.
Há três anos estive no Brasil, e essa experiência foi decisiva para mim. Ainda estou com a impressão de que nenhum outro país no mundo colocou de tal maneira em xeque minha autocompreensão como "cientista social europeu estabelecido", como se essa frágil suposição pudesse nos proteger do novo. A quem quisesse se despedir dessas certezas européias, eu sugeriria ir urgentemente ao Brasil.
Folha - A sua avaliação da brasilização parece ser positiva e coerente com o modelo da Sociedade do Risco. Mas quais são as vantagens de se brasilizar o Ocidente?
Beck -
Sim, ela é positiva e pretende indicar outros fenômenos que não pertençam apenas ao campo do trabalho. Por isso o Brasil é paradigmático como nenhum outro país. O que os europeus também podem aprender com o Brasil é a relação com as diferenças étnicas, a necessidade de aceitar e relacionar-se com as essas diferenciações, com as quais, na Alemanha ou em outros países europeus, temos ainda sérias dificuldades e -me corrija se eu estiver idealizando o Brasil- a relação com esta "soberania múltipla", que a Europa não dá mais mostra de administrar, uma identidade européia que não abrangeria mais apenas os Estados nacionais, como a Alemanha e Reino Unido, que ainda pretendem dar prioridade a sua soberania, em vez de redistribuí-la entre os novos Estados europeus.
Ou seja, o Brasil é modelo de muitos aspectos que eu julgo de importância decisiva para a compreensão da Segunda Modernidade, cujos elementos parecem impregnar mais países da assim chamada "modernização recuperadora" do que aqueles que estão no centro do moderno.
Folha - Se o Brasil, como sr. afirma em seu livro, é a "desordem do progresso" ou "o fim de um modelo universal do Moderno" e, portanto, da utopia da sociedade do trabalho, ele seria então paradoxalmente, em sua tese, o futuro do passado e de outros "caminhos do moderno": passado de uma utopia da sociedade do trabalho e futuro do modelo liberal que hoje dá as regras do jogo. Não lhe parece contraditório esse esquema?
Beck -
Acho essa figura de um "futuro do passado" muito pertinente. Ela diz respeito a uma tese que formulei sem saber. Temos de tomar cuidado para não cair numa idealização invertida. Formulei essa tese num contexto europeu e ela não fala diretamente do Brasil, mas da Europa, e procura quebrar alguns preconceitos.
Em primeiro lugar, o que acho central é a idéia de que possamos ainda conservar no futuro a política do nosso Estado de Bem-estar Social e a democracia, nessas bases. Considero essa uma das maiores ficções da Nova Esquerda e da política da Terceira Via, tal como ela se revela diferentemente em chefes de governo como Bill Clinton, Tony Blair e Gerhard Schröder. Todos os três sabem muito bem, cada um a seu modo, que o pleno emprego, em sentido tradicional, tornou-se uma ficção no capitalismo digitalizado. Mas eles são heróis tão "populistas" de seus partidos políticos, digamos, chegaram ao poder tendo por retaguarda um fundamento tão populista, que lhes é vedado dizer a verdade aos trabalhadores.
Poderíamos dizer de maneira mais incisiva que os políticos -ou a política desses três chefes de Estado- são feitos de um oportunismo com "face humana". Devemos superar a ficção do regime de plena ocupação do trabalho no Ocidente e temos de nos perguntar como a democracia pode ser fundamentada, de maneira renovada, além do pleno emprego, revitalizada nas malhas do cotidiano. Temos de acrescentar que essa questão central, que se coloca na Europa e também em outros lugares -se meu diagnóstico estiver correto-, não teve até agora uma resposta única e linear, nem mesmo no Brasil. Nessa medida, penso a brasilização do Ocidente como uma situação descritiva que opera uma aproximação mais nítida com um novo horizonte desconhecido, em lugar de referir-se a objetos que já foram descritos no passado. Contudo, fique claro, a brasilização é apenas a imagem dessa aproximação e não pode ainda retratar o futuro da democracia e da sociedade do trabalho.
Deixe-me formular a questão a partir de um outro ponto de vista, ou seja, a partir da distinção entre a Primeira e a Segunda Modernidade. O problema da brasilização é a diferença entre a Primeira e a Segunda Modernidade. A Primeira Modernidade era essencialmente organizada, por Estados nacionais, em sociedades "containers" -a idéia de que a sociedade pudesse ser organizada como recipientes do Estado, com esferas que pudessem ser dispostas em compartimentos estanques.
Em segundo lugar, ela decorria da suposição de uma identidade coletiva de classes ou grupos étnicos a partir de uma cultura homogênea e religiosa, que possibilitava uma organização política compatível. Em terceiro lugar, o que já discutimos, baseava-se na sociedade de pleno emprego, ao menos como idéia-guia. E em quarto lugar, por fim, assentava-se na idéia de uma natureza incessantemente explorável como pressuposto do crescimento econômico contínuo. Contra essa idéia-guia, ou os princípios básicos da Primeira Modernidade, radicalizou-se agora na dinâmica imanente da modernização um curto-circuito nesses quatro processos, que os colocam em xeque sistematicamente e apontam para a sua superação.
Em primeiro lugar, na globalização entendida em sentido econômico, mas também em sentido político e social. Com isso, rompe-se a idéia dos "containers" sociais, cujos domínios agora se interpenetram. Em segundo lugar, a individualização do interior da sociedade torna problemática a idéia de uma identidade coletiva em classes ou etnias que possam ser reduzidas a um denominador comum ou traduzidas politicamente pelos partidos; dessa forma, elas dificilmente ainda encontram validade numa democracia parlamentar.
Daí, e paralelamente a isso, temos uma revolução nos papéis sexuais e nas relações entre homens e mulheres no cotidiano, no campo profissional e na política, numa modificação radical dos papéis tradicionais entre os gêneros. Finalmente, em função da crise ecológica aguda, houve uma ampliação do conceito de natureza, de modo que não se pode mais partir do princípio de que os recursos naturais para a produção estejam disponíveis sem questionamento.
Na verdade, trata-se do contrário: com a destruição global da natureza, desenvolve-se um novo tipo de desafio para a Segunda Modernidade, que eu denominei de a Sociedade de Risco. O problema principal da Segunda Modernidade é que todos os países, de uma maneira ou de outra, encontram-se simultaneamente diante desse desafio. Ou seja, as soluções políticas e econômicas dependem antes de tudo de uma perspectiva da imbricação global desses problemas e dessa simultaneidade.

Precisamos quebrar a gaiola conceitual da sociedade de pleno emprego, para a qual a identidade só se constitui do trabalho regulamentar


Folha - O sr. propõe como idéia central o "trabalho civil remunerado com dinheiro civil". O que significa exatamente isso?
Beck -
O Brasil desafia a imaginação sociológica como um laboratório único, no qual nossas certezas se desfazem. A metáfora da brasilização busca traduzir esse movimento, esse dinamismo no qual não existe mais um sentido preferencial para o moderno. Certamente as tarefas da Primeira Modernidade ainda são uma pauta necessária para os milhões de excluídos no Brasil, mas a Segunda Modernidade é a simultaneidade do risco global, e os problemas se traduzem nessa escala, como prova a desagregação da sociedade do trabalho e a universalização do desemprego.
O modelo de trabalho civil tenta reconhecer todos os desempenhos criativos que se destinem à comunidade local, mas que se traduz também num espaço transnacional. Ele é apenas uma dentre as muitas instituições que temos de conceber para o futuro, pois trata-se inicialmente de uma experiência, que não se sabe ao certo aonde conduzirá.
A idéia de trabalho civil também é um modelo de aproximação, uma plataforma que leve os homens a reencontrar sua criatividade e a produzir o novo, na escala de suas existências individuais, passo a passo, no seu pequeno círculo, forjando as respostas a esse gigantesco desafio da Segunda Modernidade. O fato é que precisamos, por um lado, romper a gaiola conceitual da sociedade de pleno emprego, ou seja, de que a identidade apenas se constitui da seguridade social e por meio do trabalho regulamentar, e, por outro, refundar a democracia no cotidiano. Em vez de financiar o desemprego, como hoje dita a falta de imaginação burocrática, é preciso fortalecer a sociedade política dos indivíduos.
Folha - Mas, como lhe pergunta o ministro alemão do Trabalho, Walter Riester, seria possível romper o círculo vicioso da fixação nos valores da sociedade do trabalho com um simples apelo?
Beck -
Se o ministro do Trabalho recoloca essa questão é porque o trabalho regulamentar é também o meio de controle social, uma forma de controle do Estado sobre o cidadão, pois o moderno legitimou também relações de poder na democracia. A questão que se coloca é como os homens estruturam seu tempo quando esse tempo não pode mais ser preenchido pelo trabalho regulamentado, como essa jurisdição do trabalho pode ser renovada no momento em que a sociedade do trabalho começa a ser superada. Quando se deseja dar o próximo passo para o trabalho civil e romper a prisão da sociedade do trabalho, temos de ver exatamente o que está acontecendo na sociedade. Ao lado do trabalho regulamentado, abre-se um leque de outras atividades. Quando consideramos como os homens ocupam seu tempo, percebemos que o trabalho regulamentado desempenha um papel cada vez menor.
Folha - Para o chanceler alemão Jochska Fischer, seu amigo, a globalização se define como um salto tecnológico que reduz os custos do capital e das transferências financeiras a quase zero, dada a instantaneidade de circulação à velocidade da luz. O valor de capital não se afere mais em marcos ou dólares, mas em bits e bytes. Ora, essa incongruência entre o espaço econômico e o espaço de jurisdição estatal exige de países como o Brasil uma estratégia seletiva de integração no mercado global pela regionalização, pelo Mercosul. Ou, como afirma o presidente Fernando Henrique Cardoso, nesta etapa do capital globalizado a pergunta é "para quem?" no lugar de "para quê?". FHC não espera mais a resposta dos teóricos, mas de uma prática que ele chama de a "mãe de todas as teorias". Como o sr. avalia essa estratégia?
Beck -
Comecemos com a perspectiva da globalização e tentarei me colocar na perspectiva do Brasil. Não sei se conseguiria traduzi-la, mas posso tentar. Inicialmente, por meio da globalização econômica, da velocidade espantosa dos fluxos financeiros pelo mundo, os impostos estatais despencam drasticamente, o Estado se desnacionaliza e vê evaporar sua soberania econômica.
Nesse intervalo, as decisões estratégicas que dizem respeito a um país não se processam mais nos gabinetes de governo, mas sim em instâncias anônimas da economia globalizada, não mais de um ponto de vista político, mas de acordo com a lógica abstrata dos interesses desses atores. Não acredito numa estratégia conspiratória de um ou outro conglomerado para subjugar regiões ou países, mas na passagem de uma Primeira para uma Segunda Modernidade -de um Estado nacional e sua soberania econômica para a desarticulação desse Estado e a desterritorialização de sua economia.
Se quiséssemos traduzir a coisa de uma maneira irônica, diríamos que na Primeira Modernidade o Estado, os sindicatos e a economia brincavam de peteca. Então a economia ganhou de presente uma bicicleta e abandonou o território. Assim, Estado e sindicatos têm de chamar a mamãe. Quando o Estado se encontra nessa desorientação, trata-se então de redefinir a política em sentido transnacional, de certa forma, aprender a economia e redefinir a política nesse outro patamar. Isso começa quando os atores políticos, indo além do jogo diplomático habitual, interagem diretamente em rede para estabelecer um espaço de negociação que interfira no Estado nacional.
Venho enfatizando essa idéia na mídia: os partidos políticos devem se tornar atores transnacionais, estabelecendo e trocando diretamente com outros partidos estratégias políticas além desse espaço nacional, como um contrapeso a esses atores econômicos livres no mercado global. Para a Europa, essa idéia é central. Mas isso vale também para a América Latina, o Mercosul e a Ásia.
Não será possível uma sociedade política mundial em que todos os países possam se representar com o mesmo peso, mas, por intermédio da regionalização, esse papel pode ser acentuado como contrapeso político à economia globalizada e aos atores econômicos hegemônicos desse espaço regional.
Ou seja, é preciso criar nesses espaços regionais condições de negociações que coíbam a especulação desenfreada e aumentem a arrecadação de impostos de seus Estados, garantindo um sistema de seguridade comum diante da universalização do risco, e até muitas vezes uma política protecionista para defender seus interesses e fortalecer sua identidade.
Essa é uma resposta política à economia globalizada. Isso não deve ser confundido com a tentativa de desatrelar-se desse mercado global, o que tampouco é possível, mas se trata de desenvolver as próprias forças. Poderíamos falar do Mercosul como uma espécie de "diamante sul-americano" que se desenvolvesse como uma alternativa especial para o mercado mundial, cujas forças regionais de seus inestimáveis recursos humanos e naturais, representadas e fortalecidas politicamente, tornam-se um centro dessa região.
Prezo particularmente seu presidente, pois é o único presidente que conheço que é sociólogo e cujos textos li com muita atenção. Mas ele tem razão, e ao mesmo tempo não tem, quando afirma que se deve esquecer aquilo que ele escreveu. Pois a iniciativa para uma política radical de regionalização não dispensa mais a teoria, ou a "mãe das teorias", muito pelo contrário. Tanto políticos quanto teóricos têm de ter fantasia, imaginação sociológica. Eles precisam de fantasia, e não é na praxis, mas na teoria, que ela se forja.
Folha - Não lhe parece problemático falar de "sociedade civil mundial" quando a Alemanha nem sequer concede a cidadania civil a seus trabalhadores estrangeiros, recusando-lhes um passaporte?
Beck -
Estou muito insatisfeito com o fato de que a coalização não tenha mantido o projeto original que a levou ao poder para a questão da dupla cidadania. Para a Alemanha e para a Europa, esse teria sido um passo decisivo para chegarmos a uma sociedade civil mundial. Para a Alemanha, em especial, esse é o reconhecimento da "múltipla soberania". Temo também que na Segunda Modernidade surjam novas confrontações antes amortizadas.
Por um lado, temos sinais de uma importante cosmopolitização da sociedade. Por outro, uma reação violenta das identidades ameaçadas pela aceleração econômica. Numa pequena cidade da Baviera temos mais de 20 línguas em uma escola básica, e o número dos habitantes binacionais aumenta rapidamente. São 10% da população, e esse número tende a ser maior nos próximos anos.
O número de trabalhadores estrangeiros em conglomerados multinacionais também cresce rapidamente. A presença de outras religiões é cada vez mais observável no cotidiano. Por outro lado, observamos que muitos cidadãos de outros repertórios culturais que vivem entre nós também não desejam mais se integrar como antes, do modo como lhes era exigido. Eles desejam preservar sua identidade. Isso vale para muitos binacionais turcos ou alemães de origem grega, bem como para outros grupos. Tudo isso rompe com o paradigma de uma identidade étnica do Estado nacional.
Para voltar à sua pergunta sobre uma mudança de estatuto jurídico para uma sociedade civil mundial, sob a fachada da sociedade atual, processa-se uma contra-reação ao esvaziamento das identidades tradicionais. Temos também os inimigos da sociedade mundial aberta. Nesse processo são revitalizadas identidades étnicas, e antigos ódios raciais ganham um novo significado, grupos forjam para si uma história imaginária e fictícia. Se o futuro estará impregnado por uma crescente cosmopolitização da sociedade, simultaneamente revitalizará novos racismos e nacionalismos.
Folha - O sr. poderia falar um pouco sobre sua parceria intelectual com Anthony Giddens?
Beck -
Tony e eu somos grandes amigos, não há ninguém com quem eu tenha me afinado tão bem intelectualmente, num grande intercâmbio nos anos 90. Procuramos desenvolver, de maneira diferenciada, o paradigma da modernização reflexiva ou da Segunda Modernidade. Temos que pensar a renovação da política de maneira radical. E nisso Tony Giddens vem contribuindo bastante como conselheiro de Blair e como diretor da London School of Economics.


José Galisi Filho é doutorando em germanística na Universidade de Hannover (Alemanha) e bolsista da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal (Capes).



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