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"Pedro e Paula", segundo romance de Helder Macedo, reconstitui as mudanças
culturais de uma época
Um duplo incesto
JOÃO ALMINO
especial para a Folha
"Pedro e Paula", segundo romance do também poeta, ensaísta
e professor do King's College de
Londres, o reconhecido escritor
português Helder Macedo, reconstitui principalmente o traçado de uma época: "Esses anos 60
que... começaram em Londres em
1963... e... terminaram em Lisboa
lá para os fins de Novembro de
1975". Dele fazem parte a guerra
colonial, o 25 de abril e a explosiva
Lisboa de 1975, de que faz uma
crônica sexual e política.
Sem prescindir de suas individualidades nem escorregar na caricatura, os personagens são tipos
ideais (o Pide -polícia política da
ditadura em Portugal- que fugiu
para o Brasil, o exilado em Londres, o salazarista que se emprega
em Lourenço Marques, a "rebelde" produto de 68), que servem
para manter presentes as questões
políticas, mas sem esquematismo.
Para além dos aspectos simbólicos do romance, exemplificados
pelo contraste entre os gêmeos Pedro e Paula, o eixo da narração se
constrói pela relação entre a pintora Paula e seu amante e possível
pai, Gabriel, um ex-diplomata. Este vive um exílio dourado, com
seu emprego na BBC de Londres, e
não sofre perseguições maiores do
que transtornos no aeroporto,
quando vai a Lisboa. Não se envolve plenamente na política nem no
amor. É sobretudo objeto do desejo de Paula, como fora da mãe dela, Ana, no passado.
Há piscadelas de olho para o leitor, referências literárias e cinematográficas funcionais à trama.
O livro abre-se e fecha-se, por
exemplo, com citações a "Casablanca", e ficamos com a impressão de que daria continuidade à
história do filme para que Rick, o
Humphrey Bogart-Gabriel, passados os encontros fugazes com Ilse
(Ingrid Bergman), viesse mais tarde a amar uma filha dela, a Paula
do romance.
Mais centrais à narrativa são as
alusões a Machado de Assis e a Eça
de Queirós. Em "Esaú e Jacó", de
Machado, um dos gêmeos é republicano, o outro, monarquista.
Aqui Paula representa o espírito
de aventura dos anos 60, enquanto
Pedro encarna o conservadorismo
pragmático dos anos 80. Num e
noutro caso, o poder crítico da
narração vai além dos termos dessa oposição, para atingir o que está
por trás e perpassa os dois campos. No caso de Helder Macedo,
sem supostas equidistâncias, já
que, embora o narrador, negando
sua ironia, ache que essas coisas de
direita e de esquerda já não fazem
mais sentido ("é melhor dizer Yin
e Yang"), é ainda a partir de uma
certa esquerda -incrédula e desencantada- que ele vê o mundo.
Como em "Dom Casmurro",
mantém-se a ambiguidade até o
fim, não quanto à provável infidelidade da personagem central, mas
à possibilidade de que seu amante
seja seu pai. De outro incesto o leitor saberá com certeza, o que lhe
acrescenta mais uma dúvida não
resolvida: quem será o pai da filha
de Paula, o irmão Pedro ou o
amante Gabriel? O grotesco é salvo
pela linguagem e também pela força simbólica e mítica das metáforas -a da duplicidade e oposição,
a do incesto e outras a esta associadas, como a distinção proudhoniana entre a relação da posse e o
poder da propriedade.
O tema do incesto é queirosiano,
e o narrador jocoso se pergunta se
a Maria Eduarda d" "Os Maias",
quando foi viver na França depois
da revelação do incesto com o irmão Carlos, já não poderia estar
grávida e ter, portanto, uma criança dele, à semelhança de Paula, caso em que "lá se lixava a metáfora
do Eça e todo o futuro de Portugal
teria sido diferente".
Em "Pedro e Paula", o incesto
(ou sua possibilidade) é, portanto,
também duplo. Um, com o irmão,
mata Paula espiritualmente. Com
o que talvez seja a plenitude de outro incesto, seu amante Gabriel,
que não por acaso tem nome de
anjo e vai finalmente morrer no
gozo sexual, vem anunciar-lhe a
vida.
Tal como na banalização da violência e das atrocidades do mundo
contemporâneo, essa tragédia de
inspiração grega nos faz pensar e
pode nos criar asco, mas propositadamente pouco nos comove,
porque pouco comove a seus protagonistas e ao narrador distanciado. Este não se envolveu com a
história e vai se revelando aos
poucos, para assumir o primeiro
plano, como professor de literatura portuguesa do King's College de
Londres e amigo de Paula ("Sim,
só amigos"), no último capítulo
do livro, no que seria um tempo
presente em que a narrativa se expõe em tom ensaístico.
O estupro de Paula por Pedro gera silêncios e não processos judiciais, crimes passionais ou ódios
incontrolados, da mesma forma
que os personagens desse livro
não estão na guerra aberta, empunhando armas, mas fazem parte
da guerra suja dos bastidores, com
seus informantes e colaboradores,
suas traições e oportunismo, num
terreno cinzento, em que também
têm lugar o rumor e a acomodação. Mesmo o Pide não acaba mal:
ele, ou "alguém igual a ele, apareceu há dias na televisão portuguesa, com o entrevistador muito mesuras a tratá-lo por Senhor Inspector como no antigamente".
Transmite-se um clima próximo
ao que Carlos preconizava no final
d" "Os Maias": "Um fatalismo
muçulmano", "nada desejar, nada recear, tudo aceitar".
O interesse do livro não está,
portanto, apenas no retrato de
uma época feito por meio de memórias críticas e sentimentais.
"Pedro e Paula" faz a proeza de
juntar relato realista e mítico, ao
interpretar um período da história
portuguesa -e não apenas portuguesa- por meio de grandes metáforas, trabalhadas com afinco e
de maneira convincente. Nelas estão tematizados os conflitos internos portugueses, a própria guerra
fratricida, bem como a ambiguidade, o compromisso e a acomodação.
A OBRA
Pedro e Paula - Helder Macedo. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 021/585-2000). 240 págs. R$ 25,00.
João Almino é escritor e diplomata, autor, entre outros livros, dos romances "Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo" e "Samba-Enredo"
(Marco Zero).
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