São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999
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LIVROS
Artur Omar enfoca a fotografia do modo como ela requisita, como a busca de um estado glorioso
O fotógrafo contra a máquina

TEIXEIRA COELHO
especial para a Folha

A fotografia é a arte da classe média. Essa é uma proposição para ser interpretada em todos os seus sentidos, inclusive naqueles politicamente incorretos. Surgida no início da sociedade de massa, deu forma a todos os desejos e usos estéticos massificados. E assim se tornou a arte da facilidade, da superfície e do superficialismo; do clichê, do chavão e da imagem-feita; do falso realismo, do mecanismo e do mecanicismo; da reprodução contra a invenção e da opacidade muito mais que da revelação. Como forma pretensa de arte, é tão grotesca quanto a poesia barata, aquela feita com bons sentimentos e a que imita a vanguarda quebrando palavras, ritmos e idéias.
A fotografia pareceu abolir todo requisito de artesania e toda exigência de definição de um ponto de vista sobre o mundo; com a fotografia, o ponto de vista parece estar em toda parte, à espera do fotógrafo, que acredita capturá-lo com sua máquina. Mas o fotógrafo nem sequer percebe, como notou Vilém Flusser, que com a máquina ele nem é mais necessário -e que, completando, não percebe que aquilo que produz é tão supérfluo quanto ele próprio.
Esse é o problema: poucos se atrevem a escrever um romance ou compor uma peça musical; quase todos acreditam poder bater uma fotografia. A consequência é que a fotografia quase sempre bate em todos, bate na arte, bate na fotografia.
Para arrancar a fotografia da banalidade é preciso um empenho filosófico e uma competência estética que a câmara fotográfica, ao contrário do que deu a entender, tornou ainda mais raros. Flusser, para destacar o filósofo há pouco objeto de um seminário em São Paulo, mapeou o trabalho do fotógrafo capaz de gerar Fotografias. Ou arte. O fotógrafo tem de tentar fazer imagens que não foram previamente programadas pelo aparelho, quer dizer, pela cultura dominante, pelo código prévio. Sua ação será sempre um esforço contra a máquina, isto é, contra a impotência; ele tem de inverter a intenção da máquina e fazer com que, em suas mãos, ela avance em direção a seu objeto (a História) em vez de ficar a uma respeitável distância. Esse Fotógrafo tem de ir aos bastidores de seu objeto e emergir atrás dele.
É exatamente esse programa filosófico que cumpre Artur Omar na exposição "Antropologia da Face Gloriosa", da qual o livro "O Zen e a Arte Gloriosa da Fotografia" é um making off. Artur Omar enfoca a fotografia a partir do único ponto de vista pelo qual a fotografia, a arte, pede para ser enfocada: como busca de um estado glorioso por meio do qual se toma consciência visual de algo situado fora da máquina e fora do fotógrafo, mas que, nesse ato, vê o fotógrafo e o modifica "pela devolução do olhar que lhe foi enviado".
Com esse movimento, a fotografia se redime de seu pecado original, o voyeurismo, e se transforma no oposto disso: o ato de exibicionismo duplo ou, em palavras mais amenas, na dupla exposição daquele que é visto e daquele que vê, numa troca que é a única justificativa para a arte. E para a fotografia. Nesse instante, nas palavras de Artur Omar, a fotografia dá um xeque-mate na superfície e abre um abismo iluminado, único lugar onde fotógrafo e fotografado podem se revelar a si mesmos e ao outro. Essa operação deixa de lado o bom-mocismo fotográfico que consiste em abrir espaço para a "aparição humanística" do outro. E assim entra em cena a antropologia gloriosa.
É isso que a arte da fotografia pode fazer pela antropologia visual: ensiná-la a dar xeque-mate nas superfícies. A observação simultânea dos livros de Artur Omar e de Pierre Verger, este sobre o culto dos orixás e vodus, mostra o fosso que separa uma abordagem da outra, e a impotência da antropologia visual clássica para não apenas descobrir seu objeto, mas também, até, para simplesmente captá-lo. O livro de Verger será sem dúvida clássico e fundamental no seu papel de documento histórico. Mas, vista através das lentes de Artur Omar, a espessura desse documento, quando recorre ao registro visual de seus objetos, é decepcionante. É como se usasse uma lente opaca. Uma foto documenta um pai-de-santo ou uma mãe-de-santo em transe; uma outra mostra um grupo de mulheres "vestidas com trajes multicoloridos" e supostamente no ato de dançar. Mas o que vemos, nas palavras de Artur Omar (que não fala de Verger), são "faces antigas, com hábitos musculares extintos, expressões fisionômicas traduzindo sentimentos que não conhecemos mais". São meras "aparições humanísticas".
Pelo contrário, as fotos de Omar -que avançam sobre o objeto para sair do outro lado dele, arrastando consigo o fotógrafo- presentificam o antigo, passam o sentido interior dos hábitos musculares captados, representam sentimentos que podemos conhecer ou intuir. A antropologia visual clássica, com a ambição de "fidelidade" que a apresentação do livro de Verger lhe atribui, é inapelavelmente derrotada pela superfície das coisas -com exceção de um ou outro momento em que Verger se rendeu ao brilho glorioso de um acaso fugaz e o apreendeu sem a ordem que a estéril objetividade científica lhe comandava. Há uma outra antropologia visual a ser feita, científica porque artística, e sua inspiração está nas fotos de Artur Omar, que não faz nem esteticismo, nem registro histórico ou social, nem denúncia política, três vícios insuportáveis da fotografia banal.
"O Zen e a Arte Gloriosa da Fotografia" é ao mesmo tempo um objeto de arte, um livro singular de, sobre e com fotografia e um ensaio de estética e de filosofia da fotografia notavelmente inspirado.



AS OBRAS
Notas sobre os Cultos aos Orixás e Voduns - Pierre Verger. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Editora da Universidade de São Paulo (av. Prof. Luciano Gualberto, travessa J, 134, 6º andar, CEP 05508-000, SP, tel. 011/818-4008). 624 págs. R$ 75,00.

O Zen e a Arte Gloriosa da Fotografia - Arthur Omar. Centro Cultural Banco do Brasil (r. Primeiro de Março, 66, 2º andar, CEP 20010-000, RJ, tel. 021/216-0431). 78 págs. R$ 18,00.



Teixeira Coelho é diretor do Museu de Arte Contemporânea de São Paulo e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.



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