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LIVROS
Artur Omar enfoca a fotografia do modo como ela requisita, como a busca
de um estado glorioso
O fotógrafo contra a máquina
TEIXEIRA COELHO
especial para a Folha
A fotografia é a arte da classe média. Essa é uma proposição para
ser interpretada em todos os seus
sentidos, inclusive naqueles politicamente incorretos. Surgida no
início da sociedade de massa, deu
forma a todos os desejos e usos estéticos massificados. E assim se
tornou a arte da facilidade, da superfície e do superficialismo; do
clichê, do chavão e da imagem-feita; do falso realismo, do mecanismo e do mecanicismo; da reprodução contra a invenção e da opacidade muito mais que da revelação. Como forma pretensa de arte,
é tão grotesca quanto a poesia barata, aquela feita com bons sentimentos e a que imita a vanguarda
quebrando palavras, ritmos e
idéias.
A fotografia pareceu abolir todo
requisito de artesania e toda exigência de definição de um ponto
de vista sobre o mundo; com a fotografia, o ponto de vista parece
estar em toda parte, à espera do
fotógrafo, que acredita capturá-lo
com sua máquina. Mas o fotógrafo
nem sequer percebe, como notou
Vilém Flusser, que com a máquina
ele nem é mais necessário -e que,
completando, não percebe que
aquilo que produz é tão supérfluo
quanto ele próprio.
Esse é o problema: poucos se
atrevem a escrever um romance
ou compor uma peça musical;
quase todos acreditam poder bater
uma fotografia. A consequência é
que a fotografia quase sempre bate
em todos, bate na arte, bate na fotografia.
Para arrancar a fotografia da banalidade é preciso um empenho filosófico e uma competência estética que a câmara fotográfica, ao
contrário do que deu a entender,
tornou ainda mais raros. Flusser,
para destacar o filósofo há pouco
objeto de um seminário em São
Paulo, mapeou o trabalho do fotógrafo capaz de gerar Fotografias.
Ou arte. O fotógrafo tem de tentar
fazer imagens que não foram previamente programadas pelo aparelho, quer dizer, pela cultura dominante, pelo código prévio. Sua
ação será sempre um esforço contra a máquina, isto é, contra a impotência; ele tem de inverter a intenção da máquina e fazer com
que, em suas mãos, ela avance em
direção a seu objeto (a História)
em vez de ficar a uma respeitável
distância. Esse Fotógrafo tem de ir
aos bastidores de seu objeto e
emergir atrás dele.
É exatamente esse programa filosófico que cumpre Artur Omar
na exposição "Antropologia da
Face Gloriosa", da qual o livro
"O Zen e a Arte Gloriosa da Fotografia" é um making off. Artur
Omar enfoca a fotografia a partir
do único ponto de vista pelo qual a
fotografia, a arte, pede para ser enfocada: como busca de um estado
glorioso por meio do qual se toma
consciência visual de algo situado
fora da máquina e fora do fotógrafo, mas que, nesse ato, vê o fotógrafo e o modifica "pela devolução do olhar que lhe foi enviado".
Com esse movimento, a fotografia se redime de seu pecado original, o voyeurismo, e se transforma
no oposto disso: o ato de exibicionismo duplo ou, em palavras mais
amenas, na dupla exposição daquele que é visto e daquele que vê,
numa troca que é a única justificativa para a arte. E para a fotografia.
Nesse instante, nas palavras de Artur Omar, a fotografia dá um xeque-mate na superfície e abre um
abismo iluminado, único lugar
onde fotógrafo e fotografado podem se revelar a si mesmos e ao
outro. Essa operação deixa de lado
o bom-mocismo fotográfico que
consiste em abrir espaço para a
"aparição humanística" do outro. E assim entra em cena a antropologia gloriosa.
É isso que a arte da fotografia
pode fazer pela antropologia visual: ensiná-la a dar xeque-mate
nas superfícies. A observação simultânea dos livros de Artur
Omar e de Pierre Verger, este sobre o culto dos orixás e vodus,
mostra o fosso que separa uma
abordagem da outra, e a impotência da antropologia visual clássica
para não apenas descobrir seu objeto, mas também, até, para simplesmente captá-lo. O livro de
Verger será sem dúvida clássico e
fundamental no seu papel de documento histórico. Mas, vista
através das lentes de Artur Omar,
a espessura desse documento,
quando recorre ao registro visual
de seus objetos, é decepcionante. É
como se usasse uma lente opaca.
Uma foto documenta um
pai-de-santo ou uma mãe-de-santo em transe; uma outra mostra
um grupo de mulheres "vestidas
com trajes multicoloridos" e supostamente no ato de dançar. Mas
o que vemos, nas palavras de Artur Omar (que não fala de Verger),
são "faces antigas, com hábitos
musculares extintos, expressões
fisionômicas traduzindo sentimentos que não conhecemos
mais". São meras "aparições humanísticas".
Pelo contrário, as fotos de Omar
-que avançam sobre o objeto para sair do outro lado dele, arrastando consigo o fotógrafo- presentificam o antigo, passam o sentido interior dos hábitos musculares captados, representam sentimentos que podemos conhecer ou
intuir. A antropologia visual clássica, com a ambição de "fidelidade" que a apresentação do livro
de Verger lhe atribui, é inapelavelmente derrotada pela superfície
das coisas -com exceção de um
ou outro momento em que Verger
se rendeu ao brilho glorioso de um
acaso fugaz e o apreendeu sem a
ordem que a estéril objetividade
científica lhe comandava. Há uma
outra antropologia visual a ser feita, científica porque artística, e
sua inspiração está nas fotos de
Artur Omar, que não faz nem esteticismo, nem registro histórico ou
social, nem denúncia política, três
vícios insuportáveis da fotografia
banal.
"O Zen e a Arte Gloriosa da Fotografia" é ao mesmo tempo um objeto de arte, um livro singular de,
sobre e com fotografia e um ensaio
de estética e de filosofia da fotografia notavelmente inspirado.
AS OBRAS
Notas sobre os Cultos aos Orixás e Voduns - Pierre Verger. Tradução de Carlos Eugênio Marcondes de Moura. Editora da Universidade de São Paulo (av. Prof. Luciano Gualberto, travessa J, 134, 6º andar, CEP 05508-000, SP, tel. 011/818-4008). 624 págs. R$ 75,00.
O Zen e a Arte Gloriosa da Fotografia - Arthur Omar. Centro Cultural Banco do Brasil (r. Primeiro de Março, 66, 2º andar, CEP 20010-000, RJ, tel. 021/216-0431). 78 págs. R$ 18,00.
Teixeira Coelho é diretor do Museu de Arte
Contemporânea de São Paulo e professor da Escola de Comunicações e Artes da USP.
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