São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999
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"Pedro e Paula", segundo romance de Helder Macedo, reconstitui as mudanças culturais de uma época
Um duplo incesto

JOÃO ALMINO
especial para a Folha

"Pedro e Paula", segundo romance do também poeta, ensaísta e professor do King's College de Londres, o reconhecido escritor português Helder Macedo, reconstitui principalmente o traçado de uma época: "Esses anos 60 que... começaram em Londres em 1963... e... terminaram em Lisboa lá para os fins de Novembro de 1975". Dele fazem parte a guerra colonial, o 25 de abril e a explosiva Lisboa de 1975, de que faz uma crônica sexual e política.
Sem prescindir de suas individualidades nem escorregar na caricatura, os personagens são tipos ideais (o Pide -polícia política da ditadura em Portugal- que fugiu para o Brasil, o exilado em Londres, o salazarista que se emprega em Lourenço Marques, a "rebelde" produto de 68), que servem para manter presentes as questões políticas, mas sem esquematismo.
Para além dos aspectos simbólicos do romance, exemplificados pelo contraste entre os gêmeos Pedro e Paula, o eixo da narração se constrói pela relação entre a pintora Paula e seu amante e possível pai, Gabriel, um ex-diplomata. Este vive um exílio dourado, com seu emprego na BBC de Londres, e não sofre perseguições maiores do que transtornos no aeroporto, quando vai a Lisboa. Não se envolve plenamente na política nem no amor. É sobretudo objeto do desejo de Paula, como fora da mãe dela, Ana, no passado.
Há piscadelas de olho para o leitor, referências literárias e cinematográficas funcionais à trama. O livro abre-se e fecha-se, por exemplo, com citações a "Casablanca", e ficamos com a impressão de que daria continuidade à história do filme para que Rick, o Humphrey Bogart-Gabriel, passados os encontros fugazes com Ilse (Ingrid Bergman), viesse mais tarde a amar uma filha dela, a Paula do romance.
Mais centrais à narrativa são as alusões a Machado de Assis e a Eça de Queirós. Em "Esaú e Jacó", de Machado, um dos gêmeos é republicano, o outro, monarquista. Aqui Paula representa o espírito de aventura dos anos 60, enquanto Pedro encarna o conservadorismo pragmático dos anos 80. Num e noutro caso, o poder crítico da narração vai além dos termos dessa oposição, para atingir o que está por trás e perpassa os dois campos. No caso de Helder Macedo, sem supostas equidistâncias, já que, embora o narrador, negando sua ironia, ache que essas coisas de direita e de esquerda já não fazem mais sentido ("é melhor dizer Yin e Yang"), é ainda a partir de uma certa esquerda -incrédula e desencantada- que ele vê o mundo.
Como em "Dom Casmurro", mantém-se a ambiguidade até o fim, não quanto à provável infidelidade da personagem central, mas à possibilidade de que seu amante seja seu pai. De outro incesto o leitor saberá com certeza, o que lhe acrescenta mais uma dúvida não resolvida: quem será o pai da filha de Paula, o irmão Pedro ou o amante Gabriel? O grotesco é salvo pela linguagem e também pela força simbólica e mítica das metáforas -a da duplicidade e oposição, a do incesto e outras a esta associadas, como a distinção proudhoniana entre a relação da posse e o poder da propriedade.
O tema do incesto é queirosiano, e o narrador jocoso se pergunta se a Maria Eduarda d" "Os Maias", quando foi viver na França depois da revelação do incesto com o irmão Carlos, já não poderia estar grávida e ter, portanto, uma criança dele, à semelhança de Paula, caso em que "lá se lixava a metáfora do Eça e todo o futuro de Portugal teria sido diferente".
Em "Pedro e Paula", o incesto (ou sua possibilidade) é, portanto, também duplo. Um, com o irmão, mata Paula espiritualmente. Com o que talvez seja a plenitude de outro incesto, seu amante Gabriel, que não por acaso tem nome de anjo e vai finalmente morrer no gozo sexual, vem anunciar-lhe a vida.
Tal como na banalização da violência e das atrocidades do mundo contemporâneo, essa tragédia de inspiração grega nos faz pensar e pode nos criar asco, mas propositadamente pouco nos comove, porque pouco comove a seus protagonistas e ao narrador distanciado. Este não se envolveu com a história e vai se revelando aos poucos, para assumir o primeiro plano, como professor de literatura portuguesa do King's College de Londres e amigo de Paula ("Sim, só amigos"), no último capítulo do livro, no que seria um tempo presente em que a narrativa se expõe em tom ensaístico.
O estupro de Paula por Pedro gera silêncios e não processos judiciais, crimes passionais ou ódios incontrolados, da mesma forma que os personagens desse livro não estão na guerra aberta, empunhando armas, mas fazem parte da guerra suja dos bastidores, com seus informantes e colaboradores, suas traições e oportunismo, num terreno cinzento, em que também têm lugar o rumor e a acomodação. Mesmo o Pide não acaba mal: ele, ou "alguém igual a ele, apareceu há dias na televisão portuguesa, com o entrevistador muito mesuras a tratá-lo por Senhor Inspector como no antigamente". Transmite-se um clima próximo ao que Carlos preconizava no final d" "Os Maias": "Um fatalismo muçulmano", "nada desejar, nada recear, tudo aceitar".
O interesse do livro não está, portanto, apenas no retrato de uma época feito por meio de memórias críticas e sentimentais. "Pedro e Paula" faz a proeza de juntar relato realista e mítico, ao interpretar um período da história portuguesa -e não apenas portuguesa- por meio de grandes metáforas, trabalhadas com afinco e de maneira convincente. Nelas estão tematizados os conflitos internos portugueses, a própria guerra fratricida, bem como a ambiguidade, o compromisso e a acomodação.


A OBRA
Pedro e Paula - Helder Macedo. Ed. Record (r. Argentina, 171, CEP 20921-380, RJ, tel. 021/585-2000). 240 págs. R$ 25,00.




João Almino é escritor e diplomata, autor, entre outros livros, dos romances "Idéias para Onde Passar o Fim do Mundo" e "Samba-Enredo" (Marco Zero).



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