São Paulo, Domingo, 23 de Maio de 1999
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Em seu novo romance, Graham Swift trata com lirismo da baixa classe média inglesa
Existências abafadas

FÁBIO DE SOUZA ANDRADE
especial para a Folha

E quando a última rodada no bar for mesmo a final? Quem dentre amigos tão amigo para se deitar no caixão comigo? Romance de Graham Swift, 49, que mereceu o Booker Prize em 1996, "Últimos Pedidos" trata da viagem ritual das cinzas de um açougueiro londrino, Jack, morto e cremado aos 70 e poucos anos, em direção às ondas de Margate, litoral sul britânico, para lá serem espargidas, numa espécie de tentativa póstuma de reconciliação com uma existência que poderia ter sido e que não foi. Essa é a tarefa que lega ao círculo de amigos mais próximos, companheiros de copo de toda uma vida, típicos membros da classe trabalhadora inglesa.
Com ironia e humor que não excluem por completo o patético e uma solenidade meio gauche, ora esvaziando, ora sublinhando a gravidade e o inusitado da situação, a voz do autor se retrai e, para animar os destinos cruzados do grupo, cede espaço à pluralidade de vozes e lembranças. Narrados em primeira pessoa por personagens alternadas, os capítulos curtos sucedem-se, extraindo dos diálogos rememorados sua substância e liga, compondo identidades que repousam na oralidade.
Os restos de vida comunitária possível nas franjas das obrigações, virações e frustrações a que todos eles, sem exceção, precisam se submeter aproximam esses peregrinos não tão heterogêneos: Ray, um pequeno burocrata aposentado e apostador consumado; Lenny, um feirante ressentido com a pobreza beirando a miséria; Vic, agente funerário por herança familiar e vocação; e Vincey, o mais novo e próspero do grupo, comerciante de carros usados e filho adotivo do morto. O contraponto inclui ainda Amy, a viúva que não participa do cortejo, cuja vida gravita em torno de uma filha na meia-idade, mas infantilizada mentalmente, interna de um asilo desde menina.
O universo da baixa classe média é o mesmo que está no novo cinema inglês, nos filmes de Mike Leigh, por exemplo; o desafio, também parecido: trazer à tona o que há de particular nessas existências abafadas, pôr em evidência o literário que hiberna na coloquialidade de suas falas.
A capa do romance é um comentário eloquente. Traz em foco próximo, coincidindo com os limites da página, uma caneca de cerveja escura, turva, bebida pela metade, borrada pela espuma que se colou ao vidro. Como no verso de Jorge de Lima, inspiração de Raduan Nassar para batizar seu romance recentemente transposto às telas -"há sempre um copo de mar para um homem navegar"-, o livro nos volta para as grandes questões, a morte e o (sem) sentido que ela sela para uma vida, a graça e desgraça da convivência humana, da amizade e do amor e a sucessão de gerações, questões graves apanhadas no diminuto e no corriqueiro. As grandes linhas da história estão lá também -Jack, Ray, Lenny e Vic pertencem à geração que fez a guerra, seus filhos, à que teve que escapar do desemprego, mas o ponto é miúdo, voltado para os destinos humildes.
Autor de "Terra d'Água", de 1992, livro em que a história pessoal entroncava na e dava corpo à coletiva a partir das digressões e memória individuais de um professor secundário, acossado pelas perguntas de seus alunos, dando margem a derivações eruditas e à variação de estilos que a perspectiva intelectual da consciência organizadora propiciava, neste novo romance Swift saiu-se com uma estrutura coral, em que as nuanças individuais custam a se afirmar, num universo marcado pela tônica do sofrimento e das restrições. Histórias de abandonos e insucessos, financeiro e familiar, restringem a variedade e atrofiam as vocações e inclinações diversas dos caracteres, que mesmo assim teimam em não desaparecer totalmente.
Nos filhos, investem a expectativa de vitória futura, transmitem o peso da insatisfação a ser vingada. O balanço imposto pela morte, quando a memória de cada homem deve assumir seus traços específicos, a importância de enterrar seus mortos para seguir adiante, são temas que fazem de "Últimos Pedidos" uma versão atualizada da advertência ao viajante, o leitor, sobre o pó de que somos feitos, eficaz e bem-humorada, sem deixar de ser lírica, um lamento que encontrou seu tom.


A OBRA
Últimos Pedidos - Graham Swift. Tradução de José Antonio Arantes. Companhia das Letras (r. Bandeira Paulista, 702, conjunto 72, CEP 04532-002, SP, tel. 011/866-0801). 304 págs. R$ 26,00.




Fábio de Souza Andrade é professor de teoria literária na Universidade Estadual de Campinas e autor de "O Engenheiro Noturno - A Lírica Final de Jorge de Lima" (Edusp).



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