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Em seu novo romance, Graham Swift trata com lirismo da baixa classe
média inglesa
Existências abafadas
FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
especial para a Folha
E quando a última rodada no bar
for mesmo a final? Quem dentre
amigos tão amigo para se deitar no
caixão comigo? Romance de Graham Swift, 49, que mereceu o Booker Prize em 1996, "Últimos Pedidos" trata da viagem ritual das
cinzas de um açougueiro londrino, Jack, morto e cremado aos 70 e
poucos anos, em direção às ondas
de Margate, litoral sul britânico,
para lá serem espargidas, numa
espécie de tentativa póstuma de
reconciliação com uma existência
que poderia ter sido e que não foi.
Essa é a tarefa
que lega ao círculo de amigos
mais próximos, companheiros de copo de toda uma
vida, típicos
membros da
classe trabalhadora inglesa.
Com ironia e
humor que não excluem por completo o patético e uma solenidade
meio gauche, ora esvaziando, ora
sublinhando a gravidade e o inusitado da situação, a voz do autor se
retrai e, para animar os destinos
cruzados do grupo, cede espaço à
pluralidade de vozes e lembranças.
Narrados em primeira pessoa por
personagens alternadas, os capítulos curtos sucedem-se, extraindo
dos diálogos rememorados sua
substância e liga, compondo identidades que repousam na oralidade.
Os restos de vida comunitária
possível nas franjas das obrigações, virações e frustrações a que
todos eles, sem exceção, precisam
se submeter aproximam esses peregrinos não tão heterogêneos:
Ray, um pequeno burocrata aposentado e apostador consumado;
Lenny, um feirante ressentido
com a pobreza beirando a miséria;
Vic, agente funerário por herança
familiar e vocação; e Vincey, o
mais novo e próspero do grupo,
comerciante de carros usados e filho adotivo do morto. O contraponto inclui ainda Amy, a viúva
que não participa do cortejo, cuja
vida gravita em torno de uma filha
na meia-idade, mas infantilizada
mentalmente, interna de um asilo
desde menina.
O universo da baixa classe média
é o mesmo que está no novo cinema inglês, nos filmes de Mike
Leigh, por exemplo; o desafio,
também parecido: trazer à tona o
que há de particular nessas existências abafadas, pôr em evidência
o literário que hiberna na coloquialidade de suas falas.
A capa do romance é um
comentário
eloquente.
Traz em foco
próximo, coincidindo com os
limites da página, uma caneca de cerveja
escura, turva,
bebida pela
metade, borrada pela espuma que se colou ao vidro. Como no verso de Jorge de
Lima, inspiração de Raduan Nassar para batizar seu romance recentemente transposto às telas
-"há sempre um copo de mar
para um homem navegar"-, o livro nos volta para as grandes
questões, a morte e o (sem) sentido que ela sela para uma vida, a
graça e desgraça da convivência
humana, da amizade e do amor e a
sucessão de gerações, questões
graves apanhadas no diminuto e
no corriqueiro. As grandes linhas
da história estão lá também
-Jack, Ray, Lenny e Vic pertencem à geração que fez a guerra,
seus filhos, à que teve que escapar
do desemprego, mas o ponto é
miúdo, voltado para os destinos
humildes.
Autor de "Terra d'Água", de
1992, livro em que a história pessoal entroncava na e dava corpo à
coletiva a partir das digressões e
memória individuais de um professor secundário, acossado pelas
perguntas de seus alunos, dando
margem a derivações eruditas e à
variação de estilos que a perspectiva intelectual da consciência organizadora propiciava, neste novo
romance Swift saiu-se com uma
estrutura coral, em que as nuanças
individuais custam a se afirmar,
num universo marcado pela tônica do sofrimento e das restrições.
Histórias de abandonos e insucessos, financeiro e familiar, restringem a variedade e atrofiam as vocações e inclinações diversas dos
caracteres, que mesmo assim teimam em não desaparecer totalmente.
Nos filhos, investem a expectativa de vitória futura, transmitem o
peso da insatisfação a ser vingada.
O balanço imposto pela morte,
quando a memória de cada homem deve assumir seus traços específicos, a importância de enterrar seus mortos para seguir adiante, são temas que fazem de "Últimos Pedidos" uma versão atualizada da advertência ao viajante, o
leitor, sobre o pó de que somos feitos, eficaz e bem-humorada, sem
deixar de ser lírica, um lamento
que encontrou seu tom.
A OBRA
Últimos Pedidos - Graham Swift. Tradução de José Antonio Arantes. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 304 págs. R$ 26,00.
Fábio de Souza Andrade é professor de teoria
literária na Universidade Estadual de Campinas
e autor de "O Engenheiro Noturno - A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).
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