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ENTREVISTAS ANO 2000
Para o pesquisador Manuel Castells, é o grau de conexão de
cada sociedade que indica hoje o seu nível de desenvolvimento
Um mundo ligado
MARIA ERCILIA
Editora de Internet
JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
da Reportagem Local
A diferença entre Manuel Castells e outros tantos teóricos da sociedade da informação é que ele
não fugiu do trabalho braçal de ir a
campo e ver o que está acontecendo no mundo. Sua trilogia "A Era
da Informação - Economia, Sociedade e Cultura" se baseia em pesquisa original e em dados colhidos
ao longo de quase 20 anos.
Espanhol, Castells estudou com
Alain Touraine em Paris. Foi o
professor mais jovem da Universidade de Paris, em 66. Chegou a
Berkeley, Califórnia, em 79, no começo da revolução da informática
que se originou ali. Mais tarde, ensinou em Cingapura, no Japão,
Rússia, Brasil (Campinas), na
África e Europa.
A ambiciosa trilogia de Castells
foi comparada por Anthony Giddens, diretor da London School of
Economics, à obra de Max Weber.
Ela situa na raiz da era da informação três movimentos iniciados nos
anos 60 e 70: a tecnologia da informação, que revolucionou a produção, a reestruturação e flexibilização do capitalismo e do estatismo e movimentos sociais como feminismo, ecologia e movimento
gay. Os três livros percorrem um
espectro de assuntos extraordinariamente amplo, da história da informática às transformações no
trabalho e nos costumes sexuais.
Acaba de sair no Brasil o primeiro livro da trilogia ("A Sociedade
em Rede", Paz e Terra), com prefácio de Fernando Henrique Cardoso (amigo pessoal de Castells).
Ele chega ao Brasil no próximo dia
23, para uma turnê de lançamento
de um mês. Leia abaixo a entrevista concedida por Castells à Folha.
Folha - O sr. afirma em "O Fim do
Milênio" que alianças como a Otan
seriam cada vez mais usadas. E a
guerra entre sérvios e kosovares
tem características do conflito de
identidade que o sr. descreve. Esta
é a primeira guerra do século 21?
Manuel Castells - Ela pretendia
ser a primeira do século 21, mas
poderá vir a ser (espero que não
seja) uma típica guerra do século
20. Na realidade, será um fiasco e
um símbolo do subdesenvolvimento mental de nossos dirigentes
e da falta de democracia em nossas
instituições. Explico. A idéia era
proceder como descrevo em meu
livro; a guerra instantânea: bombardear uma semana ou duas, como na Bósnia, com alta tecnologia, sem custo para os atacantes.
Proteger os kosovares, intimidar o
ditador terrorista Milosevic e mostrar que a Europa precisa dos EUA.
Mas se esqueceram de que Kosovo
não é a Bósnia, mas o berço da
identidade sérvia. O nacionalismo
sérvio já provocou a Primeira
Guerra e infligiu uma incrível derrota às tropas de elite de Hitler na
Segunda Guerra Mundial (ao custo de 700.000 iugoslavos mortos).
Uma vez cometido o erro, a Otan
decidiu insistir, para não perder a
credibilidade, agravando a situação dos kosovares, reforçando a
posição de Milosevic em seu país e
antagonizando Rússia e China.
Com isso perdeu a oportunidade
histórica de estabelecer a paz mundial e proceder ao desarmamento.
O pior seria que prosseguisse no
equívoco e o transformasse numa
guerra ao estilo da do Vietnã, se
arrastando por muitos anos. Provavelmente acabará como um fiasco da Otan -as coisas mais ou
menos como antes (com uma força da ONU em Kosovo, como na
Bósnia), mas com custos irreparáveis. Tudo isso por falta de análise,
informação, arrogância e falta de
controle democrático sobre o que
a Otan faz em nome de seus países
e com o dinheiro de seus cidadãos.
Folha - O sr. vem da tradição da
crítica marxista. Quando começou
a se interessar pelas relações entre
sociedade e tecnologia? Como
avalia a posição da esquerda em
relação à tecnologia?
Castells - Sempre me interessei
por tecnologia. Minha tese de doutorado, em Paris (1967), foi sobre
as estratégias de localização industrial das empresas de alta tecnologia. Mas meu interesse cresceu a
partir de 1979, quando aceitei uma
cátedra na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e cheguei ao
Silicon Valley no período de formação da revolução nas tecnologias da informação. Dei-me conta
de que tudo mudava, não como
consequência da tecnologia, mas
devido a um meio tecnológico que
convertia a capacidade de investigar e gerar conhecimento em força
produtiva direta.
A esquerda sabe a importância
da tecnologia. O que a esquerda
não admite é que os custos da transição tecnológica sejam pagos por
todos os trabalhadores. Ou que,
com pretexto de transição tecnológica, se imponham políticas sociais regressivas.
Folha - Como o sr. vê a recente
crise econômica brasileira?
Castells - A crise econômica recente no Brasil demonstra que
qualquer país está ameaçado por
turbulências informativas e movimentos especulativos nos mercado financeiros globais. Também
demonstra que, se a economia vai
por um bom caminho, se mantém
a cabeça fria e se tomam decisões
inteligentes, pode-se navegar, senão controlar, o oceano tempestuoso dos fluxos financeiros até
encontrar um mar calmo. Que
sempre será relativo. Viver na globalização é viver perigosamente.
Mas é viver, em lugar de estar sempre perdendo e se lamentando.
Folha - O sr. afirma que o encurtamento das distâncias nas rede
integradas de comunicação enfraquece o poder simbólico dos representantes da religião, moralidade etc. Isso significa o fim da
transcendência? A religião se tornou mais um produto?
Castells - Creio, ao contrário,
que entramos num mundo em que
a transcendência e a religião são
cada vez mais importantes. O que
se seculariza é a religião comercial,
burocrática, institucionalizada.
Mas o sentimento religioso, a espiritualidade, a moralidade, a busca
de um deus, o que seja, em nós
mesmos, é mais importante que
nunca num mundo em que os fluxos globais de capital e de informação dissolvem as estruturas de
segurança em que estavam baseadas nossas sociedades.
E de fato a religião está em ascensão em todo o mundo, exceto na
Europa ocidental. E não só como
movimentos fundamentalistas,
que são extremamente importantes nos Estados Unidos, no mundo
islâmico, em boa parte da Ásia
(hinduísmo e islamismo), da África (animismo, islamismo) e também América Latina (evangelismo), se não como busca espiritual
e religiosa, como mostra o vigor da
Igreja Católica na América Latina.
Os que previram a morte de Deus
receberam uma sepultura cristã.
Folha - Em "A Ascensão da Sociedade de Rede", o sr. se refere ao
Brasil, Japão, Espanha e outros
países como sociedades informacionais. O que caracteriza uma sociedade informacional?
Castells - A sociedade de informação é uma sociedade em que as
fontes de poder e riqueza dependem da capacidade de geração de
conhecimento e processamento de
informação. Capacidade que depende da geração da interação entre recursos humanos, infra-estrutura tecnológica e inovação organizacional e estrutural. Nesse sentido, todas as sociedades estão conectadas globalmente em redes de
informação que condicionam toda
a sua dinâmica. Mas há sociedades
majoritariamente conectadas e
outras em que somente um pólo
dinâmico pertence a essas redes
globais informacionais. Creio que
seja essa a diferença entre desenvolvimento e irrelevância hoje.
Folha - A produção de informação e entretenimento cresce exponencialmente, enquanto a distribuição e armazenamento de informação estão ficando cada vez mais
baratos. Há suficiente demanda
para absorver toda esta produção?
Castells - Não há excesso de informação. Há defasagem entre a
capacidade cultural das pessoas e a
riqueza de informação. E há defasagem entre o que as pessoas querem e o entretenimento de baixa
qualidade. As pesquisas das empresas de multimídia demonstram
que a ampliação da oferta de informação passa por novos conteúdos
-educativos, culturais, políticos.
A abertura ao mundo de toda a
informação universal é uma possibilidade extraordinária, que está
mudando nossas vidas e nosso
imaginário. Desde que o sistema
educativo proporcione pessoas
com capacidade para buscar, escolher e desfrutar este mundo.
Folha - Em "The Rise of Network
Society" o sr. caracteriza todas as
cidades com mais de 10 milhões de
habitantes como megacidades
pertencentes a um mesmo clube,
cuja função é integrar sua população e a de seus países à economia
global. Entretanto muitas não são
centros econômicos (Lagos, Karachi e Bombaim, por exemplo). O sr.
acha que não há diferença entre
megacidade e cidade global?
Castells - A maior transformação urbana de nosso tempo é a formação de megacidades. Estas são
aglomerações de grandes dimensões (10 milhões de habitantes, às
vezes mais, às vezes menos), que
concentram o essencial do dinamismo econômico, tecnológico,
social e cultural dos países e que
estão conectadas entre si numa escala global. As megacidades se estendem no espaço e formam verdadeiras nebulosas urbanas onde
se integram campo e cidade, criatividade e problemas sociais ao mesmo tempo. Mas são os centros nervosos do sistema mundial.
Não há cidades globais. Toda
grande cidade é algo global, em
proporções diferentes. E muito local ao mesmo tempo. A maioria
dos bairros e pessoas vive vidas locais. O que é global são as funções
direcionais da cidade. Nesse sentido, Bombaim e Lagos são globais
também. Bombaim é um grande
centro financeiro e de software em
nível mundial, conectado com
Londres e com o Silicon Valley.
Lagos está conectada financeiramente à indústria energética e
também é um centro estratégico
das máfias criminosas globais.
Mas Londres, Bombaim, Lagos,
Silicon Valley têm áreas locais desconectadas das redes globais, ainda que em proporções diferentes.
Cerca de 90% de Lagos está desconectada da rede global. No Silicon
Valley esta proporção é de 10%,
enquanto São Paulo está entre os
dois, em termos de proporções.
A cidade global não é concreta, é
uma rede interterritorial de espaços locais conectados em uma rede
global de capital e informação, onde estão Wall Street, a City de Londres, Ginza de Tóquio e a Avenida
Paulista, entre outros.
Folha - O sr. foi um dos primeiros
a identificar o que chama de "dual
city", cidade que concentra o pior
e o melhor: conectada à rede global e, ao mesmo tempo, com populações desconectadas desse
processo -"funcionalmente desnecessárias". O que o sr. acha que
seja a tendência: aumentar ou diminuir a desigualdade socioeconômica dentro de uma cidade?
Castells - Megacidades como
São Paulo serão os territórios que
concentram maiores problemas
sociais e ambientais. Mas também
reúnem as maiores possibilidades
de desenvolvimento, de criatividade e de vontade política de mudar
as coisas. Não são elas a fonte dos
problemas, mas as redes globais de
poder e riqueza que conectam o
que dá lucro e desconectam o que
não tem outro valor além de existir. Não sei muito do futuro. Mas
sei do presente e da última década.
E sabemos que em todo o mundo
aumentou a exclusão social, a polarização e a desigualdade social.
Em muitos países (mas não em
todos; não, por exemplo, no Chile,
China e Índia) também aumentou
a pobreza. Um modelo dinâmico,
mas excludente, pode agravar os
problemas sociais. Cerca de 40%
do planeta mal sobrevive com menos de US$ 2 por dia.
Folha - No Brasil, megacidades
como São Paulo tendem a ampliar
sua área de influência, exportando
linhas de produção da indústria,
mas concentrando as sedes administrativas das empresas. Há também uma interiorização do crescimento: a formação de novas aglomerações urbanas e a volta do
crescimento da população rural. O
sr. acredita que no futuro será possível fazer a distinção tradicional
entre população rural e urbana?
Castells - O aumento da população rural pode ser reação de sobrevivência, mais que resultado da
difusão das telecomunicações.
Mas a maioria do que se conta como crescimento rural é a difusão
em espaços que, parecendo rurais,
estão conectados a redes metropolitanas. O mundo é hoje 47% urbano; em 2005 ultrapassará 50%. Na
América Latina a população urbana já é de 73%. Chegamos ao estádio da urbanização generalizada
como modo de vida.
Folha - Como o sr. prevê, as megacidades devem continuar a crescer. Quais seriam as soluções para
as consequências, i.e. poluição,
violência, congestionamentos?
Castells - O crescimento das
megacidades, sem controle e planejamento, conduz à catástrofe
ecológica, cujos sinais já estão presentes em nossa vida. Pode ainda
levar as elites a se refugiar em comunidades para ricos, rompendo
o tecido social urbano. A difusão
da urbanização pode conduzir à
desaparição da cidade como modo
de relação social, cultura urbana e
democracia política.
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