São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999
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ENTREVISTAS ANO 2000
Para o pesquisador Manuel Castells, é o grau de conexão de cada sociedade que indica hoje o seu nível de desenvolvimento
Um mundo ligado

MARIA ERCILIA
Editora de Internet

JOSÉ ROBERTO DE TOLEDO
da Reportagem Local

A diferença entre Manuel Castells e outros tantos teóricos da sociedade da informação é que ele não fugiu do trabalho braçal de ir a campo e ver o que está acontecendo no mundo. Sua trilogia "A Era da Informação - Economia, Sociedade e Cultura" se baseia em pesquisa original e em dados colhidos ao longo de quase 20 anos.
Espanhol, Castells estudou com Alain Touraine em Paris. Foi o professor mais jovem da Universidade de Paris, em 66. Chegou a Berkeley, Califórnia, em 79, no começo da revolução da informática que se originou ali. Mais tarde, ensinou em Cingapura, no Japão, Rússia, Brasil (Campinas), na África e Europa.
A ambiciosa trilogia de Castells foi comparada por Anthony Giddens, diretor da London School of Economics, à obra de Max Weber. Ela situa na raiz da era da informação três movimentos iniciados nos anos 60 e 70: a tecnologia da informação, que revolucionou a produção, a reestruturação e flexibilização do capitalismo e do estatismo e movimentos sociais como feminismo, ecologia e movimento gay. Os três livros percorrem um espectro de assuntos extraordinariamente amplo, da história da informática às transformações no trabalho e nos costumes sexuais.
Acaba de sair no Brasil o primeiro livro da trilogia ("A Sociedade em Rede", Paz e Terra), com prefácio de Fernando Henrique Cardoso (amigo pessoal de Castells). Ele chega ao Brasil no próximo dia 23, para uma turnê de lançamento de um mês. Leia abaixo a entrevista concedida por Castells à Folha.

Folha - O sr. afirma em "O Fim do Milênio" que alianças como a Otan seriam cada vez mais usadas. E a guerra entre sérvios e kosovares tem características do conflito de identidade que o sr. descreve. Esta é a primeira guerra do século 21?
Manuel Castells
- Ela pretendia ser a primeira do século 21, mas poderá vir a ser (espero que não seja) uma típica guerra do século 20. Na realidade, será um fiasco e um símbolo do subdesenvolvimento mental de nossos dirigentes e da falta de democracia em nossas instituições. Explico. A idéia era proceder como descrevo em meu livro; a guerra instantânea: bombardear uma semana ou duas, como na Bósnia, com alta tecnologia, sem custo para os atacantes. Proteger os kosovares, intimidar o ditador terrorista Milosevic e mostrar que a Europa precisa dos EUA. Mas se esqueceram de que Kosovo não é a Bósnia, mas o berço da identidade sérvia. O nacionalismo sérvio já provocou a Primeira Guerra e infligiu uma incrível derrota às tropas de elite de Hitler na Segunda Guerra Mundial (ao custo de 700.000 iugoslavos mortos).
Uma vez cometido o erro, a Otan decidiu insistir, para não perder a credibilidade, agravando a situação dos kosovares, reforçando a posição de Milosevic em seu país e antagonizando Rússia e China. Com isso perdeu a oportunidade histórica de estabelecer a paz mundial e proceder ao desarmamento.
O pior seria que prosseguisse no equívoco e o transformasse numa guerra ao estilo da do Vietnã, se arrastando por muitos anos. Provavelmente acabará como um fiasco da Otan -as coisas mais ou menos como antes (com uma força da ONU em Kosovo, como na Bósnia), mas com custos irreparáveis. Tudo isso por falta de análise, informação, arrogância e falta de controle democrático sobre o que a Otan faz em nome de seus países e com o dinheiro de seus cidadãos.
Folha - O sr. vem da tradição da crítica marxista. Quando começou a se interessar pelas relações entre sociedade e tecnologia? Como avalia a posição da esquerda em relação à tecnologia?
Castells
- Sempre me interessei por tecnologia. Minha tese de doutorado, em Paris (1967), foi sobre as estratégias de localização industrial das empresas de alta tecnologia. Mas meu interesse cresceu a partir de 1979, quando aceitei uma cátedra na Universidade da Califórnia, em Berkeley, e cheguei ao Silicon Valley no período de formação da revolução nas tecnologias da informação. Dei-me conta de que tudo mudava, não como consequência da tecnologia, mas devido a um meio tecnológico que convertia a capacidade de investigar e gerar conhecimento em força produtiva direta.
A esquerda sabe a importância da tecnologia. O que a esquerda não admite é que os custos da transição tecnológica sejam pagos por todos os trabalhadores. Ou que, com pretexto de transição tecnológica, se imponham políticas sociais regressivas.
Folha - Como o sr. vê a recente crise econômica brasileira?
Castells
- A crise econômica recente no Brasil demonstra que qualquer país está ameaçado por turbulências informativas e movimentos especulativos nos mercado financeiros globais. Também demonstra que, se a economia vai por um bom caminho, se mantém a cabeça fria e se tomam decisões inteligentes, pode-se navegar, senão controlar, o oceano tempestuoso dos fluxos financeiros até encontrar um mar calmo. Que sempre será relativo. Viver na globalização é viver perigosamente. Mas é viver, em lugar de estar sempre perdendo e se lamentando.
Folha - O sr. afirma que o encurtamento das distâncias nas rede integradas de comunicação enfraquece o poder simbólico dos representantes da religião, moralidade etc. Isso significa o fim da transcendência? A religião se tornou mais um produto?
Castells
- Creio, ao contrário, que entramos num mundo em que a transcendência e a religião são cada vez mais importantes. O que se seculariza é a religião comercial, burocrática, institucionalizada. Mas o sentimento religioso, a espiritualidade, a moralidade, a busca de um deus, o que seja, em nós mesmos, é mais importante que nunca num mundo em que os fluxos globais de capital e de informação dissolvem as estruturas de segurança em que estavam baseadas nossas sociedades.
E de fato a religião está em ascensão em todo o mundo, exceto na Europa ocidental. E não só como movimentos fundamentalistas, que são extremamente importantes nos Estados Unidos, no mundo islâmico, em boa parte da Ásia (hinduísmo e islamismo), da África (animismo, islamismo) e também América Latina (evangelismo), se não como busca espiritual e religiosa, como mostra o vigor da Igreja Católica na América Latina. Os que previram a morte de Deus receberam uma sepultura cristã.
Folha - Em "A Ascensão da Sociedade de Rede", o sr. se refere ao Brasil, Japão, Espanha e outros países como sociedades informacionais. O que caracteriza uma sociedade informacional?
Castells
- A sociedade de informação é uma sociedade em que as fontes de poder e riqueza dependem da capacidade de geração de conhecimento e processamento de informação. Capacidade que depende da geração da interação entre recursos humanos, infra-estrutura tecnológica e inovação organizacional e estrutural. Nesse sentido, todas as sociedades estão conectadas globalmente em redes de informação que condicionam toda a sua dinâmica. Mas há sociedades majoritariamente conectadas e outras em que somente um pólo dinâmico pertence a essas redes globais informacionais. Creio que seja essa a diferença entre desenvolvimento e irrelevância hoje.
Folha - A produção de informação e entretenimento cresce exponencialmente, enquanto a distribuição e armazenamento de informação estão ficando cada vez mais baratos. Há suficiente demanda para absorver toda esta produção?
Castells
- Não há excesso de informação. Há defasagem entre a capacidade cultural das pessoas e a riqueza de informação. E há defasagem entre o que as pessoas querem e o entretenimento de baixa qualidade. As pesquisas das empresas de multimídia demonstram que a ampliação da oferta de informação passa por novos conteúdos -educativos, culturais, políticos.
A abertura ao mundo de toda a informação universal é uma possibilidade extraordinária, que está mudando nossas vidas e nosso imaginário. Desde que o sistema educativo proporcione pessoas com capacidade para buscar, escolher e desfrutar este mundo.
Folha - Em "The Rise of Network Society" o sr. caracteriza todas as cidades com mais de 10 milhões de habitantes como megacidades pertencentes a um mesmo clube, cuja função é integrar sua população e a de seus países à economia global. Entretanto muitas não são centros econômicos (Lagos, Karachi e Bombaim, por exemplo). O sr. acha que não há diferença entre megacidade e cidade global?
Castells
- A maior transformação urbana de nosso tempo é a formação de megacidades. Estas são aglomerações de grandes dimensões (10 milhões de habitantes, às vezes mais, às vezes menos), que concentram o essencial do dinamismo econômico, tecnológico, social e cultural dos países e que estão conectadas entre si numa escala global. As megacidades se estendem no espaço e formam verdadeiras nebulosas urbanas onde se integram campo e cidade, criatividade e problemas sociais ao mesmo tempo. Mas são os centros nervosos do sistema mundial.
Não há cidades globais. Toda grande cidade é algo global, em proporções diferentes. E muito local ao mesmo tempo. A maioria dos bairros e pessoas vive vidas locais. O que é global são as funções direcionais da cidade. Nesse sentido, Bombaim e Lagos são globais também. Bombaim é um grande centro financeiro e de software em nível mundial, conectado com Londres e com o Silicon Valley. Lagos está conectada financeiramente à indústria energética e também é um centro estratégico das máfias criminosas globais. Mas Londres, Bombaim, Lagos, Silicon Valley têm áreas locais desconectadas das redes globais, ainda que em proporções diferentes. Cerca de 90% de Lagos está desconectada da rede global. No Silicon Valley esta proporção é de 10%, enquanto São Paulo está entre os dois, em termos de proporções.
A cidade global não é concreta, é uma rede interterritorial de espaços locais conectados em uma rede global de capital e informação, onde estão Wall Street, a City de Londres, Ginza de Tóquio e a Avenida Paulista, entre outros.
Folha - O sr. foi um dos primeiros a identificar o que chama de "dual city", cidade que concentra o pior e o melhor: conectada à rede global e, ao mesmo tempo, com populações desconectadas desse processo -"funcionalmente desnecessárias". O que o sr. acha que seja a tendência: aumentar ou diminuir a desigualdade socioeconômica dentro de uma cidade?
Castells
- Megacidades como São Paulo serão os territórios que concentram maiores problemas sociais e ambientais. Mas também reúnem as maiores possibilidades de desenvolvimento, de criatividade e de vontade política de mudar as coisas. Não são elas a fonte dos problemas, mas as redes globais de poder e riqueza que conectam o que dá lucro e desconectam o que não tem outro valor além de existir. Não sei muito do futuro. Mas sei do presente e da última década. E sabemos que em todo o mundo aumentou a exclusão social, a polarização e a desigualdade social.
Em muitos países (mas não em todos; não, por exemplo, no Chile, China e Índia) também aumentou a pobreza. Um modelo dinâmico, mas excludente, pode agravar os problemas sociais. Cerca de 40% do planeta mal sobrevive com menos de US$ 2 por dia.
Folha - No Brasil, megacidades como São Paulo tendem a ampliar sua área de influência, exportando linhas de produção da indústria, mas concentrando as sedes administrativas das empresas. Há também uma interiorização do crescimento: a formação de novas aglomerações urbanas e a volta do crescimento da população rural. O sr. acredita que no futuro será possível fazer a distinção tradicional entre população rural e urbana?
Castells
- O aumento da população rural pode ser reação de sobrevivência, mais que resultado da difusão das telecomunicações. Mas a maioria do que se conta como crescimento rural é a difusão em espaços que, parecendo rurais, estão conectados a redes metropolitanas. O mundo é hoje 47% urbano; em 2005 ultrapassará 50%. Na América Latina a população urbana já é de 73%. Chegamos ao estádio da urbanização generalizada como modo de vida.
Folha - Como o sr. prevê, as megacidades devem continuar a crescer. Quais seriam as soluções para as consequências, i.e. poluição, violência, congestionamentos?
Castells
- O crescimento das megacidades, sem controle e planejamento, conduz à catástrofe ecológica, cujos sinais já estão presentes em nossa vida. Pode ainda levar as elites a se refugiar em comunidades para ricos, rompendo o tecido social urbano. A difusão da urbanização pode conduzir à desaparição da cidade como modo de relação social, cultura urbana e democracia política.


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